• Edison Veiga
  • De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil

Crédito, Domínio Público

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Madre Paulina, em foto de época

Líder máximo da Igreja Católica por 26 anos, o papa João Paulo 2º (1920-2005) gostava de fazer novos santos. Seu pontificado canonizou 482 pessoas — recorde só superado pelo atual sumo sacerdote, papa Francisco.

Com a ideia de mostrar que santos poderiam estar em todas as partes do globo, João Paulo 2º também reservou a honra dos altares para muitos que viveram fora da Europa — onde, por causa da tradição e da própria história do cristianismo, nasceram a maior parte dos santos católicos.

Em 19 de maio de 2002, há exatos 20 anos, o Brasil ganhou sua primeira santa. Uma santa nascida em uma cidade onde hoje é a Itália, é verdade. Mas que, pouco antes de completar 10 anos de idade, mudou-se com a família para o Brasil, em busca de uma vida melhor. Uma santa imigrante. Uma santa cuja biografia se assemelha a dos antepassados de boa parte dos brasileiros.

“Ela nasceu na região de Trento, na Itália [na pequena cidade de Vigolo Vattaro, na época parte do Império Austríaco] e mudou-se para [a hoje chamada de] Nova Trento, em Santa Catarina. Sua família fez parte dessa onda de imigração do final do século 19, em que europeus vieram ao Brasil fugindo da pobreza e da fome. A história de muitos antepassados de todos nós”, comenta o estudioso de hagiografias Thiago Maerki, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e associado da Hagiography Society, dos Estados Unidos.

Biografia

Seu nome de batismo era Amabile Lúcia Visintainer. Ela nasceu em 16 de dezembro de 1865, em uma família pobre na região trentina do Tirol. Em 1875, quando ainda não havia completado 10 anos, seus pais decidiram se mudar para o Brasil, na onda de imigração europeia que então estava em seu início.

Conforme conta Maerki, a menina que já demonstrava muita vocação religiosa viu sua espiritualidade aumentar ainda mais quando a mãe morreu, dois anos depois da chegada ao novo país. “Ela passou também a ajudar o pai, assumindo as tarefas de casa”, narra ele.

“A descrição que aparece nas hagiografias é de uma moça, uma jovem, muito devota, muito religiosa, muito apegada à oração”, diz o pesquisador. “Esse caráter da santidade, como é comum a muitos santos, começou a aflorar quando ela ainda era muito nova.”

“Quando [os Visintainer] chegaram ao sul do Brasil, encontraram uma terra inóspita e difícil de ser cultivada, o que exigia a união de todos”, comenta o escritor J. Alves, graduado em teologia, titular da cadeira Santa Madre Paulina da Academia Brasileira de Hagiologia e autor de, entre outros livros, ‘Os Santos de Cada Dia’.

“Foi nesse ambiente de luta, de trabalho constante e resiliente, e de cooperação, que se forjou a alma de irmã Paulina”, acrescenta ele. “Essa realidade vivida pela sua família é também o cenário da maior parte das famílias brasileiras, que enfrentam dificuldades e buscam oportunidades de uma vida melhor. O exemplo de contínua superação de Santa Paulina atrai e leva a alma brasileira a se identificar com ela, que tão brasileira se tornou, ao ser proclamada a primeira santa em terras brasileiras.”

Segundo Alves, isso ainda “mostra que a santidade, a busca sincera de Deus, está em toda parte”.

Em 1890, a jovem fundou uma nova congregação para religiosas, na companhia de uma amiga. “Em um casebre, elas acolheram uma senhora que estava com câncer, em fase terminal. Esse cuidado aos doentes é, portanto, uma marca da fundação da Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição”, observa Maerki.

Cinco anos mais tarde, quando Amabile já havia assumido o nome religioso de Paulina do Coração Agonizante de Jesus, os princípios da instituição já estavam escritos: o serviço aos pobres e os cuidados aos enfermos e idosos.

Em 1903, Paulina trocou Santa Catarina pela capital paulista. Instalou-se no bairro do Ipiranga e passou a se ocupar da assistência a crianças órfãs e ex-escravizados que não tinham onde morar.

“Com esse trabalho ela logo recebeu apoio de vários padres e também ajuda de benfeitores. Enquanto isso, a congregação fundada por ela crescia, tanto em Santa Catarina quanto em São Paulo”, relata Maerki.

“Essa ajuda aos pobres, aos doentes, aos idosos, aos órfãos e aos ex-escravizados se tornaram sua missão, principalmente em uma época que esses eram a escória da sociedade, não tinham para onde ir, não tinham quem cuidasse deles. Eram pessoas abandonadas, à margem da sociedade”, pontua o pesquisador. “Essa é a mensagem de Madre Paulina para o mundo de hoje: ajudar os que estão mais necessitados, principalmente aqueles que não têm quem olhe por eles.”

Crédito, Cicero Moraes

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Madre Paulina, em reconstituição digital feita por Cicero Moraes

Maerki conta que a religiosa era “uma mulher muito firme”, “decidida”, “dona de si”. “Sabia muito bem com quem lidava e, por sua atuação, incomodou muita gente, principalmente a elite burguesa paulistana e também pessoas da alta hierarquia da Igreja”, afirma.

Paulina seguiu na capital paulista pelo resto da vida. Nos anos 1930, passou a enfrentar sérios problemas de saúde, principalmente em decorrência de complicações com a diabetes. Ela sofreu várias amputações e perdeu completamente a visão. Morreu em 9 de julho de 1942.

Santa Paulina

Reconhecida pelos que com ela conviveram como uma mulher santa, ela teve seu processo de canonização aberto pela Igreja, foi beatificada em outubro de 1991 e, finalmente, declarada oficialmente santa pelo papa João Paulo 2º em 19 de maio de 2002.

“Evidentemente que houve a aprovação [pelo Vaticano] de dois milagres. O primeiro possibilitou sua beatificação; o segundo a canonização. Mas, além dessas importantes sinais de sua santidade, Paulina se tornou santa com seu próprio testemunho de vida”, comenta o hagiólogo José Luís Lira, fundador da Academia Brasileira de Hagiologia e professor da Universidade Estadual Vale do Aracaú, do Ceará. “[Ela vivenciou] o amor aos mais necessitados, especialmente os doentes, [e cumpriu] a vontade de realizar o desejo manifesto a ela por Nossa Senhora [em três sonhos relatados por ela] de fundar a Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição.”

J. Alves ressalta que Paulina “se tornou santa porque fez aquilo que todos os santos fizeram durante suas vidas e cada cristão deveria fazer: dar testemunho do Evangelho, colocando-se inteiramente a serviço do próximo, especialmentes os mais necessitados e desvalidos”.

“A vida de irmã Paulina foi um sinal visível e concreto da ternura e misericórdia de Deus Pai, no meio de sua gente. Ainda pequena cuidava da avó enferma. Já em terras brasileira, assumiu os trabalhos de casa depois que a mãe faleceu, cuidava da idosa que sofria de câncer. Pegou na enxada e trabalhou duro na lavoura, criou associações de trabalho comunitário, de um casebre fez um hospital. Sem estudo, sem dinheiro, confiada na Providência Divina, com algumas amigas fundou a Congregação das Irmãzinhas do Imaculado Coração, que tanto bem tem feito à nossa gente”, pontua o escritor.

Mesmo não tendo nascido no Brasil, é considerada a primeira santa brasileira. “Isto porque alguns santos são mais marcados pelo lugar de atuação pastoral do que pelo lugar de nascimento. Ela nasceu na atual Itália, mas teve todo o apostolado no Brasil, por isso é considerada uma santa brasileira de fato”, argumenta Maerki.

Lira ressalta que, assim como o fez em seu livro A Caminho da Santidade, ele defende que “a pátria do santo é determinada pelo local do seu novo nascimento, ou seja, do seu falecimento, do ‘retorno à Casa do Pai'”. “E, ainda, onde este desenvolveu suas atividades, exercendo as virtudes cristãs”, argumenta.

“Então, a pátria de Santa Paulina é o Brasil, onde ela viveu desde tenra idade e onde ela entregou sua vida terrena nos braços do Pai Altíssimo. Tenho um vídeo quando da aprovação da imagem reconstruída de Santa Paulina, da grande Irmã Célia Bastiana Cadorin, postuladora [defensora da causa de canonização junto ao Vaticano] de Santa Paulinha e de Santo Antonio Galvão, no qual ela afirma que Santa Paulina era ‘brasileira, brasileira'”, acrescenta Lira.

“Por quê? Porque quando o governo brasileiro determinou que todo estrangeiro se declarasse ou então seria automaticamente naturalizado brasileiro [no decreto chamado de Grande Naturalização, de dezembro de 1889], a santa não o fez, sendo, portanto, naturalizada brasileira. Além de que, depois que ela chegou ao Brasil, com 9 anos de idade, nunca mais saiu do Brasil, sendo aqui sua verdadeira Pátria!”

Reconstituição

Para Maerki, é importante ressaltar que a canonização de Paulina, há 20 anos, é compatível com um momento em que a Igreja tem procurado se tornar menos eurocêntrica, reconhecendo santos de outras regiões do mundo. “De lá para cá, percebe-se mais portas abertas para a canonização de santos de outros lugares que não sejam ligados à Europa. Ela é um marco dessa nova tendência, desse novo entendimento de Igreja, de pensar que a santidade não depende de um lugar específico, mas pode acontecer em qualquer lugar”, comenta.

Crédito, Acervo José Luís Lira

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Lira e Moraes, com o crânio da santa, em 2015

Em 2015, o hagiólogo Lira coordenou um trabalho de reconstituição facial forense da santa, efetuado com análise feita pelo antropólogo Marcos Paulo Salles Machado e modelagem tridimensional realizada pelo designer Cícero Moraes. Os pesquisadores tiveram acesso aos restos mortais da santa, sepultados em cripta no convento do Ipiranga. Para realizarem a reconstituição, tiraram 120 fotos do crânio.

O resultado foi aprovado pela Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição. Madre Paulina ganhou dois bustos hiper-realistas — um está em seu memorial oficial, contíguo ao convento, no bairro paulistano do Ipiranga; outro, em Nova Trento.

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