- Author, Rafael Abuchaibe
- Role, BBC News Mundo
- Twitter, @RafaelAbuchaibe
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Cerca de 100 mil pessoas explodiram de alegria quando o avião que transportava o imperador etíope Haile Selassie pousou no aeroporto de Kingston, na Jamaica, em abril de 1966.
A grande maioria dessas pessoas ficaram extasiadas por estarem na presença daquele que consideravam o seu Messias e salvador, o herdeiro direto da chamada “dinastia salomônica”: os supostos descendentes da união entre o Rei Salomão de Israel e a Rainha de Israel, Saba.
Muitos dos que chegaram ao aeroporto também faziam parte de um pequeno movimento religioso perseguido pelas autoridades pelas suas ideias anticoloniais que ganhavam força na ilha desde a década de 1930.
Para se identificar, o movimento usava o nome de Selassie antes dele ser coroado imperador– Tafari Makonnen –, com o prefixo ‘ras’ na frente, que significa príncipe, ou seja, Rastafari.
“As boas-vindas foram tão impressionantes que é algo que nunca foi visto na história”, diz Ras Igie, membro do movimento rastafári, à BBC News Mundo, falando de Kingston.
“E para nós, rastas, que estávamos escondidos pela perseguição do governo, do povo, o imperador nos trouxe todo esse júbilo, essa alegria para nosso caminho.”
Hoje, após décadas de perseguição, o movimento é reconhecido em todo o mundo graças à música reggae e ao seu maior expoente, o falecido cantor jamaicano Bob Marley (1945-1981).
E embora continue sendo um movimento relativamente pequeno (de acordo com o censo de 2011, 1% da população da Jamaica, cerca de 30 mil pessoas, era rastafári), goza de participação no Parlamento e é uma voz reconhecida no país.
“One love”
Originário da zona rural da Jamaica na década de 1930, o movimento rastafári começou como uma mistura de duas ideologias aparentemente não relacionadas. Primeiro o cristianismo, que viu um ressurgimento nas áreas pobres do país durante as últimas décadas do século 19 e as primeiras décadas do século 20, graças ao trabalho de missionários, muitos deles americanos.
Por outro lado, começaram a surgir movimentos nacionalistas negros que incentivavam as pessoas a olharem para África, com a intenção de regressarem à terra de onde foram desenraizados. Uma das vozes mais influentes do “Pan-africanismo” foi a do pensador jamaicano Marcus Garvey, que mais tarde também inspiraria as ideias de Malcolm X e da Nação do Islã nos EUA.
Garvey foi um dos primeiros pensadores a promover a ideia de amor próprio entre a população negra. Ele mesmo resumiu o seu lema de “Um Deus, um objetivo, um destino”, numa frase icônica que encerrava os seus discursos e que o movimento rastafári adotou como saudação: “um amor”, um único amor.
Garvey também promoveu a ideia de unificar as raças negras do mundo, dispersas pelas forças coloniais, sob a bandeira do “Deus da Etiópia”, reiterando a suposta divindade da linhagem bíblica do único país africano que nunca foi colonizado. (A Etiópia só foi ocupada durante 5 anos pelas forças italianas de Benito Mussolini, na Segunda Guerra Mundial).
As ideias de Garvey coincidiram com a coroação de Selassie como imperador em 1930 e deram vida ao movimento rastafári, segundo disse à BBC Mundo Noel Leon Erskine, teólogo jamaicano da Universidade Emory (EUA).
“Garvey, que os rastafaris veem como um profeta, disse ‘olhe para a África, olhe para a Etiópia’. E quando viram filmes da realeza britânica se curvando a Hailee Selassie, um homem negro, deram a isso um significado especial. E, por serem seguidores da escritura, interpretaram que eram o povo escolhido”.
Após a coroação de Selassie, os primeiros membros do movimento rastafári começaram a pregar nas ruas da Jamaica. Personagens como Leonard Howell – considerado o pioneiro do movimento – começaram a apelar aos moradores dos bairros mais pobres (deprimidos pelos efeitos da Grande Depressão de 1929) para rejeitarem o rei George 6 da Inglaterra e, em vez disso, seguirem o reinado de Selassie da Etiópia.
Em 1934, Howell foi preso pela polícia e passou 2 anos na prisão por sedição, marcando o início de um longo período de perseguição contra os rastafáris por mais de 30 anos.
Um tema de sons
Para o rastafári, a Babilônia representa a opressão. Ou melhor, como chamam no movimento, o “downpression”, alterando o som inicial da palavra, que em inglês é semelhante ao “up” acima, com “down” abaixo.
Segundo disse o professor Erskine à BBC Mundo, a importância do som e da integração de conceitos filosóficos na linguagem são uma parte fundamental da ideologia rastafári: “Eles perceberam que o idioma era uma ferramenta de dominação para as forças coloniais”.
“A primeira coisa que faziam quando chegavam à sua terra era proibir que usassem sua língua. Os rastafáris mandaram a língua inglesa para o inferno e disseram ‘vamos criar uma usando os sons’.”
Assim como usam o termo “Babilônia” para descrever qualquer sistema de opressão – referindo-se ao período de escravidão dos israelenses na Babilônia no século 5 a.C. – usam o termo “Sião” – a lendária fortaleza do Rei Davi em Jerusalém – para se referir à ideia de Terra Prometida.
Ras Igie explicou à BBC News Mundo como esses conceitos são interpretados dentro do movimento, que poucos chamam de “religião” por ser uma ideia relacionada ao sistema da “Babilônia”.
“Sabemos pelas referências nas escrituras que Babilônia era uma força que queria dominar a Terra. Uma força opressora contra os filhos do Altíssimo, os israelenses.”
“Com a união de Salomão e da Rainha de Sabá nasceu um filho e com isso a velha Jerusalém passa para a nova Jerusalém na Etiópia. Dessa maneira, em Sião ela é reconhecida como redenção através daquela força do bem que representa o reino mais justo na Terra.”
A vida na “Babilônia”
A mensagem anti-imperialista rastafari fez com que as forças britânicas iniciassem uma campanha de perseguição contra o movimento nos seus primeiros dias.
Depois de passar dois anos na prisão, Howell publicou o livro “The Promised Key” (A Chave da Promessa), no qual apresentou muitas das ideias que moldariam o movimento rastafári, embora isso lhe tenha causado mais problemas com as autoridades. Ele foi confinado em um sanatório psiquiátrico porque no livro se referia ao Papa como “Satanás, o diabo” e falava da “supremacia negra”.
Ao sair, criou a primeira comunidade rasta, conhecida como comunidade Pinnacle, numa zona alta de Saint Catherine, no sul da ilha. Isso o colocaria de volta na mira das autoridades, e Howell foi novamente condenado a dois anos de prisão por acusações de sedição.
A perseguição das autoridades levou à dissolução da Pinnacle na década de 1950, e as tensões entre as autoridades e os rastafaris atingiram o clímax em 1963, quando um violento conflito num posto de gasolina de Montego Bay levou o recém-criado governo independente a emitir uma ordem para capturar os rastas “vivos ou mortos”.
Embora não existam números oficiais, alguns autores acreditam que mais de 150 rastafaris foram torturados ou perderam a vida nos meses seguintes.
“Houve um massacre e uma crucificação”, disse Ras Igie à BBC Mundo, “e nós, rastas, procuramos o imperador para ser nosso protetor e salvador”.
“E o mesmo aconteceu com a chegada, três anos depois, do imperador à Jamaica.”
Imagens de arquivo mostram como uma multidão se reuniu para receber Selassie e como ele os cumprimentou com carinho semelhante. Com a viagem dele e a intervenção perante o governo jamaicano, a perseguição aos rastafári diminuiu, ainda que não tenha encerrado.
De acordo com Ras Igie, isso deu a Selassie o estatuto de divindade, “uma segunda vinda de Cristo”.
“Assim como Cristo, que passou três dias e três noites no coração da Terra, vimos uma ressurreição nos três dias em que passou na Jamaica”.
O professor Erskine diz que, durante essa viagem, Selassie disse aos rastafáris que ele, sendo cristão, não era o Messias e se ofereceu para criar um braço da Igreja Ortodoxa Africana.
“O que os rastas responderam? Que Jesus fez o mesmo. Eles disseram que quando Jesus foi chamado de Messias, ele respondeu que não havia necessidade de chamá-lo de Deus.”
“Não é uma religião, é uma ‘vivência’”
Ao perguntar a Ras Igie se o rastafári poderia ser considerada uma “religião”, ele responde com dois termos que o movimento adotou com base em sua ideologia. Ele diz que é uma “vivência”, um estilo de vida voltado para a justiça”, nas quais se incorporam conceitos inatos e aprendidos.
“Falando por experiência própria, nunca li nenhum livro sobre rastafári”, diz ele, acrescentando que tem crescido em sua compreensão por meio da internalização dos “problemas e tribulações da vida” através da meditação e da planta sagrada, a ganja, ou maconha.
Para o rastafari, assim como outras religiões que pregam a meditação, muitas das respostas são encontradas dentro do ser e não fora.
Segundo Ras Igie, seguir os preceitos da ideologia, como manter uma dieta vegana, não “passar uma lâmina na cabeça” – o que explica seu modo de usar o cabelo – e a meditação combinada com o uso da maconha, fazem com que se possa chegar ao entendimento da palavra de Jah, o criador.
O movimento rastafári tem recebido críticas pelo tratamento dado às mulheres, dada a sua interpretação por vezes literal dos textos bíblicos. Mas Ras Igie garante que são interpretações que foram reavaliadas pelas novas gerações rastafáris e que hoje as mulheres desempenham um papel importante no movimento.
“Hoje, é venerada a esposa de Halie Selassie, que foi coroada ao mesmo tempo que o rei. E essa grandeza do rei e da rainha faz com que as novas gerações destaquem a figura feminina”.
A internacionalização e o reggae
O professor Erskine lembra que, quando era criança na Jamaica, o tambor era um instrumento proibido nas igrejas.
“Crescendo nos anos 1940, alguns dos anciãos tocavam tambores. “Lembro-me de ir dormir com os tambores tocando a noite toda.”
Para Erskine, a grande genialidade de Bob Marley foi misturar aquele instrumento proibido nas igrejas – considerado selvagem pelos colonos, mas que era tocado nas ruas – com a mensagem rastafari. Foi a forma como conseguiu universalizar a mensagem do movimento.
“Marley alcançou muito mais pessoas do que a igreja poderia ter alcançado através do rádio. Essas pessoas, que eram vistas como as mais baixas da sociedade, que não tinham sapatos e não frequentavam a escola, através da música conseguiram visibilidade”, diz Erskine.
Mas a popularidade do reggae tem sido uma faca de dois gumes para o movimento, como disse Ras Igie à BBC Mundo.
“A geração mais jovem, que começa a crescer na década de 70, se associa mais ao ritmo reggae e encontramos formas de sermos mais independentes financeiramente.”
“Mas hoje parece ser vítima de sabotagem por aquilo que poderíamos chamar de direitos de capital intelectual e lucro. A música está mudando e se afastando do reggae.”
Para Ras Igie, os lucros do reggae deveriam ser divididos com a comunidade rastafari: “Para que todos possam se beneficiar da grande música que nos colocou no mapa”.
Algo semelhante acontece com o mercado de maconha e com as comunidades rasta. Ras Igie diz que o seu povo continua sendo perseguido por plantar maconha numa época em que a produção da planta é um negócio de “interesses”.
“Embora o governo jamaicano tenha se desculpado pelo que foi feito de errado, os rastas deveriam ser melhor tratados. Continuamos sendo desprezados, mas pelo menos hoje temos a liberdade de andar, nos locomover e nos comunicarmos com o governo.”
O que não há dúvidas é de que o movimento se tornou uma parte fundamental da vida jamaicana, como nos diz o professor Erskine: “Não há como evitar: não acho que se possa falar adequadamente sobre a cultura jamaicana sem falar sobre o rasta”.
Fonte: BBC
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