- Author, Rafael Abuchaibe
- Role, BBC News Mundo
Enquanto o poderoso imperador francês Napoleão Bonaparte (1769-1821) passa suas tropas em revista numa planície no norte de Itália, dois jovens crioulos — como eram chamados os filhos de famílias espanholas proeminentes nascidos nas colônias americanas — aproximam-se dele o máximo que podem.
Ficam maravilhados com a grandeza do espetáculo, mas sobretudo com a simplicidade do homem que têm a poucos metros de distância.
“Talvez Napoleão, que nos observa, suspeite que somos espiões”, comenta um deles.
Mas o outro está estático, paralisado.
“Coloquei toda minha atenção em Napoleão, e só vi ele em meio a toda aquela multidão de homens que estavam ali reunidos”, relataria o libertador Simón Bolívar (1783-1830) anos depois ao soldado Luis Peru de Lacroix, que publicou os testemunhos em seu livro Diário de Bucaramanga.
“A minha curiosidade não podia ser satisfeita, e garanto a vocês que, naquela altura, estava muito longe de prever que um dia seria também objeto da atenção, ou se quiserem, da curiosidade de quase todo um continente e, pode-se dizer, do mundo inteiro.”
Invasão à Espanha
Em 1807, Napoleão tinha controle quase completo sobre a Europa continental depois de derrotar as tropas do czar Alexandre 1º e de Francisco 1º da Áustria na Batalha de Austerlitz (2 de dezembro de 1805), e chegou a um acordo com a Espanha para invadir Portugal.
Portugal era o único país da Europa que ainda mantinha rotas comerciais com o Reino Unido e, ao fechá-las, a França conseguiria deixar a Grã-Bretanha cercada e isolada do continente.
Encorajado por consecutivas vitórias militares, Napoleão decidiu que seria melhor para ele tomar a Espanha do que associar-se a ela, e assim consolidar o controle absoluto sobre a Península Ibérica.
Em maio, Napoleão convidou o rei Fernando 7º e sua família para a cidade francesa de Baiona: ele forçou o rei a abdicar para instalar seu irmão José Bonaparte no lugar.
Estes acontecimentos desencadeariam a sangrenta Guerra de Independência Espanhola, na qual durante cinco anos as tropas espanholas, britânicas e portuguesas enfrentariam os invasores franceses.
“Isso é muito complicado para nós entendermos, porque nunca vivemos sob um reinado, mas se você pensar como um espanhol da época, para quem os reis eram uma espécie de semideuses, a ausência do rei gera muitas incertezas”, diz Rubén Torres, cientista político da Universidade Nacional Autônoma do México (Unam) e especialista em história latino-americana.
Essas incertezas levaram a um processo de grandes transformações internas na Espanha que, por sua vez, teria impacto direto nas colônias americanas.
“E é esta crise política vivida entre 1808 e 1814 que levará à independência de muitas nações, quase a maioria das nações latino-americanas.”
Vazio de poder
Os ideais da Revolução Francesa e da Revolução Americana do final do século 18 poderiam ter sido os precursores do sentimento de independência latino-americano, mas sem o vácuo de poder que ocorreu em Espanha com a invasão francesa, os acontecimentos poderiam ter sido muito diferentes.
O historiador Jean Meyer afirma que Napoleão foi uma espécie de “acidente histórico” que acabou por precipitar independências “prematuras”.
“[Napoleão] é um terremoto. Ele não apenas sequestra a família real [espanhola], criando um vácuo político e deixando a América órfã, mas também conquista a Espanha.”
Sob a ocupação francesa, o poder na Espanha foi dividido em “juntas”, órgãos locais que exerciam o poder legislativo e executivo nos seus territórios em oposição ao regime imposto pela França. Essas juntas não reconheciam a autoridade do rei José Bonaparte.
Em setembro de 1808, foi formado um Conselho Supremo Central e Governamental do Reino, como repositório do legítimo poder espanhol.
Entre 1808 e 1810, na maioria das colônias da América Latina, os crioulos também promoveram o estabelecimento de conselhos de governo locais fiéis à pessoa de Fernando 7º.
Depois da guerra, e apesar do regresso ao trono de Fernando 7º, o triunfo dentro desses conselhos das ideias liberais e republicanas levou à adoção de reformas políticas, econômicas e administrativas que levariam à independência das nações latino-americanas.
Família real portuguesa no Brasil e apoio inglês
Em 1807, com o país invadido pelas tropas francesas, a família real de Portugal — os Bragança — tomou uma decisão inédita: protegida por navios britânicos, mudou-se para sua colônia no novo mundo e transformou o Rio de Janeiro no centro do governo.
Isso abriria uma porta inestimável para o Reino Unido negociar com o Brasil, escapando ao bloqueio que Napoleão impôs à Europa.
Ao mesmo tempo, Londres pressionou as autoridades espanholas durante a guerra para permitir às colônias americanas o livre comércio com fornecedores britânicos.
Isso deu à América Latina um novo aliado com quem negociar sem ter de depender da Espanha, deixando enormes lucros tanto para os britânicos como para as colônias, que aproveitariam a nova riqueza para promover os esforços de independência.
No ano da morte de Napoleão, em 1821, o apoio inglês à independência latino-americana era tal que o chanceler britânico da época, George Canning, assegurou: “A América espanhola é livre e, se não estivermos redondamente enganados nos nossos assuntos, é inglesa.”
Napoleão e Bolívar
Apesar do imenso impacto que ver Napoleão pessoalmente teve no jovem Simón Bolívar, o professor Torres garante que houve uma grande diferença entre os dois.
“Ambos devem ter sido personagens extremamente carismáticos, extremamente inteligentes (…) mas o que vai caracterizá-lo é que ele [Bolívar] é um libertador com ideias: isso fica muito evidente nos seus textos, na carta da Jamaica, no discurso de Angostura, no manifesto do Carupano, ou seja, ele é um cara que tem uma visão.”
Torres explica que as ideias e preocupações de Bolívar o fizeram ir “mais longe” do que o restante dos libertadores que tentavam construir nações “na hora, sem ter clareza sobre para onde estavam indo”.
“[Bolívar] tentou ir além do resto dos libertadores na construção das nações modernas, do que chamaríamos de Estados-nação modernos. Bolívar considerou a geração das instituições políticas, ou seja, Parlamentos, Assembleias, Congressos. Ele também tinha preocupações como saúde e educação. Ele foi um líder a frente de seu tempo, em muitos aspectos.”
Apesar de ter expressado sua admiração por Napoleão, seria o próprio Bolívar quem contaria o que sentiu quanto o francês se auto-coroou imperador, segundo a biógrafa Marie Arana em seu livro Bolívar: Libertador da América.
“Considerei a coroa que Napoleão colocou em sua própria cabeça uma relíquia lamentável e obsoleta. Para mim, sua grandeza estava na sua aclamação universal, no interesse que sua pessoa podia inspirar.”
“Confesso que tudo isso só serviu para me lembrar da escravidão do meu próprio país, da glória que pertenceria a quem o libertasse. Mas estava longe de imaginar que eu seria esse homem.”
Fonte: BBC
Você precisa fazer login para comentar.