- Author, Jonathan Este
- Role, The Conversation*
Uma frente de resistência formada por tártaros da Crimeia, um grupo étnico nativo da península ocupada pela Rússia, se tornou peça importante na guerra da Ucrânia.
Fundado em setembro de 2022, o movimento Atesh (fogo, em tradução literal) age obstruindo a logística, sabotando alvos-chave e alimentando a insatisfação contra – e dentro – do exército do presidente russo Vladimir Putin.
Os métodos do Atesh são implacáveis, como visto em novembro de 2022, quando 30 militares russos morreram em hospitais em Simferopol.
Também são eficazes. Até fevereiro de 2023, segundo o grupo, mais de 4.000 soldados russos já haviam feito um curso online (na ‘escola Atesh’) sobre como resistir à guerra sabotando seus próprios equipamentos.
Mustafa Dzhemilev, líder tártaro da Crimeia proibido pela Rússia proibiu de entrar na Crimeia até 2034, disse recentemente que o “Atesh está nas profundezas… mas trabalha dentro da Crimeia… explodindo alvos”.
Serhii Kuzan, chefe do think tank Centro Ucraniano de Segurança e Cooperação, em Kiev, disse que “A ideia é que o invasor sempre sinta a presença dos guerrilheiros e que nunca se sinta seguro”.
Diversos métodos estão sendo usados para sabotar os russos na Crimeia e além.
Como em tantos incidentes nesta guerra, e isso vale para atos cometidos por todos os lados, verificar a origem de ataques é uma tarefa extremamente difícil.
Sabe-se que forças guerrilheiras nas regiões de Kharkiv, Zaporizhzhia e Kherson realizaram recentemente uma campanha coordenada de distribuição de adesivos e panfletos contra o chamado “mundo russo”.
Além disso, repetindo uma tática adotada em conflitos anteriores, a Ucrânia teria lançado panfletos sobre posições russas com a seguinte mensagem: “Soldado russo, se você não quer ser um nazista do século 21, saia de nossa terra! Caso contrário, o destino dos soldados de Hitler e um tribunal como o de Nuremberg esperam por você!”
O apelo ao passado é sedutor para Kiev, pois a guerra partidária desempenhou um papel importante na vitória da guerra civil russa (1917-1923) e no que a Rússia lembra como a “grande guerra patriótica” (1941-1945).
A comparação do atual exército russo com os invasores nazistas da segunda guerra mundial contradiz completamente a versão de Putin.
O Kremlin diz que nacionalistas ucranianos colaboraram e participaram em assassinatos em massa durante a ocupação nazista.
A propaganda russa afirma ainda que a guerra atual visa “desnazificar” a Ucrânia.
Quem são os tártaros?
Quem conhece a história da Rússia, da Ucrânia e dos tártaros da Criméia não deverá se surpreender com a hostilidade dos últimos à atual manifestação do imperialismo moscovita.
Diferentemente dos russos eslavos, os tártaros da Criméia são um grupo étnico turcomano nativo da península da Crimeia.
A nação tártara da Criméia se formou ao longo de quatro séculos (1200-1650) e se fundiu com diferentes ondas de imigrantes. Em 1783, a czarina Catarina, a Grande, anexou a Crimeia e, posteriormente, o Império Russo agiu para “russianizar” os tártaros da Crimeia antes da revolução de 1917.
Sob o governo de Joseph Stalin (1924-1953), a União Soviética reprimiu ativamente dos tártaros da Criméia. Como resultado, vários tártaros decidiram cooperar com os alemães após a invasão nazista de junho de 1941.
Stalin acusou os tártaros da Criméia de traição e deportou a comunidade em massa para o Gulag – como eram chamados os campos de trabalho forçado sovieticos.
Embora alguns tártaros da Criméia tenham servido junto a potências do Eixo, um número bem maior serviu no Exército Vermelho.
Conhecida como Sürgün (o exílio), esta deportação de pelo menos 180.000 pessoas para a Ásia central em 1944 foi um dos capítulos mais dolorosos da história tártara.
Na década de 1960, pesquisas de ativistas tártaros estimaram que aproximadamente 100.000 dessas pessoas tenham morrido (mesmo os registros soviéticos mostram que 30.000 tártaros da Criméia morreram menos de dois anos após as deportações).
Somente em setembro de 1967, o Soviete Supremo – o mais alto órgão legislativo da URSS – reconheceu que a acusação de traição contra toda a nação tártara da Crimeia era “irracional”.
Treze anos antes, o Soviete Supremo votou pela transferência da Crimeia da Ucrânia da República Socialista Federativa Soviética da Rússia para a República Socialista Soviética.
O movimento não foi tão controverso na época, visto que ambas as entidades eram parte da União Soviética. Mas a dissolução da União Soviética em 1991 mudou tudo isso.
A maioria dos tártaros só foi autorizada a retornar à Crimeia em 1989, sob o comando do líder soviético reformista Mikhail Gorbachev.
Os tártaros não receberam nenhuma compensação por suas perdas, e seu retorno para casa gerou tensões com russos e ucranianos étnicos, muitos dos quais se mudaram para a península depois de 1944.
Depois que a Ucrânia se tornou independente, em 1991, líderes tártaros disseram que autoridades de Kiev deliberadamente impediram que seu povo conseguisse empregos públicos.
Tambémos acusaram de secretamente se “apropriar de suas terras”.
‘Inimigo comum’
Aos poucos, porém, um inimigo comum uniu os tártaros da Criméia e a Ucrânia.
Os tártaros da Criméia tornaram-se fervorosos defensores do novo Estado ucraniano e chegaram a ser apelidados de “os maiores ucranianos da Crimeia”.
Em 1897, os tártaros nativos da Crimeia representavam 34,1% da população da Crimeia.
Apesar da reversão da limpeza étnica promovida por Stalin, em 2001 os russos representavam 58% da população da Crimeia, enquanto os tártaros indígenas representavam apenas 12%.
A invasão da Crimeia pela Rússia em 2014 foi um retorno desastroso ao passado para os tártaros da Crimeia. Os russos imediatamente embarcaram em um programa de tirania sistemática. Essas perseguições persistem até hoje.
A assembléia autônoma tártara da Criméia, Mejlis, da qual Mustafa Dzhemilev era presidente, foi proibida, assim como as referências públicas às deportações stalinistas.
Depois de 2014, milhares de tártaros deixaram a Crimeia ocupada pela Rússia e foram para a Ucrânia. O ativista e político tártaro Ilmi Umerov disse ao Serviço Federal de Segurança da Rússia que “não considera a Crimeia parte da Federação Russa”.
Ele foi encaminhado para um hospital psiquiátrico.
Em novembro de 2015, demonstrando solidariedade ucraniano-tártara, o Verkhovna Rada (o parlamento ucraniano) aprovou uma moção denunciando as deportações de 1944 como “genocídio”.
Este precedente encorajou Letônia, Lituânia e Canadá a seguir o exemplo em 2019.
Em 2021, a Verkhovna Rada aprovou uma lei que reconheceu os tártaros da Crimeia como um dos povos indígenas da Ucrânia.
Enquanto a guerra atual continuar, e considerando a significativa contribuição militar dos tártaros da Crimeia, Kiev deverá se colocar cada vez mais favoravelmente à questão da autodeterminação da nação tártara da Crimeia.
Para o especialista em estudos ucranianos Rory Finnin, o futuro da Crimeia é fundamental para qualquer acordo que possa se seguir à guerra atual.
A Ucrânia perdeu o controle da Crimeia em 2014, mas os esforços dos tártaros da Crimeia no atual conflito estão contribuindo significativamente para a capacidade de Kiev de evitar uma derrota para a Rússia.
*Jonathan Este é editor de assuntos internacionais.
Este artigo foi publicado originalmente no site de notícias acadêmicas The Conversation e republicado sob licença Creative Commons. Leia aqui a versão original em inglês.
Fonte: BBC
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