Os hereges não são o que costumavam ser.
Como muitas outras palavras, “heresia” vem do grego. E, como ocorreu com diversos termos ao longo da evolução dos idiomas, ela se afastou do seu significado original.
Mas, neste caso, o termo deixou de ser essencialmente neutro para se tornar uma condenação que poderia ser fatal.
O mais curioso é que tudo começou com Jesus Cristo, quando o pregador e líder religioso judeu desafiou as autoridades do seu tempo ao se declarar filho de Deus.
Teria ele sido considerado um herege, no sentido que conhecemos hoje?
“Heresia” vem do grego haireo, que significa “eu escolho”, ou haeresis, “algo que foi escolhido”, particularmente por médicos e filósofos.
“Se você pertencesse a uma determinada escola de medicina – a do médico Galeno, por exemplo: se você fosse seguidor dessa escola, você pertenceria à heresia de Galeno”, explica a classicista Catherine Nixey, autora do recém-lançado livro Heresy: Jesus Christ and the Other Sons of God (“Heresia: Jesus Cristo e os outros filhos de Deus”, em tradução livre).
O termo indicava simplesmente a escolha de seguir uma tradição reconhecida de pensamento e prática médica. E podia ter conotações positivas, já que sugeria que você usava o seu intelecto para tomar decisões independentes.
Isso não significa que não houvesse discussões, até acaloradas, a este respeito. Mas, no caso de um herege platônico que não estivesse de acordo com um estoico, o que se reprovava eram as ideias, não a escolha pela heresia – até porque os dois eram hereges.
“A heresia era uma escolha”, explica Nixey. “Mas, quando surgiu o Cristianismo, a escolha imediatamente se tornou algo ruim.”
“Porque Jesus disse: ‘Eu sou o caminho, a verdade e a vida’. Ele não disse: ‘Sou um dos caminhos, uma das verdades, uma das vidas’. Por isso, ele não permitiu outras escolhas”, declarou Nixey em entrevista à BBC.
A nova fé começou a atrair cada vez mais adeptos. Em poucos séculos, ela cativaria o Império Romano, que inicialmente a havia rejeitado. E, com uma só verdade, era fundamental que não houvesse lugar para dúvidas.
Mas qual era essa verdade?
Muitas verdades
O Cristianismo nasceu na região oriental do Império Romano, onde havia muitas “verdades”.
Os deuses eram muitos – os próprios romanos adoravam 12 deuses principais e dezenas de outros menores. E, como politeístas, em princípio não viam nada de fundamentalmente ruim na existência de outras divindades, de forma que vários deuses locais se somaram aos seus próprios.
Mas o politeísmo não era o problema mais grave para a nova fé cristã. A maior ameaça para as autoridades eclesiásticas seriam os inimigos internos: os hereges.
Levou algum tempo para que a palavra assumisse o significado atual. Afinal, não se pode ser herege, no sentido cristão, sem se desviar de uma ortodoxia – que vem do grego orthódoxos, “de opinião ou crença correta”. E este processo não foi automático.
Inicialmente, “foram contadas muitas histórias diferentes sobre Jesus”, explica Nixey. “Houve muitas, muitas, muitas versões diferentes”, incluindo algumas que não o retrataram de forma tão favorável.
Entre os textos considerados apócrifos, existe, por exemplo, o “Evangelho da Infância de Tomé”, escrito em meados do século 2º d.C. Nele, o pequeno Jesus “aniquila os que os irritam e destrói os que simplesmente o aborrecem”, segundo a historiadora.
É uma situação tão difícil que “José diz a Maria: ‘Não deixe que ele saia pela porta porque todos os que o provocarem morrerão'”.
Além da proliferação de histórias, houve uma série de interpretações, que geraram “diferentes tipos de Cristianismo primitivo”.
Os manuscritos de Nag Hammadi, encontrados no Egito em 1945, são um exemplo dessa ampla variedade de pontos de vista religiosos dos primeiros cristãos.
Os gnósticos, por exemplo, acreditavam que o mundo real era ruim, incapaz de conter ou se originar de uma verdadeira divindade. Por isso, na visão deles, Jesus não teria realmente estado na Terra – o que se viu foi um espectro, como conta um artigo da Universidade de Utah, nos Estados Unidos.
Para os gnósticos, os cristãos deveriam encontrar seu próprio caminho para o céu, explorando seus sentimentos pessoais, sem participar de rituais vazios que não contam com a aprovação clara de Cristo.
Depois de alguns séculos, os gnósticos foram silenciados e eliminados, mas surgiriam outros inimigos internos ainda mais perigosos, especialmente os seguidores do arianismo, uma doutrina mais organizada e influente, disposta a questionar a ortodoxia.
Eles chegaram a desafiar nada menos que as decisões da Igreja sobre a natureza da divindade de Jesus.
Uma instituição que vinha ganhando cada vez mais poder no mundo precisava adotar uma única versão – uma verdade que facilitasse o recrutamento das pessoas convertidas e que fizesse a separação entre “eles” e “nós”, até mesmo dentro das suas próprias fileiras.
Por isso, a heresia havia deixado de ser uma escolha.
Alta periculosidade
No ano 381, o imperador Teodósio 1º (346-395), do Império Romano do Oriente, publicou um decreto estabelecendo que todos os seus súditos deveriam aceitar a crença na Trindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo:
“Autorizamos os seguidores desta lei a assumir o título de cristãos ortodoxos; mas, quanto aos demais, como, a nosso ver, são loucos e tolos, decretamos que serão marcados com o nome ignominioso de hereges”, determinou o imperador Teodósio.
“O decreto definiu a ortodoxia cristã e pôs fim a um amplo e animado debate sobre a natureza da Divindade. Todas as outras interpretações foram declaradas heréticas”, explica o historiador Charles Freeman, autor do livro AD 381: Heretics, Pagans and the Dawn of the Monotheistic State (“381 d.C: heréticos, pagãos e o nascimento do Estado monoteísta”, em tradução livre).
“Pela primeira vez em mil anos de civilização greco-romana, o livre pensamento foi suprimido de forma inequívoca”, destaca ele.
Foi assim que o termo que significava “escolha” se transformou, no reinado da Igreja cristã, em “erro”. Qualquer questionamento ou desvio da ortodoxia era uma heresia, no seu novo significado.
“Escolher passou a ser considerado algo ruim”, segundo Nixey. “Mais do que ruim, era maléfico.”
“Nos textos sobre os hereges, eles são frequentemente representados como serpentes ou insetos”, explica ela. “São coisas que prejudicam você. São um veneno, uma gangrena, algo que é preciso, cortar, retirar e destruir.”
“Santo Agostinho tem uma frase memorável. Ele disse que os hereges são aqueles a quem a Igreja evita como se fossem merda.”
A estudiosa observou que, ainda no início, apenas 50 anos depois que os cristãos chegaram ao poder, cidades inteiras de hereges foram massacradas em parte do Império Romano. Textos como o Código Teodosiano, promulgado por Teodósio 2º (401-450) no ano 438, são a maior evidência dessa perseguição.
“O último livro está repleto de leis contra os hereges”, explica ela. “Ele diz que eles serão multados com tal quantidade de ouro, serão açoitados com chumbo e pesos, perderão suas casas, perderão seu trabalho, serão expulsos das cidades e serão exilados.”
“Existem ameaças de violência física, mas a pressão social tem efeito poderoso, de forma que uma das primeiras coisas que eles fazem para reprimir os hereges é ameaçar seus meios de vida.”
“Mais tarde, às vésperas da Inquisição, tudo se intensifica”, prossegue Nixey. “Naquele período, a heresia era uma palavra extremamente perigosa.”
Mais uma transformação
As acusações de heresia não se limitaram à doutrina puramente religiosa.
Grant Bartley, editor da revista Philosophy Now, destaca no artigo The Truth about Heresy? (“A verdade sobre a heresia?”, em tradução livre) que as autoridades tinham razão para temer os hereges.
Por um lado, eles desafiavam o “‘pensamento puro de acordo com a verdade’ que as autoridades queriam promover” e, por outro lado, porque “se os hereges demonstrarem que as crenças oficiais expressas pela autoridade estão erradas, a autoridade perde toda a sua razão de ser”.
Isso explica por que os cardeais da Igreja Católica tentaram silenciar Galileu (1564-1642).
A ideia de que a Terra gira ao redor do Sol – como garantiu o astrônomo italiano considerado herege pela Inquisição – claramente não colocava em perigo as almas das pessoas, mas contradizia o que a Igreja dizia na época que era verdade. E isso ameaçava prejudicar o seu poder, que se estendia a todos os campos.
Com o passar dos séculos, a palavra “herege” começou a ser usada não só para descrever o desafio às autoridades religiosas, mas a outros tipos de autoridades.
A segunda definição do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa indica que, “por extensão”, “herege” significa “que ou quem adota ou sustenta ideias, opiniões, doutrinas etc. contrárias às admitidas (por um grupo)”. E não foi esta a única definição que foi alterada ao longo do tempo.
Seu antônimo “ortodoxo” aparece, no mesmo dicionário, como significando “que professa os padrões, normas ou dogmas estabelecidos, tradicionais” ou “indivíduo que segue rigorosamente qualquer doutrina estabelecida”.
Fonte: BBC
Você precisa fazer login para comentar.