• Edison Veiga
  • De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil

Crédito, Domínio Público

Legenda da foto,

Pintura que representa o encontro de Moisés bebê

Para as culturas e civilizações ocidentais, fortemente embasadas pela tradição judaico-cristã, poucos têm importância tão fundamental quanto Moisés, líder que teria vivido há cerca de 3,5 mil anos e cuja trajetória é a própria fundação do judaísmo.

Historicamente, contudo, nem mesmo a existência de Moisés é 100% comprovada. Entretanto, sendo sua trajetória o vivenciado por uma só pessoa, seja ele uma construção mítica a partir de histórias de um povo, é inegável sua influência sobre a humanidade.

“Moisés pode ter sido uma pessoa real, de carne e osso, ou pode ser a síntese de grandes lideranças de um tempo determinado, que serve de referência para outras lideranças”, pontua o rabino Uri Lam, da congregação israelita Templo Beth-El, de São Paulo.

Nesse sentido, Lam cita o filósofo, rabino e médico judeu Moisés Maimônides (1125-1204), em cuja lápide, em Israel, está a seguinte inscrição: “de Moisés a Moisés, nunca houve outro como Moisés”. “Seja como for, a sua origem histórica, assim como a de tantas outras grandes figuras do passado remoto, acaba sendo reconstruída de forma simbólica, religiosa e espiritual, como criação da memória coletiva judaica, de geração em geração”, enfatiza o rabino.

“O texto bíblico é a primeira referência, que a cada geração ganha novas nuances, interpretações e leituras, assim como a figura de Moisés é ressignificada e reconstruída e justamente desta forma se mantem viva e influente na história da humanidade”, acrescenta.

“Encontrar o Moisés histórico, se possível, talvez contribua em algo para enriquecer o nosso conhecimento a respeito dele e de sua época. Mas vejo como mais importante o modo como cada geração pensa e repensa, de acordo com o seu contexto histórico, a figura de Moisés como a grande referência de liderança, com seus defeitos e qualidades e sua capacidade de desenvolvimento ao longo da vida. Também simbólica: 120 anos aponta para o limite de uma vida plenamente vivida, de acordo com a tradição judaica.”

Sim, segundo a tradição judaica, Moisés teria vivido 120 anos.

“Ele é considerado o líder maior da tradição judaica. Toda semana, em cada sinagoga do mundo, o ritual judaico inclui como seu centro a leitura da lei de Moisés, o Pentateuco, a Torá”, comenta o estudioso José Luiz Goldfarb, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e diretor de cultura judaica do clube A Hebraica.

“Toda sinagoga tem o rolo, em pergaminho, no estilo antigo, onde a gente tem esse fundamento que é a palavra de Moisés. Essa palavra é a história do mundo, desde a criação até a morte de Moisés, incluindo o relato dele no Egito, na corte do faraó, e depois libertando o povo rumo à terra prometida”, acrescenta Goldfarb. “Esse texto vai até a morte de Moisés. Termina com ele se despedindo e deixando o povo para começar a terra prometida.”

Nesses livros — Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio —, que formam a Torá e são o princípio do Antigo Testamento da Bíblia cristã, estão os fundamentos de todas as leis e costumes. “É o que baliza a vida judaica de um modo geral”, diz Goldfarb. “Temos de frisar que Moisés é, de fato, considerado o líder que orienta, que organiza, que dá os rumos de toda a tradição judaica e de todo o povo de Israel.”

Segundo a tradição, Moisés teria sido o autor dos cinco livros da Torá. “Neles, temos o fundamento de todas as leis, os costumes, que vão sendo interpretados de geração a geração e que balizam a vida judaica de um modo geral”, sintetiza Goldfarb. “Ou seja: Moisés é considerado de fato o líder que orienta, que organiza, que dá os rumos de toda a tradição judaica e de todo o povo de Israel.”

“Mas esse relato de Moisés é de mais de 1 mil anos antes de Cristo, e as bases históricas e arqueológicas que temos são muito mais recentes”, comenta Goldfarb. “A parte anterior é mítica, uma história que a gente incorpora como fundamento de nossa tradição mas não corresponde a nada que até o momento tenhamos encontrado em uma base material, com comprovação histórica.”

Ele contextualiza: os textos atribuídos a Moisés foram canonizados por volta do ano 300 a.C., mas a redação dos mesmos deve ter sido feita nos 600 anos anteriores. “Ou seja: se trata de um texto que foi transmitido, provavelmente em pedaços, pela história oral, em regiões diferentes de Israel, e num determinado momento foram consolidados num único livro”, argumenta.

“Isso não impede que, do ponto de vista da religião, a gente tenha o material como algo estruturante, que nos forma, que nos mantem unidos e, de certa forma, com a referência a um único texto, a um único Moisés, ainda que a gente possa dizer cientificamente que não haja relatos desse Moisés.”

“Nada exatamente nos garante que Moisés tenha sido um personagem histórico que de fato viveu toda a narrativa da Torá”, comenta Goldfarb.

Segundo a narrativa bíblica, Moisés teria nascido no Egito, filho de um casal da tribo judaica de Levi. O texto sagrado aponta que, quando ele nasceu, foi mantido escondido por três meses e, então, colocado em um cesto no Rio Nilo. A filha do faraó, então, teria encontrado o bebê e encarregado uma ama — que seria sua mãe natural — de criá-lo.

Ele teria sido, portanto, criado e educado na corte, como um príncipe. Aos 80 anos, entretanto, ele teria se tornado, encarregado por Deus, o libertador de seu povo, conduzindo-o para a “terra prometida”, Canaã, atualmente a região que forma a faixa de Gaza, em Israel.

“Há muitas teorias sobre quem teria sido o Moisés histórico, mas nenhuma conclusão definitiva”, afirma o rabino Lam. “Do ponto de vista tradicional, se levarmos em conta o que está registrado no livro bíblico 1 Reis, de que o êxodo do Egito, liderado por Moisés, ocorreu 480 anos antes do rei Salomão construir o primeiro Templo Sagrado em Jerusalém, por volta do ano 1000 antes da Era Comum, o êxodo teria ocorrido por volta do ano 1480 antes da Era Comum, liderado por Moisés, então com 80 anos. Logo, Moisés, que segundo a Torá viveu por 120 anos, teria nascido em 1560 antes da Era Comum e falecido em 1440.”

Crédito, Domínio Público

Legenda da foto,

Moisés em pintura feita no século 17

“Segundo outra tradição rabínica, Moisés teria vivido entre 1391 e 1271 antes da Era Comum. Segundo uma terceira posição, a do historiador e estudioso da Bíblia Israel Knohl, professor da Universidade Hebraica de Jerusalém e no Instituto Shalom Hartman, em Jerusalém, a escravidão do povo de Israel no Egito provavelmente começou no final do reinado de Ramsés II e o êxodo ocorreu cerca de 400 anos depois, por volta de 1175 antes da Era Comum, quando Moisés teria 80 anos; daqui se supõe que Moisés tenha vivido entre os anos 1255 e 1135”, explica o rabino.

Isto posto, se nem o período em que ele viveu é confirmado, o restante das informações biográficas também é permeado de dúvidas. “Se só temos como estimar que Moisés teria vivido entre 3,1 mil e 3,5 mil anos atrás, sua origem histórica também não é clara”, concorda Lam.

“Tradicionalmente, ele nasceu no Egito, filho de uma família da tribo de Levi, já durante o tempo em que os israelitas eram escravos. Há quem diga, porém, que ele teria sido um conselheiro egípcio do faraó. Outros, que Moisés viria de Mose, cujo significado seria ‘filho’, lembrando que o nome Moshé foi dado pela filha do faraó. Mas a tradição judaica entende que Moshé vem de uma palavra da raiz hebraica e seu sentido é ‘eu o tirei das águas’, referindo-se ao fato de a filha do faraó ter, segundo o texto bíblico, retirado o bebê Moisés das águas do rio Nilo e o criado como o seu filho, o seu ‘moshé’.”

O rabino acrescenta que, na falta de relatos históricos, o que sabemos sobre quem foi Moisés se baseia “nos relatos bíblicos e na leitura rabínica”.

“Foi o maior dos líderes e profetas do povo judeu em todos os tempos, aquele que liderou o êxodo do Egito e a perambulação de 40 anos pelo deserto, enfrentando povos inimigos, adversidades pelo caminho e crises dentro do próprio povo, até ser sucedido por Josué, filho de Nun, e morrer sem entrar na terra prometida”, define. “Mas, historicamente, a partir do que se costuma chamar de história, embora haja muita especulação, não há como definir quem foi Moisés.”

No meio disso tudo, difícil cravar o que ocorreu historicamente e o que acabou sendo perpetuado como uma construção, uma narrativa mítica fundadora de uma religião. “Tantas histórias que podem ter sido reais, do ponto de vista histórico… Ou não”, comenta o rabino.

“Tampouco vejo que se trata de algo lendário, no sentido de uma espécie de não-verdade, mas sim de campos de significados religiosos, espirituais, psicológicos e simbólicos, que carregam lições de humanidade, de crescimento pessoal, de desenvolvimento de liderança que servem de inspiração até os dias atuais. Portanto, verdadeiros.”

“Racionalmente, o que vamos entender é que Moisés foi um grande líder, o iniciador de fato de um povo, na medida que esse povo sai do Egito. Mas isso por volta de 1,2 mil anos antes de Cristo, mais ou menos”, situa o historiador, filósofo e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Contexto

Mas para entender essa construção mítica do personagem é preciso retroceder ainda mais no tempo. E entender o que faziam esses hebreus antigos em território egípcio, afinal. E, principalmente, por que eles decidiriam ou precisaram empreender essa fuga heroica.

É uma história que remonta às origens daquilo que entendemos como civilização, aliás. “Aquilo que a gente poderia chamar de antepassados dos israelitas eram os que habitavam uma região do crescente fértil, uma meia lua cortada por uma série de rios importantes, o Tigre, o Eufrates…”, explica Moraes. É a Mesopotâmia.

Segundo o professor, muito provavelmente esses antepassados eram povos semitas, seminômades, criadores de ovelhas que “durante todo o segundo milênio antes de Cristo circulavam pelas margens semidesérticas daquele entorno”.

Em algum momento entre os século 19 a.C. e 16 a.C., algumas figuras de destaque acabaram se tornando importantes a ponto de ganharem menções, registros, primeiro na história oral, depois em textos. “É o caso de Abraão”, pontua Moraes.

“Isso vai ser importante quando Israel, lá na frente, for contar a história e seus mitos fundamentais. Eles vão recuperar isso: Deus chamou um homem de nome Abraão, ele se estabeleceu ali, criou seus filhos e sua descendência seria o início da formação dos israelitas.”

“Mas num determinado momento, essa grande família enfrentou a fome. O grupo decidiu então migrar para o Egito”, prossegue o acadêmico. “Lá eles ficaram 400 anos. Só que algo que no início era muito favorável, com o passar do tempo deixou de ser interessante. Porque depois de 400 anos, esse povo está submetido a um regime de servidão: estamos falando de algo em torno do século 13 antes de Cristo.”

Moraes endossa o que acreditam certos pesquisadores: que não era um regime de escravidão, mas sim a servidão. Que os antepassados dos israelitas que ali viviam eram obrigados a prestarem serviços ao faraó em troca de poderem usar a terra e terem segurança.

“Aos poucos, esse povo começa a querer sair do Egito e voltar a ocupar aquilo que eles entendem ser a terra prometida por Deus. É aí que aparece a figura de Moisés”, diz Moraes.

“A Bíblia vai chamar de escravidão, mas muito provavelmente o que temos é um regime de servidão. Só que esse regime vai se tornando cada vez mais opressor, o que aumenta o desejo de sair da terra. Aquela família semítica que em algum momento desceu para o Egito já se tornou um grupo de muitos segmentos”, relata ele.

Muito provavelmente isso tudo ocorreu durante o reinado do faraó Ramsés 2o. (1303 a.C. – 1213 a.C.). De acordo com Moraes, “foi um processo complexo de tomada de consciência desse grupo semita”.

Moisés, criado como príncipe, teria assumido o papel de líder, com uma narrativa repleta de sinais divinos e contornos míticos. “Nesse processo de saída do Egito reside o fato fundante, aquilo que determina a identidade de um povo”, analisa o teólogo e historiador.

A demora dos 40 anos se justifica, historicamente: a região de Canaã, antes terra desse povo, já estava ocupada por outros grupos. Era preciso estratégia e força militar para retomar a posse.

“Eles saem do Egito como uma verdadeira confederação tribal, feita de muitos núcleos familiares. Ficam perambulando e não entram [no destino almejado] porque não têm força militar para entrar. O relato bíblico se aproveita disso para mostrar a liderança de Moisés e tudo aquilo que envolve sua figura”, comenta.

Crédito, Domínio Público

Legenda da foto,

Travessia do mar vermelho, em pintura produzida no século 17

Nesse processo, três fatos são fundamentais: a partida, em si, do Egito, depois de uma série de catástrofes, apresentadas como sinais da intervenção de Deus; a célebre passagem pelo mar Vermelho, muito explorada imageticamente mas que, segundo estudiosos contemporâneos, teria sido uma engenhosa obra de tática militar; e o momento em que Moisés supostamente recebe de Deus — e apresenta ao povo — a tábua dos Dez Mandamentos, uma constituição em que, nas palavras de Moraes, “estabelece princípios de adoração e de convivência”.

Identidades e verdades

Na falta de evidências arqueológicas ou registros materiais, há várias possibilidades de entender sobre quem foi Moisés. Ele pode ter sido um grande líder, que foi capaz de unir seu povo insatisfeito e empreender essa viagem de volta às origens, como a tradição consolidou.

Também pode ser a junção de vários líderes, em um processo mais longo — e o tempo acabou sedimentando todas as características em uma só figura.

Outra hipótese é que ele tenha sido um egípcio de fato, derrubando a narrativa de que ele teria sido adotado pela família do faraó — nesse entendimento, ele era, na verdade, filho legítimo da dinastia dominante.

É o que defendeu, por exemplo, o psiquiatra Sigmund Freud (1856-1939), no livro Moisés e o Monoteísmo. “Muita gente defendia a ideia de que Moisés não fosse necessariamente um israelita, um judeu. Mas um egípcio, alguém de dentro da própria dinastia que, de alguma maneira acabou se solidarizando com aquele grupo e conduzindo-o”, aponta Moraes.

“É uma teoria que gera polêmica até hoje, porque os judeus têm dificuldade com isso. Como assim, o grande líder não ser um israelita? De uma maneira geral, Moisés é ‘propriedade’ dos judeus.”

Outro ponto interessante que corrobora a tese de que o relato bíblico é mítico é o fato de que a narrativa em si não é uma história original.

“O relato de seu nascimento pode ser comparado com a epopeia de Sargão da Acádia [antigo rei sumério], um grande conquistador mesopotâmico do século 25 antes de Cristo”, comenta Moraes. “Essa epopeia serve como referência para emoldurar o nascimento de Moisés.”

Segundo a narrativa, quando Sargão nasceu ele foi abandonado às escondidas por sua mãe e posto em uma cesta de junco calafetada. Deixado em um rio, foi levado até o mundo divino, onde uma deusa o teria acolhido e amado.

“Ao tratarem Moisés dessa forma, pretendiam inscrevê-lo como o grande libertador de Israel, no rol dos grandes personagens da história”, compara o historiador. “Quem apresenta Moisés dessa forma está copiando uma longa tradição que vem de muito tempo antes e isso tem a finalidade de mostrar sua predestinação.”

Evidentemente que, diante da precaridade documental, o que fica de “verdade” sobre Moisés é o relato que chegou aos nossos dias. “Dá para cravar quando nasceu? Se era egípcio? Não se sabe. Muito difícil bater o martelo. O que nossa cultura faz é, já que temos acesso ao que ele foi por meio da literatura sagrada, a gente compra o relato do jeito que ele é. Mas uma pesquisa mais aprofundada mostra que não dá para ter tanta certeza”, diz Moraes.

E essas construções permeiam toda a narrativa. No famoso episódio da travessia do mar Vermelho, por exemplo, o imaginário consagrou a ideia de um ato mágico em que duas colunas de água se abrem e o povo passa no meio.

Trabalho científico publicado em 2010 pelo Centro Nacional de Pesquisa Atmosférica dos Estados Unidos, em parceria com a Universidade de Colorado, no periódico Plos One, concluiu que o episódio pode ter sido decorrente de ventos extremamente fortes soprados ao longo de uma noite em uma região onde um afluente do Nilo se funde com uma lagoa costeira do mar. E o episódio “milagroso” poderia ter ocorrido ali.

Uma interpretação mais consolidada é que a travessia mítica tenha ocorrido em uma região marcada por uma cadeia de lagos rasos, repletos de juncos tolerantes à água salgada.

“Os judeus fugiram e as rodas das carroças dos soldados egípcios que os perseguiam ficaram atoladas, não permitindo que eles seguissem adiante. Foi uma estratégia militar”, comenta Moraes.

Para o pesquisador, “criou-se a ideia de que Deus esteve com o povo mas há toda uma polêmica sobre o ato miraculoso”. “O milagre talvez esteja na estratégia bem sucedida, em como um povo de trabalhadores braçais conseguiu ludibriar um exército profissional. Isto é de fato miraculoso”, aponta ele.

De qualquer forma, o relato se fez necessário como “fato fundante” do novo povo. “Sem isso, não seria possível a constituição do povo de Israel”, afirma o historiador.

“A confederação tribal que sai do Egito precisa crer que Deus está com eles, que eles recebem uma lei de Deus, que quer ser o Deus deles, e eles serão o povo desse Deus. Então, está tudo certo. A visão religiosa precisa ter esses elementos todos porque são elementos que agregam, que dão identidade”, analisa Moraes.

Moisés é protagonista e também é produto disso. “O que aconteceu com ele é envolto nesse processo de constituição identitária de um povo. Ele existiu, foi um líder importante, conduziu esse povo, se colocou como uma espécie de legislador”, contextualiza. “Tudo o mais registrado sobre ele entra no terreno da fé.”

Já assistiu aos nossos novos vídeos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!