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Relator da ONU está preocupado com os efeitos de insinuações infundadas feitas por autoridades sobre sistema eleitoral

Após uma visita de 12 dias ao Brasil, o Relator Especial sobre os direitos à reunião pacífica e liberdade de associação das Nações Unidas, Clément Voule, exortou as autoridades locais a evitar qualquer tipo de discussão sobre a credibilidade do sistema eleitoral brasileiro que não seja inteiramente baseada em fatos.

Voule se mostrou preocupado com os efeitos de insinuações infundadas feitas por autoridades sobre as eleições gerais marcadas para outubro de 2022. Segundo ele, o clima de insegurança pode prejudicar a confiança da população na democracia e até afastar os brasileiros das urnas.

“A discussão em relação ao sistema eleitoral no Brasil cria insegurança e medo entre as pessoas. Esse tipo de discussão é importante em sociedades democráticas, mas precisa ser baseada em fatos”, disse o relator em uma coletiva de imprensa organizada ao fim de sua viagem nesta sexta-feira (08/04).

Durante seus 12 dias no Brasil, o representante da ONU visitou diferentes comunidades, organizações da sociedade civil e se reuniu com autoridades em Brasília, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo para avaliar a atual condição do direito à reunião pacífica e liberdade de associação, assim como o clima eleitoral e social em geral.

Um relatório completo das conclusões será liberado na próxima semana e apresentado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU em junho de 2023. Mas algumas das principais recomendações do relator foram expostas na coletiva desta sexta.

Sem mencionar qualquer ocorrência específica, Voule expressou preocupação de que alegações recentes em relação ao sistema de votação brasileiro podem estar criando um clima de insegurança e violência, fazendo com que algumas pessoas especulem se as eleições sequer acontecerão.

“Me encontrei com representantes das cortes eleitorais para tentar entender por que há tanta preocupação em relação ao sistema de votos eleitorais e me explicaram. Em qualquer democracia essas preocupações têm que ser discutidas, mas o problema que me foi apresentado é que não há evidência de que o sistema em vigor não está funcionando”, disse.

“Há um entendimento em algumas comunidades de que essa discussão existe para impedir o voto e que foi ordenada para criar um sentimento de insegurança para os impedir de exercer seus direitos políticos”.

Ao apresentar suas conclusões, o relator ressaltou ainda o clima de intensa polarização política vivido pelo Brasil e exortou o Estado a garantir que todos os processos eleitorais sejam livres de discriminação, desinformação, fake news e discursos de ódio. “Exorto o Estado a proteger candidatos e candidatas de quaisquer ameaças ou ataques online e offline”.

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Relator Especial sobre os direitos à reunião pacífica e liberdade de associação das Nações Unidas, Clément Voule

Em diversas ocasiões, o presidente Jair Bolsonaro (PL) levantou dúvidas em relação à segurança das urnas eletrônicas usadas no Brasil, alimentando um debate sobre a questão.

Em uma live em agosto de 2021, Bolsonaro chegou a divulgar publicamente uma série de documentos que continham os resultados de um inquérito sigiloso da Polícia Federal sobre a segurança das urnas, para defender sua tese falsa de que as máquinas são passíveis de invasão externa e que as eleições presidenciais em 2018 foram fraudadas.

O presidente, que defendeu a aprovação pelo Congresso do voto impresso, mas sofreu uma derrota legislativa, chegou a declarar que não aceitaria o resultado de um pleito que considerasse não ter sido realizado de maneira “limpa”, o que acirrou os ânimos com o Poder Judiciário.

O especialista da ONU expressou ainda preocupação com as restrições aos direitos dos brasileiros à plena e ativa participação social e política.

“Deploro políticas que restringem a participação social e política, estreitando espaços de consulta sobre políticas públicas e tomada de decisão”, disse ele na coletiva.

“A Constituição do Brasil protege o direito de todos, sem discriminação, de gozar do direito de assembleia pacífica e associação”, afirmou. “Mas na prática, notei que existe um lacuna entre os direitos garantidos na Constituição e as obrigações que o Estado tem em nível internacional e como esses direitos são garantidos pela lei e pelas autoridades estatais”.

Voule condenou especialmente o fechamento e esvaziamento de 650 conselhos participativos no Brasil nos últimos anos.

Segundo ele, o enfraquecimento dos órgão da sociedade civil fecha o canal que a sociedade tinha para dialogar com o Estado sobre temas como discriminação, mudança climática, direitos de pessoas com deficiência e comunidades indígenas.

O relator apontou ainda tentativas de “criminalizar o movimento social” por meio da aprovação de uma nova lei antiterrorismo.

“A maioria das autoridades com quem me encontrei mencionaram que não há risco de o Brasil estar sob ataques terroristas. Então a pergunta é: qual o principal objetivo desse projeto de lei antiterrorismo? É claro para mim que seu objeto é criminalizar qualquer movimento social, evitar que as pessoas se oponham a algumas das políticas que sejam contra seus interesses e evitar dissidência”, disse.

O especialista da ONU disse que existem atualmente cerca de 20 projetos de lei sendo analisados pelo Congresso Nacional, em específico os PLs 1595/19, 272/16 e 732/2022 que, se adotados, efetivamente criminalizariam as atividades dos movimentos sociais sob o pretexto da segurança nacional e da luta contra o terrorismo.

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Presidente Jair Bolsonaro

No final de março, o presidente Jair Bolsonaro enviou ao Congresso Nacional um projeto de lei que inclui “ações violentas com fins políticos ou ideológicos” na classificação de terrorismo. O projeto é uma atualização da Lei Antiterrorismo, assinada em 2016 pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT).

Algumas organizações expressaram temor de que a alteração abra brecha para criminalizar os movimentos sociais. Mas segundo o Ministério da Justiça e Segurança Pública, o projeto de lei busca “punir com mais rigor condutas de elevada periculosidade, que podem colocar em xeque a sobrevivência do próprio Estado de Direito”.

Racismo e guerra às drogas

O Relator Especial sobre os direitos à reunião pacífica e liberdade de associação das Nações Unidas expressou ainda preocupações contundentes com a violência racial e a falta de acesso efetivo à Justiça no Brasil.

Segundo Clément Voule, observa-se um aumento da descriminalização e uma banalização do racismo. “Muitas comunidades de afrodescendentes, que são 65% da população, se sentem marginalizadas. E se a comunidade que representa a maioria se sente marginalizada, significa que sua participação pública e seus aspectos políticos estão em perigo”, afirmou.

O relator usou como exemplo os muitos casos de jovens negros mortos em favelas e comunidades no processo da guerra às drogas.

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Policiais caminham pelas ruas da favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro

“Na minha opinião pessoal, é a hora do Brasil e da sociedade, das autoridades, repensarem sua estratégia para a guerra às drogas”, disse, defendendo que o Brasil reconsidere sua estratégia ao lidar com o tráfico e discuta a descriminalização como forma de frear a violência.

“Há quantos anos o Brasil implementa a mesma estratégia na guerra contra as drogas? E qual o resultado? Perdas de muitos jovens negros, famílias buscando justiça, comunidades estigmatizadas, favelas que não são mais seguras”, afirmou.

“A guerra às drogas é, infelizmente, usada em muitos ocasiões para justificar a violência policial”.

Ainda segundo o relator, a Justiça é lenta e “em alguns casos as investigações levam anos”. “Muitos casos me foram apresentados, incluindo de mães e famílias que perderam seus filhos e ainda estão esperando a justiça”, disse.

“Um dos exemplos concretos é o caso do assassinato da vereadora Marielle Franco”, argumentou. “Se uma figura eleita é morta e em quatro anos não temos claridade sobre quem ordenou o assassinato, imagine como outras pessoas podem se sentir, aqueles que não tem essa posição de destaque?”.

Voule disse estar profundamente inquieto que os mandantes da execução de Marielle Franco em 2018, defensora de direitos humanos e vereadora afro-brasileira, ainda não tenham sido identificados.

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