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Fausto e Lilith, por Richard Westall, 1831

  • Author, Dalia Ventura
  • Role, BBC News Mundo

“Quem é aquela?”

“Olhe bem, é Lilith.”

“Quem?”

“A primeira mulher de Adão. Não se apaixone por seu cabelo lindo, por mais que seja um rico adorno que contribui para a sua beleza, porque quando ela usa para alcançar um jovem, ela nunca o solta”.

Assim disse Mefistófeles a Fausto no magistral drama teatral de Johann Wolfgang Von Goethe de 1808, uma descrição com a qual a própria Lilith não concordaria muito.

Ao longo dos séculos, diversos relatos a retrataram como tendo sido a “primeira mulher do Paraíso”. Mas, ao contrário de Eva, não foi criada de Adão ou para Adão. E Lilith estava muito consciente disso.

Sua história foi se modificando de uma tímida lenda para a de uma heroína. Ela inspirou desde encantamentos e exorcismos até literatura e música, e hoje em dia caminha livremente pelo mundo dos videogames.

A mulher desaparecida

No contexto da Bíblia, Lilith nasceu de um vazio.

Seu nome aparece apenas uma vez, em Isaías 34:14.

“Os gatos selvagens se juntarão a hienas, e um sátiro clamará ao outro; ali também repousará Lilith e encontrará descanso.”

Mas nos manuscritos do Mar Morto, o testemunho mais antigo do texto bíblico encontrado até agora, Lilith também aparece na “Canção para um sábio”, um hino possivelmente usado em exorcismos.

Apesar das poucas menções, para os judeus, a Torá – os Cinco Livros de Moisés ou o Pentateuco do Antigo Testamento para os cristãos – deve ser interpretada como a fonte das principais leis e da ética, já que é considerada uma forma de revelação divina para a humanidade.

E há um fragmento no Gênesis (1:27) que suscita muitas dúvidas e várias interpretações: “E Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. E Deus os abençoou, e disse: frutificai e multiplicai-vos”.

Isso ocorre no sexto dia da Criação. No sétimo, Deus descansou.

Mais adiante, conta que ele colocou “o homem que havia se formado” no Éden, e só depois…

2:18 “E disse o senhor Deus: Não é bom que o homem esteja sozinho; darei uma ajuda idônea a ele.”

2:21 “E o senhor Deus fez um sono profundo cair sobre Adão, e ele adormeceu. Então ele pegou uma de suas costelas e fechou a carne em seu lugar;

2:22 e da costela que Deus tomou do homem, fez uma mulher e a levou ao homem”.

O que aconteceu com aquela fêmea criada no sexto dia?

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No Renascimento, Michelangelo retratou Lilith na Capela Sistina, enrolada em torno da Árvore do Conhecimento

Da Babilônia para a Bíblia

Uma interpretação é que esse primeiro ser criado era andrógino, uma criatura que era simultaneamente homem e mulher e foi separada depois.

Outra leitura é de que houve duas Evas: Adão não gostou da primeira e Deus a substituiu por outra.

Embora esta última versão tenha surgido cedo, a associação com Lilith demorou a aparecer, apesar de ela já estar viva no imaginário da região há pelo menos um milênio e meio antes de a Bíblia começar a ser escrita (séculos VI-V a.C).

A menção mais antiga ao seu nome aparece na Epopeia de Gilgamesh – a mais antiga obra épica escrita – e em “A Árvore Huluppu”, um poema épico sumério encontrado em uma tabuleta em Ur que remonta a aproximadamente 2 mil a.C.

Como escreveu a especialista em literatura bíblica Janet Howe Gaines, “suas origens obscuras estão na demonologia babilônica, onde amuletos e encantamentos eram usados para neutralizar os poderes sinistros deste espírito alado que atacava mulheres grávidas e bebês”.

“Lilith logo migrou para o mundo dos antigos hititas, egípcios, israelitas e gregos.”

Isso provavelmente explica por que no Livro de Isaías ela aparece sem nenhuma apresentação: uma indicação de que o escritor confiava que os leitores a conheciam.

Também foi mencionada no Talmude da Babilônia (cerca de 500-600 d.C.), uma coletânea de discussões, relatos de grandes rabinos e meditações sobre passagens da Bíblia.

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Vitral de Adão, Eva e Lilith no Jardim do Éden, Catedral de Auxerre, França

Essa Lilith talmúdica tinha, como a babilônica, cabelos longos e asas, e encarnava práticas sexuais insalubres.

Existem outros textos posteriores que incorporam Lilith na história da criação, como o Zohar, escrito por volta de 1300 d.C. na Espanha, um dos dois livros fundamentais do pensamento místico judaico conhecido como Cabala.

Esse texto afirma que essa criatura andrógina inicial foi dividida, criando seres humanos distintos: o homem, Adão, e a mulher, “a Lilith original, que estava com ele e concebeu dele”.

Quando viu Adão com sua rival Eva, em um ataque de ciúmes, ela foi embora, transformando-se em um súcubo que seduzia homens solitários e roubava seu sêmen para gerar crianças demoníacas, deixando-as infectadas com doenças.

Mas foi um texto anônimo escrito em algum momento entre os séculos VIII e X que acrescentou mais detalhes sobre esse primeiro relacionamento.

Diferenças irreconciliáveis

No “Alfabeto de Ben Sirá”, Lilith é a protagonista de um episódio que conta que quando Ben Sirá foi atender o filho doente do rei Nabucodonosor da Babilônia, inscreveu um amuleto com os nomes dos três Anjos da Saúde: Senoy, Sansenoy e Semangelof.

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Tigela mágica com texto de encantamento para afastar o demônio Lilith, século V-VI

Quando Nabucodonosor perguntou quem eram os anjos mencionados no amuleto, Ben Sirá contou que pouco depois de Deus criar o homem, Adão, e a mulher, Lilith, eles começaram a discutir.

Lilith: “Não me deitarei por baixo.”

Adão: “Não me deitarei debaixo de ti, mas acima de ti, porque és apenas digna de estar na posição inferior enquanto eu, na superior.”

Lilith: “Somos iguais, pois ambos fomos criados da terra.”

Quando Lilith se deu conta de que não chegariam a um acordo, ela pronunciou o Tetragrama – as sílabas sagradas do nome inefável de Deus – e voou para longe.

Adão orou ao seu Criador e disse: “Senhor do Universo, a mulher que me deste fugiu de mim!”

Deus então enviou os três anjos para dizer a ela que, se não voltasse, cem de seus filhos morreriam diariamente.

Lilith, no entanto, se recusou e disse que havia sido criada para “enfermar as crianças: se são meninos, do nascimento até o oitavo dia de vida terei poder sobre eles; se são meninas, desde o nascimento até o vigésimo dia”.

Mas ela jurou que cada vez que visse nos bebês os nomes ou imagens dos anjos em um amuleto, não faria mal.

Essa é a versão mais conhecida da passagem de Lilith pelo Paraíso. E a mais polêmica.

Isso porque muitos estudiosos não reconhecem “O alfabeto de Ben Sirá” como uma representação do pensamento rabínico.

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Detalhe de “Lilith” de John Collier (1887)

Alguns até o consideram uma peça deliberadamente satírica que zomba da Bíblia, do Talmude e de outras exegeses rabínicas, pois sua linguagem é muitas vezes vulgar e seu tom, irreverente.

O relato de Lilith em si leva a debates sobre mitologia versus história, textos sagrados e adições não sagradas, assim como a discussões controversas entre aqueles que consideram a Bíblia como a Palavra de Deus e aqueles que a veem como parte do rico acervo cultural universal que admite não só uma história de origem, mas muitas outras.

Mas se lembrarmos que estamos percorrendo os caminhos de histórias antigas, a versão de Ben Sirá tem um valor particular.

Embora a segunda parte dessa narrativa restabeleça Lilith como o demônio alado conhecido, a disputa em que Adão se recusa a admitir que são iguais apresenta uma mulher que se rebela contra a “ordem natural”.

Uma mulher que preferiu renunciar ao Paraíso em vez de seus direitos; e mais, ela foi viver no Mar Vermelho, o mesmo que se abriu para libertar os judeus da escravidão.

Tudo isso no início do período Medieval.

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“Somos Lilith!”, diz o cartaz de garota em uma passeata na França, em 2018

Essas poucas linhas do relato de Ben Sirá explicavam por que Eva foi então criada da costela de Adão e instruída a obedecê-lo.

Mas além disso, por que Lilith passou de um demônio tão temível a um ícone do feminismo, em si tão temido.

Por milênios, Lilith tem continuado a voar pelo mundo com essas asas que ganhou quando não pôde ser igual, refletindo a visão que sucessivas gerações têm da mulher.

Uma mostra é o soneto que o artista Dante Gabriel Rossetti escreveu no século XIX para acompanhar a sua admirada obra “Lady Lilith”.

“Imóvel permanece; jovem, enquanto o mundo envelhece; e, delicadamente ensimesmada, atrai os homens a contemplar a rede brilhante que tece, até que seu coração e corpo e vida com ela fiquem presos”.

– Este texto foi publicado em