- Author, Veronique Greenwood
- Role, BBC Future
A flauta sobe lentamente uma escala, com um suave vibrato fechando as notas.
O som morno e ressonante sofre forte contraste com a gravação seguinte. Nela, um violino é dedilhado em um pizzicato dissonante, sem reverberação que o suavize.
“É tenso”, afirma o criador das faixas, Felipe Reinoso-Carvalho, engenheiro de som que se tornou cientista. Ele descobriu que cada uma dessas gravações possui um poder surpreendente.
Elas podem alterar o sabor do chocolate.
O chocolate é um alimento simbólico. Ele captura a imaginação de bilhões de pessoas em todo o mundo, desde que os confeiteiros inventaram o chocolate em barras, cerca de 180 anos atrás.
Mas a receita é bastante simples. Basta pegar os grãos de cacau torrados e fermentados e moer as sementes até virarem uma pasta. Em seguida, aqueça e misture com açúcar, manteiga de cacau e talvez leite. Deixe esfriar no formato que você preferir e está pronto.
As mentes férteis dos chocolatiers criaram infinitas variações sobre este tema.
Algumas são principalmente manipulações da psique humana – como o Kinder Ovo, recheado com o misterioso brinquedo escondido. Em 2024, esta invenção comemora 50 anos.
Outros fabricantes preferiram se voltar às origens botânicas do doce. No Brasil, a chocolatière Luisa Abrams cria suas próprias barras em pequenos lotes de forma bastante incomum, usando cacau selvagem da região amazônica. Ela trabalha com os moradores locais, que colhem o fruto amarelo bulboso de canoa.
Seja ele comum ou de boa procedência, o fato é que não nos cansamos de comer chocolate.
Nos Estados Unidos, as pessoas consomem em média 9 kg da iguaria por ano. Os americanos ocupam o segundo lugar entre os maiores consumidores de chocolate do mundo, atrás apenas dos suíços, que comem cerca de 12 kg por ano. E, no Reino Unido, uma pessoa média consome 3 kg por ano.
Reinoso-Carvalho agora estuda marketing sensorial na Faculdade de Administração da Universidade de los Andes, em Bogotá, na Colômbia. Ele e outros cientistas estão descobrindo novas formas de melhorar ainda mais nossa experiência com o chocolate.
Analisando as pilhas de grãos de cacau durante a fermentação, pesquisadores estão registrando quais bactérias controlam o aroma do chocolate, para entender quais micro-organismos são responsáveis por quais notas de sabor.
E outros investigam a genética do cacaueiro para saber se o cruzamento pode gerar novas características de interesse para os produtores e consumidores.
As novidades encontradas por esses Willy Wonkas da vida real poderão definir o futuro do chocolate que consumimos.
Os sons e os sabores
O interesse de Reinoso-Carvalho em descobrir formas de moldar o sabor do chocolate foi inspirado pelo trabalho do psicólogo experimental Charles Spence, da Universidade de Oxford, no Reino Unido.
Spence estuda como os nossos sentidos, além do aroma e do sabor, afetam nossa experiência com os alimentos. Ele descobriu, por exemplo, que ouvir o ruído de mastigar salgadinhos crocantes faz com que eles sejam mais agradáveis.
Quando ele e Spence decidiram iniciar seus trabalhos em conjunto, o chocolate foi a escolha natural, já que Reinoso-Carvalho, na época, morava na Bélgica.
“Lá, você pode se aprofundar nas características do chocolate”, explica ele, mencionando uma enorme quantidade de fabricantes de produtos de chocolate ávidos para experimentar.
Para este estudo, os cientistas trabalharam com Dominique Persoone, chefe da renomada loja The Chocolate Line, em Bruges, na Bélgica. Eles queriam saber se o som poderia fazer com que o chocolate parecesse mais cremoso, sem alterar a composição do doce.
A loja preparou diversos chocolates amargos com dois níveis de cacau, 71% e 80%. As fórmulas não incluíram creme, nem leite. Cada um dos tipos foi produzido em dois formatos – uma cúpula suave e arredondada e um formato de pedra preciosa angular.
Reinoso-Carvalho utilizou então música de uma biblioteca de sons para criar faixas com dois minutos de duração, para que as pessoas ouvissem enquanto comiam o chocolate.
E, fornecendo aos participantes diferentes combinações de formatos, fórmulas e sons, ele solicitou que as pessoas avaliassem a cremosidade do chocolate, para observar se o som alterava a experiência de consumo.
“Os resultados foram surpreendentes”, afirma Reinoso-Carvalho. “Mais do que o formato e o cacau, a música afetou o sabor.”
A flauta fez com que o chocolate parecesse mais doce e cremoso, independentemente do formato e da fórmula. E o violino dissonante fez com que ele parecesse menos cremoso e mais amargo.
A alteração não foi muito grande – em uma escala de sete pontos, ela atingia um ponto de diferença – mas foi extremamente consistente.
Gostamos de pensar que o sabor e o aroma são inerentes ao alimento que ingerimos. Mas a verdade é que o sabor está no cérebro de quem se alimenta.
Por isso, basta alterar a experiência vivida pelo cérebro para mudar características fundamentais.
Trabalhadores microscópicos
Uma próspera população de micróbios, desfeita muito antes que a barra chegue ao público consumidor, também é fundamental para o sabor do chocolate.
Os cacauicultores abrem as vagens e raspam a massa branca pegajosa no seu interior, repleta de grãos de cacau. Eles a colocam em caixas de madeira ou empilham em montes.
Em seguida, eles deixam que a massa fermente até que os grãos percam sua coloração clara, assumindo um tom marrom-avermelhado quando são abertos.
Mas, se você tentar produzir chocolate com grãos não fermentados, será uma grande decepção. O chocolate irá ficar “sem sabor” e “barrento”, segundo a descrição de Martyn O’Dare, um dos fundadores do fabricante britânico Firetree Chocolate.
E o microbiólogo alimentar Alexander J. Taylor, da Universidade de Illinois em Urbana-Champagne, nos Estados Unidos, provoca os consumidores curiosos, dizendo: “se você já provou cacau 100%, [sabe que] é muito amargo. Imagine aquilo 10, 30, 50 vezes pior, dependendo dos grãos.”
Mas o que acontece durante a fermentação?
Para o cacau nobre, empregado pelos fabricantes artesanais de alta qualidade, a fermentação dura cerca de seis dias, segundo O’Dare. Este processo de decomposição controlada é realizado pelos micróbios presentes no solo, nas mãos dos agricultores e na própria planta.
Os micróbios podem vir até das caixas de madeira, segundo Luisa Vicinanza-Bedi, fundadora da Luisa’s Vegan Chocolates.
“Se a caixa for nova, ela não oferece um acabamento tão bom”, explica ela. “Ela precisa ser velha para que os [micróbios] já estejam na caixa.”
O processo de fermentação tem início com as leveduras e, em seguida, começam a trabalhar as bactérias. No começo, as bactérias mais importantes são as anaeróbicas – que não precisam de oxigênio para crescer –, explica O’Dare.
A polpa úmida do interior das vagens afasta o oxigênio dos grãos, causando o crescimento dessas bactérias. Quando a polpa se desfaz, as bactérias aeróbicas assumem o controle, o que ocorre perto do segundo dia. Isso faz com que a fermentação se torne mais ácida.
As enzimas decompõem parte dos compostos mais amargos e adstringentes, enquanto muitas das proteínas e açúcares dos grãos crus também sofrem transformações. Tudo isso gera o desenvolvimento de mais de 600 compostos diferentes – desde álcoois e ácidos até fenóis amargos – que colaboram para formar o conhecido aroma e sabor do chocolate.
Mas o processo exige cuidado – se a fermentação demorar demais, os grãos desenvolvem um sabor defumado e desagradável. Para evitar que isso ocorra, no sexto dia, a fermentação é suspensa, com os grãos sendo enxaguados ou colocados para secar.
O controle da temperatura e da acidez deste processo desempenha papel importante para a qualidade do cacau produzido, segundo descobriram os cientistas. Mas as bactérias também são fundamentais.
Vicinanza-Bedi e O’Dare trabalharam com cientistas da Universidade de Nottingham, no Reino Unido. Eles documentaram os micróbios presentes em cada dia de fermentação, em fazendas de cacau na Colômbia.
Os pesquisadores utilizaram sequenciamento de DNA para elaborar uma biblioteca das diferentes bactérias e leveduras envolvidas no processo.
O trabalho ainda não foi publicado, mas provadores especializados experimentaram doces produzidos por chocolatiers com cacau de cada uma das fazendas. E os cientistas correlacionaram as notas de sabor com os micróbios encontrados em cada local.
Taylor também trabalhou com colegas para melhor compreender os diferentes micróbios envolvidos na fermentação em diferentes partes do mundo.
Depois de analisar a literatura científica dos processos de fermentação de 17 países, eles identificaram 447 espécies diferentes, incluindo 147 leveduras, 45 bactérias produtoras de ácido acético e 85 bactérias produtoras de ácido láctico.
Estudos de fazendas na Colômbia, por exemplo, revelaram que é necessário um grupo básico de espécies fúngicas e bacterianas para a fermentação do cacau, mas as diferenças parecem estar correlacionadas a perfis de sabor específicos.
Compreendendo melhor quais micróbios são responsáveis por sabores incomuns ou desejáveis, talvez seja possível aumentar a presença de alguns deles em chocolates específicos.
Um dia, este processo poderá fazer com que o controle cuidadoso das condições de fermentação dos grãos, introduzindo espécies microbianas específicas, possibilite a fabricação de produtos de chocolate com sabores incomuns.
E pode até chegar o dia em que culturas iniciais de micróbios poderão ser amplamente oferecidas, como ocorre hoje com a produção de pão.
“Se isso é bom ou ruim, não sei”, afirma O’Dare. “Como no queijo, é uma questão para debate.”
Os estudos podem também trazer benefícios mais imediatos para os próprios cacauicultores.
Por isso, ajudar os produtores a cultivar os micróbios certos para evitar falhas na fermentação poderia permitir que sua produção fosse mais constante – mesmo que, provavelmente, não se atingisse níveis suficientes.
O genoma dos esbeltos cacaueiros de folhas brilhantes também esconde outras propriedades do sabor do chocolate.
O cacauicultor Mark Guiltinan, da Universidade Estadual da Pensilvânia, nos Estados Unidos, trabalhou na identificação dos genes das enzimas metabólicas e outras proteínas que controlam características interessantes daquela árvore. Ele e seus colegas devem publicar em breve os genomas de 38 cacaueiros diferentes.
“São [tipos de] cacau muito diferentes”, afirma ele. “Encontramos todo tipo de coisas neles.”
Ficou claro que a genética tem importância. Diferentes variedades de cacau podem gerar sabores muito específicos.
A variedade nacional cultivada há muito tempo no Equador, cada vez mais difícil de ser encontrada, oferece um sabor de frutas e passas, segundo a experiência de Guiltinan. Já a variedade crioula da América Central pode ter gosto de nozes, afirma ele.
Guiltinan calcula que existam cerca de 3 mil sementes de cacaueiros diferentes guardadas em bancos genéticos, incluindo os resultados de expedições para a Amazônia, onde o cacau é nativo. Mas pode ser muito difícil para os cientistas encontrar árvores selvagens.
A maioria das viagens de coleta inclui longos trechos de barco e alguns passos pela floresta para poder voltar com uma vagem.
“O que acreditamos é que exista muita coisa que ainda não conhecemos na floresta tropical”, afirma ele.
Com maior sequenciamento genético e identificação de quais genes fazem o quê, os cacauicultores talvez possam, um dia, alterar o sabor do produto final. Leva tempo, mas o cruzamento de árvores promissoras talvez possa garantir que haja maior quantidade de moléculas específicas para o trabalho das bactérias.
Mas, atualmente, a tendência é se concentrar em características como resistência a doenças, que é uma das dificuldades enfrentadas pelos cacauicultores.
Guiltinan gostaria de melhorar as condições das pessoas que produzem a matéria-prima do doce mais apreciado do mundo. Afinal, crianças trabalham em condições perigosas, carregando muito peso, em muitas fazendas de cacau.
Em 2005, o Congresso americano tentou fazer com que os fabricantes de chocolate se comprometessem a eliminar o trabalho infantil da cadeia de fornecimento, mas o apelo foi repetidamente ignorado.
O mercado mundial de chocolate pode atingir mais de US$ 238 bilhões (cerca de R$ 1,18 trilhão), mas a parcela desse valor que chega às pessoas que cultivam o cacau é muito pequena. “A renda média do agricultor é de US$ 550 [cerca de R$ 2,7 mil] por ano”, segundo Guiltinan.
O cultivo de plantas que sejam menos trabalhosas e o acesso dos agricultores a máquinas que possam ajudá-los a erguer cargas ou abrir vagens com segurança são medidas que poderiam proteger o abastecimento mundial de chocolate, ajudando as pessoas que são a base da sua existência.
“Para mim, este é o grande incentivo”, afirma Guiltinan.
Afinal, a justiça tem um sabor todo especial.
Fonte: BBC
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