- Alejandro Millán Valencia
- BBC News Mundo
No período da construção das repúblicas da América Latina, após os processos de independência nacional, ninguém na região tinha um conceito tão claro do que deveria ser a igualdade ou a liberdade como as pessoas que tiveram esses direitos negados: os escravizados.
Para o antropólogo colombiano José Antonio Figueroa, não só houve um bloqueio total da participação dos negros da construção dessas novas nações, como houve casos em que seus movimentos políticos foram sufocados até desaparecer.
Para demonstrar essa premissa, Figueroa se aprofundou em dois eventos históricos: a guerra da Concha, no Equador, que terminou com a repressão violenta dos movimentos de afrodescendentes; e, em Cuba, a criação do Partido Independente de Cor e do jornal Previsión. Todos tiveram o mesmo destino: a repressão.
O antropólogo resgatou esses movimentos e montou um retrato complexo do que chama de “republicanismo negro” no livro Republicanos negros: guerras por la igualdad, racismo y relativismo cultural (em tradução livre, “Republicanos negros: guerras por igualdade, racismo e relativismo cultural”).
A BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, conversou com Figueroa durante o festival Hay Festival de Cartagena 2023, realizado na Colômbia entre 26 e 29 de janeiro.
BBC News Mundo – Vamos falar primeiro sobre a ideia de independência tal como foi construída no continente. Por que você acha que o Haiti conquistou sua independência em 1803 e os outros países latino-americanos apenas 20 anos depois, aproximadamente?
José Antonio Figueroa – A questão do Haiti é fundamental na história política e cultural latino-americana, mas, ao mesmo tempo, é amplamente desconhecida e maltratada.
A verdade é que a luta pela independência do Haiti também foi acompanhada de uma luta contra a escravidão. É aí que reside a diferença, porque houve uma articulação dessas demandas em uma luta militar que os permitiu derrotar nada mais nada menos que o exército francês.
O que isso causou no resto da América? Pois bem, a imagem do medo do negro começou a ser fomentada.
O que ocorreu nos Estados que estavam nascendo foi uma precoce criminalização da formidável ação militar realizada pelos haitianos. De fato, em termos práticos, o Haiti sofreu um dos mais brutais processos de isolamento e bloqueio naqueles anos.
E o que o Haiti nos ensinou — as ideias de igualdade, fraternidade e liberdade a partir da ruptura com a escravidão como ponta de um projeto de soberania nacional — poderia ter sido um grande legado, mas se tornou motivo de radicalização e de expansão do medo do preto.
O que poderia ter sido realmente uma façanha reconhecida e valorizada foi totalmente rejeitada, até porque havia os interesses dos senhores de escravos, que viam aquela experiência com terror.
E não esqueçamos toda a ajuda que Alexandre Pétion, o pai da pátria no Haiti, deu a (Simón) Bolívar em sua campanha de libertação, com a ideia de acabar com a escravidão. Mas este preferiu acabar apoiando a posição do senhores de escravos, que exigiam não perder suas vantagens econômicas.
BBC News Mundo – Então, o que vemos é que a construção dessas repúblicas após a independência foi feita tendo o racismo como um de seus “valores”?
Figueroa – No livro, toco nos casos de Cuba e do Equador. Com eles, podemos fazer uma leitura ampla do que aconteceu na América Latina.
O caso da formação da República de Cuba foi excepcional para os pesquisadores, porque ocorreu no final do século 19. Há uma proliferação de fontes que nos permitem concluir o que você aponta: que o racismo já estava assumindo um caráter profundamente sistemático.
Inclusive, o racismo havia se tornado uma espécie de credo científico, com ideias como as apresentadas por Joseph Arthur de Gobineau na França em Desigualdade biológica das raças. Essas ideias se infiltraram nas elites que construíam a República da Cuba naquela época.
E não só Gobineau: havia também o racismo científico que proliferava nos Estados Unidos. Ou seja, havia uma infinidade de influências que penetravam no pensamento republicano da época.
Essas ideias instalam nos novos países uma ideologia que agora nos permite concluir que o racismo foi um método inventado pelas elites da América Latina para substituir a escravidão.
E o que faço em meu livro é mostrar como aquele racismo instalado na construção das repúblicas, no caso de Cuba e no caso do Equador, foi amplamente discutido e rechaçado por grupos intelectuais e militares que buscavam a igualdade e liberdade totais — e não parciais, como ocorreu em muitos países da região.
BBC News Mundo – O foco do seu livro são os republicanos negros da época. O que é o republicanismo negro?
Figueroa – Vamos começar do básico: a construção da república é o modelo que vai na contramão do modelo imperial ou do modelo mais baseado em premissas reais. E essa ideia se divide em duas: uma república baseada em valores aristocráticos de elite. Um republicanismo exclusivo. Essa é uma.
Mas há também outra, que se apresenta desde a Antiguidade, que podemos chamar de popular — em que a república pode existir se e somente forem reconhecidos os direitos de igualdade para todos. Na época desses processos de independência, esse segundo conceito de republicanismo era muito atraente para a população negra, justamente pelas premissas de igualdade para todos.
Então, esses grupos não só se apropriaram desse conceito, como também o radicalizaram. Isso fica evidente na revolta na Província de Esmeraldas, no Equador [na chamada “guerra da Concha”] e, claro, em movimentos de Cuba, onde houve uma luta direta contra os conceitos de racismo e desigualdade.
Portanto, o republicanismo negro é baseado nesse conceito de igualdade, mas também está profundamente ancorado em uma crítica radical ao racismo e às heranças da escravidão que foram vividas nesses dois países.
BBC News Mundo – Talvez nunca tenha havido na América Latina uma ideia tão profunda, que você chama de radical, sobre conceitos como liberdade e igualdade como a que tiveram os representantes desse republicanismo negro.
Figueroa – Primeiro, cabe observar que não há material abundante, por razões óbvias, sobre o desenvolvimento intelectual desses movimentos, mas novamente voltamos ao ponto do Haiti, que promulga sua Constituição e declara que “somos todos negros”.
A partir daí, gerou-se uma corrente de escritores, pensadores e ativistas negros, como o cubano José Antonio Aponte, que imaginou um modelo de república igualitária — o que acabou lhe custando a vida.
Acho que vale a pena mencionar aqui é o projeto do jornal Previsión, fundado em Cuba no início do século 20. Junto com o Partido Independente de Cor, o jornal foi a resposta desses intelectuais negros, todos eles veteranos da guerra da independência — visto que as promessas de igualdade promulgadas durante a independência cubana foram enterradas uma vez iniciada a construção da república.
Eles não se apropriam das palavras republicanas, mas as tornam reais. Eles falam de suas realidades, muito além de um mero slogan. Daí a profundidade de seus conceitos de liberdade e igualdade.
BBC News Mundo – Por que nunca quisemos negros na construção de nossas repúblicas?
Figueroa – Em sentido estrito, o racismo, e os legados do racismo, existe na medida em que beneficia um setor e ajuda a construir o privilégio branco. Em outras palavras, permite que um setor da população tenha acesso à terra, à educação, e ajuda a consolidar as diferenças econômicas e políticas dentro de uma nação.
Sabe-se que muitos republicanos em Cuba, favoráveis aos processos de emancipação do país, também pensavam em quais deveriam ser as estratégias para evitar que a população afro-cubana continuasse existindo. Em outras palavras, eles pensaram em deportação, em genocídio. A miscigenação foi pensada como uma forma de eliminar gradativamente os afrodescendentes.
Tudo sob a premissa de que o outro é marginalizado, que o outro é excluído, de forma a atrair ou manter benefícios econômicos para uma parte da população.
BBC News Mundo – Essa negação traz impactos para a região atualmente?
Figueroa – Não acho que a questão seja como os impactos foram causados, mas como essas estruturas continuam até hoje.
As evidências apontam para uma situação preocupante: os níveis de criminalização, de deterioração de direitos, estão intimamente ligados a formas de discriminação racial. Em outras palavras, os setores radicalizados são os setores que continuam sofrendo hoje as consequências mais desastrosas da desigualdade.
Mas vejo projetos vindos dessas comunidades nos quais alguém pode se interessar no futuro. Por exemplo, é louvável o que a vice-presidente da Colômbia, Francia Márquez, está fazendo com o Ministério da Igualdade.
E, justamente, as ações políticas atuais devem ser voltadas para corrigir esses tremendos e desastrosos legados de uma longa tradição colonial, baseada na exclusão e negação do outro.
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