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A púrpura tíria era usada em mosaicos bizantinos que mostravam o imperador Justiniano 1º e sua esposa Teodora

  • Author, Zaria Gorvett
  • Role, BBC Future

O local estava abandonado há mais de 3 mil anos, quando uma equipe de arqueólogos recebeu permissão para visitá-lo, em busca do túmulo real.

Depois de percorrer grandes salões e estreitos corredores, descendo por degraus com risco de desmoronamento, eles chegaram a um poço profundo.

Em um dos lados, havia duas estátuas idênticas, protegendo uma porta trancada. Ali ficava o túmulo do rei.

Dentro dele, havia uma imensa quantidade de maravilhas antigas. Ao todo, eram 2 mil objetos, incluindo joias e uma grande mão de ouro. Mas havia também estranhas manchas escuras no chão.

Os arqueólogos enviaram uma amostra para exame, que acabou revelando uma camada de cor púrpura viva sob o pó e a sujeira.

Os pesquisadores haviam descoberto um dos produtos mais lendários do mundo antigo – uma substância que construiu impérios, destronou reis e consolidou o poder de gerações de governantes globais.

A rainha Cleópatra (69-30 a.C.), do Egito, era tão obcecada por ele que chegou a usá-lo nas velas do seu barco. E, em Roma, imperadores decretaram que qualquer outra pessoa, além deles, que fosse flagrada usando o produto seria condenada à morte.

A substância era a púrpura tíria, um pigmento extraído de um tipo de caramujo. Era o produto mais caro da Antiguidade – valia mais do que três vezes o seu peso em ouro, segundo um decreto romano do ano 301 d.C.

Mas, hoje em dia, ninguém sabe como produzi-lo. As elaboradas receitas para a extração e processamento do pigmento dos nobres da Antiguidade foram perdidas no século 15.

Mas por que essa coloração tão fascinante desapareceu? Será que ela pode ser ressuscitada?

Em um pequeno barracão no nordeste da Tunísia, a pouca distância do que foi a cidade fenícia de Cartago, um homem passou a maior parte dos últimos 16 anos esmagando caramujos marinhos. Ele tenta pacientemente transformar as entranhas dos animais em algo que relembre a púrpura tíria.

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O túmulo real de Qatna acumulou sedimentos por mais de 3 mil anos até ser redescoberto – e a intensa coloração da púrpura tíria que ele guardava ainda pode ser observada

As camadas mais privilegiadas da sociedade exibiram a púrpura tíria por milênios, como um símbolo de força, soberania e riqueza.

Escritores antigos descrevem com precisão o tom específico de roxo que originou seu nome: púrpura avermelhada escura, como de sangue coagulado, tingido com preto.

Plínio, o Velho (23-79 d.C.), descreveu a aparência do pigmento como “brilhante quando observado contra a luz”.

Com sua intensa e única coloração e resistência ao desbotamento, a púrpura tíria era adorada por civilizações antigas em todo o sul da Europa, norte da África e oeste da Ásia.

O pigmento foi fundamental para o sucesso dos fenícios, que ficaram conhecidos como as “pessoas roxas”. O próprio nome do pigmento vem da cidade-Estado fenícia de Tiro (hoje, pertencente ao Líbano).

O tom de roxo podia ser encontrado em tudo, desde mantos até velas de barcos, pinturas, móveis, cimento, pinturas nas paredes, joias e até em sudários fúnebres.

No ano 40 d.C., o rei Ptolomeu da Mauritânia foi assassinado de surpresa em Roma, por ordem do imperador.

O motivo: apesar de ser amigo dos romanos, o infeliz soberano havia causado uma grave ofensa ao visitar um anfiteatro para assistir a um combate entre gladiadores… vestindo um manto roxo.

A luxúria ciumenta e insaciável inspirada por aquela cor, às vezes, era comparada com uma espécie de loucura.

Mistério viscoso

Curiosamente, o pigmento mais celebrado que o mundo já conheceu não começou sua vida como uma bela gema ultramarina, como seu contemporâneo lápis-lazúli. Nem como um vibrante emaranhado de raízes rosa-coral, como a granza produtora de pigmento vermelho.

Na verdade, a púrpura tíria começou como um fluido transparente produzido pela família de caranguejos marinhos chamada Murex. Mais especificamente, ela era viscosa.

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A púrpura tíria já foi encontrada em pinturas datadas da Idade do Bronze

A púrpura tíria era produzida com as secreções de três espécies de caranguejos marinhos. Cada uma delas gerava uma cor diferente: Hexaplex trunculus (roxo azulado), Bolinus brandaris (roxo avermelhado) e Stramonita haemastoma (vermelho).

Depois que os caramujos eram caçados, seja manualmente no litoral rochoso ou com armadilhas usando outros caramujos como isca (os caramujos Murex são predadores), chegava a hora de colher a gosma. Para isso, em alguns lugares, a glândula mucosa era fatiada com uma faca específica.

Um escritor romano descreveu que a substância interna do caramujo gotejava das suas feridas, “fluindo como lágrimas”, até ser recolhida em almofarizes para ser moída. Alternativamente, espécies menores podiam ser moídas inteiras.

Mas as nossas certezas terminam por aqui. Os relatos de como a gosma incolor do caramujo era transformada no lendário pigmento são vagos, contraditórios e, às vezes, claramente errados.

Aristóteles (384-322 a.C.) afirmava que as glândulas mucosas vinham da garganta de um “peixe roxo”. E, para complicar ainda mais, a indústria de pigmentos era muito sigilosa – cada produtor tinha sua própria receita e essas fórmulas complexas, com múltiplas etapas, eram guardadas a sete chaves.

“O problema é que as pessoas não descreviam os detalhes importantes por escrito”, segundo Maria Melo, professora de ciência da conservação da Universidade NOVA de Lisboa, em Portugal.

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Os caramujos Murex podem também ter sido a fonte histórica do corante chamado ‘tekhelet’ – a cor sagrada do judaísmo, mencionada na Bíblia Hebraica

O registro mais detalhado do processo de produção da púrpura tíria vem mesmo de Plínio, o Velho, no século 1° d.C.

Era mais ou menos assim: depois de isoladas, as glândulas mucosas eram salgadas e deixadas para fermentar por três dias.

Em seguida, elas eram cozidas em recipientes de estanho ou, talvez, de chumbo com calor “moderado”. O cozimento prosseguia até que toda a mistura ocupasse uma fração do seu volume original.

No décimo dia, um pedaço de tecido era mergulhado no corante para testar. Se fosse tingido com a tonalidade desejada, estava pronto.

Considerando que cada caramujo contém apenas uma quantidade minúscula de muco, poderiam ser necessários 10 mil animais para produzir um único grama de pigmento.

Existem relatos de pilhas contendo bilhões de cascas de caramujos marinhos descartadas nas regiões onde o pigmento era fabricado. De fato, a produção de púrpura tíria já foi descrita como a primeira indústria química – não só devido à escala de sua operação, mas à sua natureza agressiva.

“Realmente, não é fácil obter a coloração”, segundo o professor de química da conservação Ioannis Karapanagiotis, da Universidade Aristóteles de Tessalônica, na Grécia.

Ele explica que a púrpura tíria é completamente diferente dos outros pigmentos, cuja matéria-prima, como folhas, já contém o pigmento. Neste caso, o muco do caramujo marinho contém substâncias que podem ser transformadas em pigmento, mas apenas nas condições corretas.

“É bastante surpreendente”, afirma o professor. E, ainda assim, muitos detalhes fundamentais do processo foram esquecidos há muito tempo.

Forte cheiro de roxo

Na Antiguidade, a púrpura tíria não era conhecida apenas pela sua coloração.

As tinturarias eram formadas por leitos onde frutos do mar apodreciam com a adição de urina – frequentemente empregada para auxiliar na fixação dos pigmentos – e seu conhecido odor picante.

Esse cheiro pútrido podia ser sentido em bairros inteiros e as cidades onde o pigmento era fabricado eram consideradas locais desagradáveis para se viver.

O mau cheiro ficava profundamente impregnado nas fibras dos tecidos tingidos, permanecendo por muito tempo após a sua compra. E, quanto às pessoas ricas que tinham acesso exclusivo a este tom de roxo, talvez fosse aconselhável mantê-las contra o vento.

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Na Antiguidade e na Idade Média, a púrpura tíria era tão valiosa que costumava ser falsificada – normalmente, usando uma combinação de corantes extraídos de plantas como anileira (índigo, azul) e granza (vermelha)

Declínio súbito

Nas primeiras horas do dia 29 de maio de 1453, a cidade bizantina de Constantinopla foi tomada pelos otomanos. Era o fim do Império Romano do Oriente – e da púrpura tíria com ele.

Na época, as tinturarias da cidade eram o centro da indústria. A cor havia ficado profundamente ligada ao catolicismo. Ela era usada nas roupas dos cardeais e para tingir as páginas de manuscritos religiosos.

Mas a indústria já sofria prejuízos, devido a uma sucessão de impostos excessivos, que fizeram com que a Igreja perdesse completamente o controle sobre a produção do pigmento.

Por isso, o papa decidiu rapidamente que o novo símbolo do poder cristão seria a cor vermelha, que pode ser produzida de forma fácil e barata, a partir de cochonilhas moídas. Mas existe outro fator que também pode ter colaborado para a queda da púrpura tíria.

Em 2003, cientistas encontraram uma pilha de cascas de caramujos marinhos no local do antigo porto de Andríaca (hoje, sul da Turquia). Ao todo, eles estimaram que aquela pilha de resíduos, datada do século 6° d.C., continha cerca de 300 metros cúbicos de restos de caramujos, o que corresponde a até 60 milhões de indivíduos.

O curioso é que o fundo da pilha – que contém os primeiros caramujos descartados – inclui espécimes maiores e mais velhos, enquanto os descartados mais recentemente são significativamente menores e mais jovens.

Uma explicação é que os caramujos marinhos teriam sido superexplorados e, em certo momento, não havia mais caramujos adultos. E este fenômeno pode ter levado ao término da produção do pigmento na região, como sugerem os pesquisadores.

Mas, poucos anos depois dessa descoberta, outro achado traria de volta as esperanças de fazer reviver o antigo pigmento.

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No México e na América Central, povos indígenas empregam um método muito diferente de tingimento com Murex: eles esfregam os caramujos vivos diretamente sobre o tecido

O renascimento

Em setembro de 2007, Mohammed Ghassen Nouira, que trabalha como gerente consultor, fazia sua caminhada habitual na hora do almoço, em uma praia nas imediações da capital da Tunísia, a cidade de Túnis.

“Havia ocorrido uma tempestade horrível na noite anterior, de forma que muitas criaturas estava mortas na areia, como águas-vivas, algas marinhas, pequenos caranguejos e moluscos”, relembra ele.

Ele seguiu caminhando pela praia, até que observou uma mancha colorida – um líquido roxo avermelhado intenso vazava de um caranguejo marinho rachado.

Nouira se lembrou imediatamente de uma história que havia aprendido na escola: a lenda da púrpura tíria.

Ele correu até o porto local, onde encontrou muitos outros caramujos, exatamente como aquele que estava na praia. Seus pequenos corpos em espiral são cobertos de espinhos e costumam ficar presos nas redes dos pescadores.

“Eles os odeiam”, ele conta. Um homem estava retirando os caramujos da sua rede e colocando em uma velha lata de tomate, que Nouira levou para estudar no seu apartamento.

Inicialmente, o experimento de Nouira foi extremamente frustrante.

Ele quebrou os caramujos naquela noite e procurou as entranhas de cor púrpura viva que ele havia observado na praia. Mas não havia nada, a não ser carne branca.

Ele colocou tudo em um saco de lixo e foi para a cama. Mas, no dia seguinte, o conteúdo do saco havia passado por uma transformação.

“Até aquele momento, eu não fazia ideia de que a cor púrpura era inicialmente transparente, como água”, ele conta.

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Para que a tintura permaneça sobre o tecido, suas moléculas precisam ser convertidas em formas solúveis em água. E não se sabe ao certo como isso era feito na Antiguidade.

Os cientistas agora sabem que, para ativar as substâncias internas dos caramujos Murex em estado incolor, elas precisam ser expostas à luz visível. Inicialmente, suas secreções ficarão amarelas, depois verdes, turquesa, azuis e, por fim, irão assumir um tom de roxo, dependendo da espécie do caranguejo.

“Se você realizar este processo em um dia de sol, leva pouco menos de cinco minutos para que ocorra a transformação”, segundo Karapanagiotis.

Mas esta não é uma receita de púrpura tíria instantânea. Na verdade, a tonalidade é composta de muitas moléculas de pigmento diferentes trabalhando em conjunto.

Melo explica que existe o índigo, que é azul, índigo “bromatado”, que é púrpura, e indirubina, que é vermelho. “Dependendo do tratamento do seu extrato e do tingimento, você pode ter cores muito diferentes”, segundo ela.

Mesmo ao atingir a coloração desejada, ainda é preciso mais processamento para transformar os pigmentos em corante, como a sua conversão em formas que sejam aderidas aos tecidos.

Para Nouira, este foi o começo de uma obsessão que durou 16 anos, até que ele descobrisse o método perdido de produção da púrpura tíria.

Outros pesquisadores já haviam investigado as secreções dos caramujos marinhos – incluindo um cientista que processou 12 mil indivíduos para obter 1,4 g de pigmento puro em pó, empregando técnicas industriais. Mas Nouira queria produzir do modo antigo e redescobrir a tonalidade autêntica, que foi reverenciada por milênios.

Ele havia levado aqueles primeiros caramujos marinhos para o seu apartamento em 2007, apenas uma semana depois da sua lua de mel

“Minha esposa ficou horrorizada com o cheiro; ela quase me expulsou de casa… mas eu precisava continuar”, ele conta.

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Escritores da Roma Antiga comparavam a coloração da púrpura tíria com sangue coagulado

Nouira levou anos para produzir seu primeiro corante em pó. Quando conseguiu, a cor era índigo claro, nada parecida com a púrpura tíria – e o corante era extremamente poeirento.

Foi só depois de anos de tentativas e erros que Nouira gradualmente descobriu os truques que ele suspeita terem sido usados na Antiguidade, como misturar secreções de todas as três espécies de caramujos mencionadas no relato de Plínio, ajustar a acidez da mistura, alternar a exposição à luz do sol com o escuro durante a preparação e cozinhar as misturas por diferentes períodos de tempo.

Como referência, Nouira usou principalmente mosaicos bizantinos que mostram o imperador Justiniano 1º (482-565) e sua esposa Teodora (c.500-548). Posteriormente, ele também comparou seus resultados com fragmentos remanescentes de tecido.

Por fim, ele obteve pigmentos puros e corantes que ele acredita estarem excepcionalmente próximos da verdadeira púrpura tíria, atendendo às antigas expectativas.

“[A cor] é muito viva, muito dinâmica”, afirma ele. “Dependendo da iluminação, ela se altera e brilha… ela continua brilhando e brincando com seus olhos.”

Aplicação moderna

Atualmente, os cientistas vêm pesquisando um possível novo uso para a púrpura tíria – ou, pelo menos, para uma das suas moléculas mais importantes.

Na sua forma pura, 6,6′-dibromoíndigo é um pó roxo escuro que, por acaso, serve de excelente semicondutor – a base da eletrônica moderna.

Por ser um material orgânico, a molécula é biodegradável e menos nociva para o corpo humano do que o silício. Por isso, além de tornar os circuitos eletrônicos mais ecológicos, talvez ela possa ser usada em tecnologias vestíveis.

Mas o melhor de tudo é que ela pode ser produzida em laboratório, sem o uso de caramujos marinhos.

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Não se sabe ao certo por que os caramujos Murex produzem os precursores químicos da púrpura tíria. Uma possibilidade é que eles sirvam para paralisar as presas

Novas ameaças

Depois de décadas de mal cheirosos experimentos no seu barracão, Nouira foi convidado a expor seus pigmentos e produtos tingidos em exibições em todo o mundo, como no Museu Britânico de Londres e no Museu de Belas Artes de Boston, nos Estados Unidos. E ele acabou também se tornando especialista culinário em receitas com caramujos marinhos.

Nouira recomenda macarrão tunisiano apimentado com Murex ou Murex frito. “É crocante, é delicioso, é incrível”, afirma ele.

Mas, apesar de todos os esforços, a púrpura tíria está novamente ameaçada.

A questão, agora, não são as invasões, nem os segredos sobre a sua produção – embora, quando o assunto são os detalhes específicos dos seus métodos, Nouira seja tão dissimulado quanto seus antigos colegas.

A ameaça é de extinção. Os caramujos marinhos sofrem com uma série de influências humanas, como a poluição e as mudanças climáticas. A espécie Stramonita haemastoma, que fornece a tonalidade avermelhada à coloração, já desapareceu do leste do Mediterrâneo.

Por isso, mesmo que a púrpura tíria tenha finalmente renascido, o certo é que ela pode ser facilmente perdida mais uma vez.