- Author, Ángel Bermúdez
- Role, BBC News Mundo
- Twitter, @angelbermudez
Para muitos cubanos, é como um déjà vu de uma experiência bastante traumática.
A ilha vive uma recessão econômica há vários anos que afeta a produção de alimentos, a disponibilidade de medicamentos, e é acompanhada por uma inflação na casa dos três dígitos.
O peso cubano está em constante desvalorização. Há apagões. A economia não tem um aliado internacional que permita um alívio financeiro. Há também protestos sociais e emigração em massa.
O presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel, reconheceu em sua conta no X (antigo Twitter) que “várias pessoas manifestaram insatisfação com a situação do serviço de energia elétrica e de distribuição de alimentos”, mas acusou os inimigos da Revolução de tentarem se aproveitar deste contexto para fins desestabilizadores.
“Em meio a um bloqueio que pretende nos sufocar, continuaremos trabalhando em paz para sair desta situação”, acrescentou Díaz-Canel.
No chamado Período Especial, os cubanos viveram aquele que foi provavelmente o momento econômico mais difícil desde o triunfo da Revolução em 1959.
O jornalista Pascal Fletcher, que foi correspondente em Havana naquela época, e atualmente é analista da BBC Monitoring, relembra algumas das mudanças mais visíveis que aconteceram naquele período.
“Naquela crise econômica que o então líder cubano Fidel Castro chamou eufemisticamente de ‘Período Especial em Tempos de Paz’, os automóveis desapareceram das ruas e estradas da ilha, os carros de boi substituíram os tratores no campo, e os cubanos cultivaram hortas em seus quintais e telhados em um exercício de austeridade e resiliência “revolucionário” para compensar a súbita escassez de suprimentos vitais”, explica.
Mas como estas duas crises se comparam?
Pavel Vidal afirma que do ponto de vista macroeconômico, há alguns indicadores que caíram mais durante o Período Especial, enquanto outros são semelhantes.
Ele destaca, por exemplo, que há 30 anos o Produto Interno Bruto (PIB) despencou 35%, mas agora não retraiu tanto, visto que caiu 11% durante a pandemia de covid-19, mas depois recuperou um pouco.
A inflação, por outro lado, é semelhante entre os dois períodos.
Já o déficit fiscal chegou a 30% naquela época e, desta vez, não subiu tanto, mas manteve-se elevado por mais tempo.
“Acho que são crises muito parecidas. Também não posso dizer que está pior, porque acredito que a economia está mais diversificada agora: há mais opções que não estavam abertas no Período Especial, quando não havia remessas, não havia turismo, e a economia estava completamente estatizada”, observa.
Pobreza ‘alarmante’
O especialista acredita que na situação atual, os setores da sociedade cubana que recebem remessas ou estão ligados ao setor privado emergente podem estar lidando com a crise de uma maneira melhor do que outros grupos.
“Os pensionistas e funcionários do Estado que dependem de uma renda fixa em pesos cubanos que não foi reajustada pela inflação… não há dados oficiais, mas acredito que os números da pobreza são alarmantes. Principalmente no que se refere aos aposentados, cuja situação é agravada pelo envelhecimento da população. Aí existe uma situação muito complicada”, afirma.
Estas desigualdades entre os diferentes setores da sociedade cubana são uma das razões pelas quais alguns economistas consideram que a situação atual é mais dura do que a vivida na década de 1990.
O economista Ricardo Torres, pesquisador do Centro de Estudos Latino-Americanos e Latinos da American University, nos EUA, argumenta que embora sob a perspectiva do PIB, a crise atual pode parecer “mais branda” do que a do Período Especial, é preciso levar em consideração alguns aspectos sob um ponto de vista qualitativo “para compreender o fardo sobre as pessoas, e como a crise pode ser sentida”.
Deterioração contínua
Torres destaca, por exemplo, que o Período Especial foi precedido por uma fase de crescimento econômico, enquanto a atual conjuntura se dá “após quase 30 anos de crise permanente”.
“Nos anos 1990, o país apresentava um certo bem-estar que tinha sido alcançado na década de 1980, tanto em termos de consumo quanto em termos de qualidade e profundidade dos serviços sociais, de educação, de saúde, com conquistas esportivas a nível mundial. E tudo isso em uma sociedade muito mais igualitária em termos de rendimentos do que a que existe agora. Não quer dizer que não havia problemas, mas era definitivamente muito mais igualitária em termos de rendimentos”, aponta.
Isso indica que embora, a partir de 1994, o PIB tenha começado a crescer novamente, houve muitas áreas da economia, da sociedade e de vários grupos da população que nunca recuperaram o padrão de vida e os níveis de atividade da década de 1980.
As diferenças entre estes dois pontos de partida iniciais marcam também, na opinião dele, a capacidade do país para superar esta crise.
“A infraestrutura de Cuba, construída depois de 1959, estava praticamente recém-construída na década de 1990. Pense nas centrais elétricas, nas estradas. Agora essa situação é muito diferente. As centrais elétricas estão há mais de 30 anos em funcionamento, talvez já excedendo os parâmetros para os quais foram concebidas. Muitas estradas, por exemplo, nunca tiveram manutenção nos últimos 30 anos”, afirma.
“Então, a infraestrutura física está em um estado muito mais lamentável agora, mais deteriorada do que nos anos 1990. Talvez a única infraestrutura que esteja relativamente melhor hoje seja a das telecomunicações, já que certamente se expandiu a disponibilidade de celulares e, inclusive, o acesso à internet.”
Torres acrescenta que a ilha perdeu capacidade produtiva.
Migração em massa
“Há muito menos usinas açucareiras, muito menos indústrias de manufatura, menos agricultura e pecuária, por exemplo. Há mais hotéis e aeroportos, e alguns deles são mais modernos do que os que existiam na década de 1980, mas o equilíbrio em termos de infraestrutura não é favorável”, destaca.
O especialista afirma que nestas três décadas a ilha perdeu muito capital humano devido à emigração e ao envelhecimento da população.
“Durante o Período Especial, o atendimento hospitalar sofreu, claro, mas nada a ver com a situação que vivemos hoje. O mesmo pode ser dito da educação. Cuba estava com um sistema educacional robusto, com muito capital humano. Isso não é mais verdade. Pelo contrário, tem havido uma emigração em massa de professores bem qualificados que afeta todos os níveis”, diz ele.
Além disso, ele afirma que a assistência material que as pessoas podem receber do Estado foi reduzida, não só em termos de medicamentos que podem estar disponíveis num hospital, por exemplo, com também em termos de produtos básicos que a população recebe por meio da libreta (caderneta de racionamento), sistema criado para controlar a distribuição de determinados produtos básicos para a população.
“O que foi mantido durante o Período Especial com alguns problemas, agora praticamente não existe mais. Ou seja, os produtos fornecidos por meio da caderneta de racionamento foram reduzidos ao mínimo. Os produtos não chegam aos armazéns. E, às vezes, quando chegam, chegam com meses de atraso”, ressalta.
Na visão de Torres, todos estes problemas são agravados pelo fato de que o aumento da desigualdade torna alguns setores da sociedade muito vulneráveis à crise.
‘Uma crise muito pior’
“Embora o governo não divulgue números oficiais a este respeito, sabe-se que os níveis de desigualdade já eram muito altos em 2019. Isso significa que um grupo importante da população chega a esta crise atual com o padrão de vida bastante deteriorado, com carências importantes em termos de moradia, de acesso a serviços sociais. Então, eles chegam com muita desvantagem, e esta crise os atinge duramente. E eles não têm nenhum tipo de recurso ou reserva para enfrentar essa situação”, explica.
Assim como o Período Especial, cujo gatilho foi a queda da União Soviética e do bloco comunista — que levou Cuba a perder a maior parte do seu mercado externo, assim como subsídios substanciais —, a crise atual também foi alimentada por fatores externos.
Entre eles, os especialistas citam o colapso da economia da Venezuela — que durante o governo de Hugo Chávez se tornou o principal parceiro comercial de Havana —, a reimposição de sanções pelos EUA durante o governo de Donald Trump, a pandemia de covid-19 e, inclusive, a invasão russa da Ucrânia (que influenciou o aumento dos preços dos fertilizantes e dos alimentos no mundo).
A estes elementos, devemos acrescentar o que os economistas consideram erros nas políticas internas, como a recente “reforma monetária” (uma tentativa fracassada de unificar o câmbio); um conjunto de reformas econômicas parciais e incompletas, como a iniciativa do ex-presidente Raúl Castro de entregar em usufruto as terras improdutivas para os agricultores, destaca Pavel Vidal.
“O usufruto não dá ao agricultor a segurança que ele precisa, porque ele não tem a propriedade da terra. Há milhões de limitações para, por exemplo, erguer construções nessas terras e, além disso, a compra forçada por parte do Estado de uma parte importante da produção a preços ridículos torna a atividade agropecuária financeiramente inviável”, explica.
A soma de todos esses elementos faz com que a crise atual seja “muito pior” do que a do Período Especial, segundo Emilio Morales, presidente do Havana Consulting Group e vice-presidente do centro de estudos Cuba Siglo 21.
“É uma crise muito pior, mais profunda. Mais de 30 anos se passaram desde o Período Especial. Aquela foi uma crise mais econômica do que política e social, e para sair dela, o governo teve que fazer alguns ajustes, como permitir o envio de remessas, o investimento estrangeiro e o turismo. Abrir-se de forma muito limitada ao setor privado naquela época. Todas estas medidas existem, estão implementadas há 30 anos, e o país está caindo aos pedaços”, diz ele à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC.
Uma crise multissistêmica
“Trinta anos depois, se tornou uma crise multissistêmica. É uma crise política, social, sanitária e econômica. E todos estes fatores juntos geraram esta tempestade que neste momento se vê nesta explosão social que está acontecendo em diferentes locais do país”, acrescenta, fazendo referência aos protestos que ocorreram na ilha no dia 17 de março.
Torres, Vidal e Morales concordam que o problema subjacente é um modelo econômico que “não funciona”.
“A evidência histórica é esmagadora em termos de que esses modelos de economia centralmente planificadas, sobretudo no estilo soviético, não deram resultado em nenhum dos países em que foram adotados. Observe que a própria China e o Vietnã, apesar de ainda terem partidos comunistas no poder, há mais de três décadas reconheceram que este modelo não era funcional, e o abandonaram”, destaca Torres.
Pavel Vidal indica que embora sejam necessárias mudanças estruturais que não são de curto prazo, a ilha passou três décadas fazendo reformas parciais e incompletas — e o governo continua apostando em uma economia centralizada.
“Continuam dizendo que a empresa estatal socialista é o principal ator da economia cubana, mas é justamente a empresa estatal socialista que não tem conseguido oferecer eletricidade nem alimentos aos cubanos”, afirma.
As autoridades cubanas, por sua vez, culpam as sanções dos EUA pelas dificuldades que a economia cubana atravessa — e acusaram o governo americano e os exilados cubanos em Miami de incitarem os protestos que ocorreram no leste do país.
Na segunda-feira (18/3), o Ministério das Relações Exteriores cubano convocou o encarregado de negócios da embaixada dos Estados Unidos em Havana, Benjamin Ziff, para uma reunião, na qual transmitiu o “firme repúdio ao comportamento intervencionista e às mensagens caluniosas do governo dos Estados Unidos e de sua embaixada em Cuba sobre assuntos internos da realidade cubana”.
“Também chamou a atenção para a responsabilidade direta do governo dos Estados Unidos sobre a difícil situação econômica que Cuba atravessa atualmente e, especificamente, sobre as carências e dificuldades que a população enfrenta diariamente, com o esgotamento e insuficiência de suprimentos e serviços essenciais, sob o peso e impacto do bloqueio econômico destinado a destruir a capacidade econômica do país”, indica o comunicado do ministério cubano.
Não está claro, no entanto, até que ponto o discurso oficial será persuasivo para dissipar o desconforto entre os cubanos.
“A confiança do povo cubano em seus líderes, os sucessores de Fidel, e sua fé na Revolução de 65 anos que a imprensa estatal cubana ainda elogia, está em seu ponto mais baixo historicamente, a julgar pelas reclamações e demandas dos manifestantes que tomaram as ruas de Santiago de Cuba e de outras cidades e vilarejos do leste do país, no dia 17 de março”, diz Pascal Fletcher.
‘Fartos e cansados’
Ele explica que junto às demandas por “eletricidade e alimentos”, e os gritos de “liberdade” e “Pátria e Vida” — que se tornaram populares durante uma onda anterior de protestos antigoverno que se espalharam por toda a ilha em julho de 2021 —, muitos manifestantes em Santiago de Cuba também esbravejaram com funcionários do Partido Comunista que tentaram argumentar com eles: “Não queremos mais ladainha”.
“Isso indica claramente que muitos cubanos estão fartos e cansados da propensão do governo de sempre culpar o embargo econômico dos EUA por todos os males do país”, avalia Fletcher.
“Os cubanos clamam por soluções internas e mudanças por parte do seu governo interno, chega de retórica incendiária dirigida ao velho inimigo ‘imperialista'”, conclui.
Fonte: BBC
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