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Em 1997, o escritor britânico de ficção Neil Gaiman recebeu uma ligação inesperada do então chefe da produtora americana Miramax, Harvey Weinstein.

“Este filme de animação, Princesa Mononoke, é o maior sucesso do momento no Japão. Então acho que preciso fazer o melhor que puder com ele”, Gaiman se recorda das palavras de Weinstein ao telefone.

“Liguei para o Quentin Tarantino e perguntei: ‘Quentin, você faria o roteiro em inglês?’ E ele respondeu: ‘Não é a mim que você quer, é Gaiman’. Então, estou ligando para você.”

A Miramax, na época, era uma subsidiária da Disney e havia adquirido os direitos de distribuição nos Estados Unidos do filme Princesa Mononoke, do estúdio de animação japonês Studio Ghibli. Weinstein queria que Gaiman voasse para Los Angeles para assistir a um trecho da animação.

“Eu não tinha planos de fazer aquilo”, contou Gaiman à BBC Culture.

“Mas o momento que mudou tudo para mim foi a cena em que você olha para aquelas pedras. E uma gota de chuva as atinge. E depois outra gota de chuva. E depois mais uma gota de chuva.”

“E agora está chovendo, e a superfície está molhada e escorregadia. E eu me dou conta: ‘Nunca vi nada assim. Isso é fazer cinema de verdade. Isso é cinema do nível de David Lean. Isso é cinema do nível de Akira Kurosawa. É cinema de verdade’.”

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Ashitaka, um jovem príncipe em sua missão para encontrar a cura para a maldição que o acometeu, é o protagonista de ‘Princesa Mononoke’

Quando Princesa Mononoke estreou no Japão em 12 de julho de 1997 (25 anos atrás), representava uma espécie de desvio na carreira do diretor e animador japonês Hayao Miyazaki.

No final dos anos 1980, Miyazaki havia estabelecido sua reputação (com o sucesso do Studio Ghibli, que ele fundou com seu colega, o diretor Isao Takahata) com animações como Meu Amigo Totoro e O Serviço de Entregas da Kiki. Obras formalmente ambiciosas, tematicamente ricas, mas com tom geralmente positivo e de natureza voltada para toda a família.

Mas algo mudou durante os anos 1990. Primeiro, Miyazaki começou a se incomodar com a ideia popular de que o Studio Ghibli só produzia filmes delicados sobre a grandiosidade da natureza.

“Comecei a ouvir que o Ghibli era ‘doce’ ou ‘terapêutico'”, queixou-se no documentário de seis horas sobre a produção da animação, chamado Princess Mononoke: How the Film was Conceived (“Princesa Mononoke: como o filme foi concebido”, em tradução literal).

“Senti a necessidade de destruir isso.”

Ainda mais significativo foi o seu crescente desespero diante de um mundo que ele acreditava cada vez mais estar amaldiçoado.

“Ele costumava ser o que chamava de simpatizante da esquerda, crente no poder do povo”, explica Shiro Yoshioka, professor de estudos japoneses da Universidade de Newcastle, no Reino Unido.

“Mas, por razões óbvias [o colapso da União Soviética e a escalada dos conflitos étnicos na Europa], suas convicções políticas foram totalmente abaladas no início dos anos 1990.”

O próprio Japão também estava passando por uma espécie de crise existencial. A bolha do período de crescimento econômico dos anos 1980 estourou em 1992, levando o Japão a uma recessão que parecia interminável.

Três anos depois, em 1995, o país foi atingido pelo terremoto de Kobe, o pior a sacudir o Japão desde 1922. O tremor deixou 6 mil mortos e destruiu as casas de outras dezenas de milhares de pessoas.

E, apenas dois meses depois, uma seita terrorista chamada Aum Shinrikyo lançou um ataque com gás sarin no metrô de Tóquio, capital japonesa, matando 13 pessoas e ferindo milhares de outras.

Miyazaki, que estava enojado com o materialismo do período da bolha, vivia agora em um país confuso e traumatizado — tanto pela sua relação com a natureza, quanto por uma sensação crescente de vazio espiritual.

“Ele começou a pensar: ‘Talvez eu não devesse fazer essas coisas leves e divertidas para as crianças. Talvez eu devesse fazer algo substancial'”, afirma Yoshioka.

Ambientado no século 14 (o período japonês conhecido como Muromachi), Princesa Mononoke conta a história de Ashitaka, um jovem príncipe que foi amaldiçoado pelo ódio de um deus moribundo em forma de javali, que havia sido corroído por uma bola de ferro alojada no seu corpo.

“Ouçam-me, humanos desprezíveis, logo todos vocês sentirão meu ódio e sofrerão o que eu sofri”, diz o javali.

Para buscar uma cura para a maldição, Ashitaka viaja pelo mundo, esperando encontrar o Shishigami, o espírito da floresta em forma de cervo, que tem o poder de trazer vida e morte.

Em sua jornada, Ashitaka descobre um mundo desequilibrado. Tatara, a Cidade de Ferro, liderada pela enigmática Lady Eboshi, devastava a floresta próxima em busca de recursos minerais, causando a ira de Moro, a feroz deusa em forma de lobo, e sua selvagem filha humana San (que é a personagem-título, Mononoke, cuja tradução aproximada é “espectro”, ou “fantasma”).

Em meio a tudo isso, Ashitaka precisa descobrir como se orientar por este mundo difícil com os olhos do coração, sem ódio — ou com os “olhos sem sombras”.

“Eu sempre adorei [esta expressão]”, afirma Gaiman.

“Sem as sombras do mal. Sem as sombras do medo, sem as sombras do ódio. Você só precisa ver o que realmente existe ali.”

Em comparação com os trabalhos anteriores de Miyazaki, a animação é intensa e sombria, repleta de espetáculos estranhos e cenas de violência surpreendentes. Mãos são decepadas e cabeças são cortadas. O sangue jorra de animais e de seres humanos.

“Acredito que violência e agressão são partes essenciais de nós como seres humanos”, afirmou Miyazaki ao jornalista americano Roger Ebert.

“A questão que enfrentamos enquanto seres humanos é como controlar esses impulsos. Sei que crianças pequenas podem assistir a esse filme, mas eu preferi intencionalmente não as proteger da violência que reside nos seres humanos.”

Na verdade, o deus-javali amaldiçoado, cuja raiva explode de dentro dele como um ninho de vermes gosmentos se contorcendo, foi inspirado na luta do próprio Miyazaki para controlar sua raiva.

As contradições

Hayao Miyazaki é um leque confesso de contradições. Basta ler seus textos, ouvir suas entrevistas e assistir ao que ele fala para ter o retrato de um artista preso entre o idealismo e o niilismo, o otimismo e o desespero.

Ele é o pacifista com fascinação por aviões de guerra; o patrão exigente que despreza a autoridade e, como diretor, a exerce impiedosamente; o pai que acredita apaixonadamente no espírito das crianças, mas dificilmente estava em casa para criar suas próprias; e o ambientalista convicto que tem dificuldade de viver uma vida ecologicamente ética.

“Quando vejo o atum sendo arrastado em uma linha de pesca, eu penso: ‘Uau, os seres humanos são terríveis'”, declarou ele ao escritor japonês Tetsuo Yamaori em 2002, em entrevista republicada em 2014 na antologia de ensaios de Miyazaki intitulada Turning Point (“Ponto da Virada”, em tradução livre).

“Mas, quando alguém me oferece sashimi de atum, é claro que eu como e acho delicioso.”

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O sangue explícito é um elemento-chave de ‘Princesa Mononoke’, o que afasta a animação do público infantil

A noção de um homem em guerra consigo mesmo fica clara nos personagens e no mundo de Princesa Mononoke — uma animação que, como disse Miyazaki em entrevista coletiva no Festival de Cinema de Berlim, na Alemanha, em 1998, “não foi feita para julgar o bem e o mal”.

Lady Eboshi é um exemplo. Sua colônia metalúrgica fabrica um arsenal de armas para uso contra os deuses da floresta. Na maioria dos filmes de animação, ela seria representada como a vilã gananciosa e inimiga da natureza.

Mas Eboshi é também uma líder generosa, que libertou as mulheres (subentendidas como antigas profissionais do sexo) da opressão feudal e ofereceu um paraíso seguro para as pessoas com lepra que foram banidas, enquanto seu processo de industrialização eleva os padrões da vida humana.

“Teria sido muito fácil fazer uma história de ‘a tecnologia má contra as boas feras da floresta'”, afirma Susan Napier, professora do programa japonês da Universidade Tufts, em Massachusetts, nos EUA, e autora do livro Miyazakiworld: a Life in Art (“O mundo de Miyazaki: uma vida na arte”, em tradução livre).

“Mas a indústria ajuda essas pessoas marginalizadas a viver. Ela oferece empregos, uma fonte de comunidade e orgulho.”

Em entrevista para a revista Cine Furontosha em 1997, o próprio Miyazaki chegou a racionalizar Lady Eboshi:

“Muitas vezes, aqueles que estão destruindo a natureza, na verdade, são pessoas de bom caráter. Pessoas que não são más tomam ações cuidadosas, pensando que agem para o bem, mas os resultados podem gerar problemas terríveis.”

Essa ambiguidade moral não se estende apenas aos personagens humanos do filme. A deusa em forma de lobo Moro é tão suave quanto selvagem, enquanto o próprio mundo natural não é apresentado como uma força puramente virtuosa, mas sim capaz de demonstrar horror e estupidez.

A obstinação de Okkoto, líder do clã dos javalis na luta contra as forças superiores dos humanos, condena sua própria raça, de forma insensata. Enquanto isso, a visão fria e misteriosa de Shishigami — que, durante o dia, lembra um grande cervo — sugere um lado da natureza que se recusa a ser antropomorfizado em algo reconfortante e prefere ser estranho e perturbador — indiferente se você vive ou morre.

“Com o Studio Ghibli, você tem a sensação de que, ao contrário da visão judaico-cristã ocidental, os seres humanos não são, necessariamente, as criaturas dominantes do planeta”, afirma Napier.

São valores com raízes discutíveis no histórico japonês de desastres ecológicos e no xintoísmo, a popular religião animista do Japão, baseada na crença de que existem espíritos em todas as coisas.

No material promocional para um novo curta-metragem em 2006, Miyazaki afirma: “Tenho muita atração pela ideia de preservar as florestas… não para o bem dos seres humanos, mas porque elas próprias estão vivas”.

Nas palavras de Yoshioka, “ele acredita que não devemos proteger a natureza apenas porque ela é útil, nem tentar controlá-la. Na verdade, nós devemos respeitar a natureza como algo que tem vida própria.”

Esta crença talvez fique mais clara em uma cena de Princesa Mononoke descrita por Napier como “a Capela Sistina da animação”. Trata-se da sequência em que um grupo de caçadores, liderados pelo monge oportunista Jikobo, tem uma rápida visão de Shishigami na enorme forma translúcida assumida por ele depois do pôr do sol.

Os filmes de Miyazaki são invariavelmente belos — desenhados e animados com um cuidado obsessivo com cada detalhe e retratados com o tipo de luz e profundidade que faz com que você observe o mundo com outros olhos, como se estivesse apaixonado ou perto da morte.

Mas Shishigami é muito diferente. Ele surge sobre a floresta andando pelo céu noturno, inspirando ao mesmo tempo horror e admiração.

“Ele não é bonitinho e fofo”, afirma Napier.

“Parece diferente e assustador. E então ele começa a se transformar, e você vê aquelas pequenas criaturas, os Kodamas [pequenos espíritos das árvores, com seus imutáveis sorrisos curiosos], observando maravilhados. É um momento sublime que não tem nada a ver com seres humanos.”

Recepções bem diferentes

Princesa Mononoke foi uma sensação no Japão. A animação arrecadou mais de 19 bilhões de ienes (US$ 160 milhões, ou cerca de R$ 860 milhões) de bilheteria, ultrapassando em muito o recordista anterior do país, E. T. – O Extraterrestre, de Steven Spielberg.

O desenho alçou Miyazaki a novos patamares de fama e influência.

Os temas turbulentos do filme, que o próprio Miyazaki havia duvidado que se transformaria em entretenimento, claramente tocaram muito a sociedade japonesa — embora seu sucesso também possa ser atribuído a uma habilidosa campanha de marketing elaborada pelo produtor Toshio Suzuki, que fez ainda um acordo com a Walt Disney Corporation para distribuir os filmes do Studio Ghibli em todo o mundo, incluindo uma versão dublada de Princesa Mononoke nos Estados Unidos.

A animação foi considerada adulta demais para ser lançada com o selo da Disney. Por isso, ela foi transferida para a Miramax, subsidiária da Disney, chefiada pelo então produtor Harvey Weinstein, agora preso por estupro e agressão sexual, que tinha a reputação de pegar filmes de arte estrangeiros e cortá-los de forma a agradar o mercado doméstico (pelo menos, na sua visão).

Mas o contrato assinado entre o Studio Ghibli e a Disney tinha uma condição: o filme Princesa Mononoke, que tem duração de pouco mais de duas horas, não poderia ser cortado, de nenhuma forma. E esta cláusula acabaria sendo questionada.

No livro intitulado Sharing a House with the Never-Ending Man, sobre o tempo em que trabalhou no Studio Ghibli ajudando a vender animações para o Ocidente, o executivo cinematográfico Steve Alpert relembra um momento em que Suzuki presenteou Weinstein com uma réplica perfeita de uma espada samurai japonesa.

Em seguida, diante de uma sala de reunião lotada de funcionários da Miramax “horrorizados”, ele “gritou alto e em inglês: ‘Princesa Mononoke, SEM CORTES!'”

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A caracterização de Lady Eboshi (ao centro), que é ao mesmo tempo uma líder generosa e destruidora do meio ambiente, é um exemplo da complexidade do filme

O processo de criação de uma versão em inglês de Princesa Mononoke que agradasse a todos foi conturbado. Neil Gaiman, que adaptou o roteiro japonês, relembra ter ficado em uma “corda bamba singular” entre as exigências da Miramax e do Studio Ghibli.

“Você estava lidando com uma companhia cinematográfica nos Estados Unidos onde todos eram muito literais, e uma companhia cinematográfica no Japão, onde ser literal era a última coisa que passava na mente das pessoas”, diz ele.

Gaiman relembra uma reunião específica com a Miramax, em que pareciam ter dificuldade para lidar com o conceito de um filme de animação que não conduzisse a audiência pela mão. Eles queriam saber se Lady Eboshi era do bem ou do mal e se Shishigami era um deus bom ou mau.

“Miyazaki produziu um filme em que não havia personagens do mal”, afirma.

“Só havia consequências. Lady Eboshi oferece abrigo para profissionais do sexo e pessoas com lepra, mas os resultados do que ela está fazendo desequilibram tudo. Você tem tudo isso e, ao mesmo tempo, a Miramax pergunta: ‘Como vamos saber que Ashitaka é um príncipe? Ele não mora em um palácio’. E eu respondo: ‘Porque ele é o Príncipe Ashitaka’.”

E os conflitos não paravam por aí. O livro de Alpert detalha que a Miramax queria acrescentar seus próprios efeitos sonoros ao filme, defendendo que havia momentos calmos demais e que o público americano iria pensar que o som do cinema estava com defeito.

Estes efeitos incluíam borboletas que emitiam sons cintilantes enquanto batiam suas asas e, nas palavras de Alpert, “o som de uma nuvem passando”. Foram vetados.

Enquanto isso, o roteiro de Gaiman passou por diversas revisões, mas a versão que acabou sendo gravada primeiro — por um elenco de vozes americanas que incluía os atores Claire Danes e Billy Bob Thornton — foi feita por alguém cujo trabalho era garantir que as palavras se alinhassem com os movimentos da boca dos personagens.

“Em vez disso, ele se encarregou de reescrever todo o roteiro. E esta foi a versão apresentada para um público de teste — e vaiada”, conta Gaiman.

Quando o erro foi descoberto, o diretor de vozes Jack Fletcher só conseguiu gravar novamente pouco mais da metade do roteiro.

As diferenças culturais e comerciais

Princesa Mononoke não teve muito sucesso nos Estados Unidos, onde arrecadou apenas US$ 2,3 milhões (cerca de R$ 12,3 milhões) de bilheteria. Existe a noção popular de que o público americano, criado com as animações da Disney — feitas para o grande público e repletas de músicas e danças — simplesmente não estava pronto para uma animação como esta.

O próprio Miyazaki provavelmente defende esta opinião. Em 1988, em uma palestra sobre animação japonesa, ele afirmou: “Há poucas barreiras para entrar em filmes [de animação] — eles convidam a todos —, mas as barreiras para sair devem ser altas e refinadas… a barreira para a entrada e a saída dos filmes da Disney é muito baixa e muito larga. Para mim, eles não mostram nada — apenas desprezo pela audiência.”

“Os Estados Unidos ainda têm um sistema de valores binários muito maniqueísta — bom, mau, branco, preto — e que é incorporado à fórmula da Disney”, avalia Napier.

“Eles normalmente terminam com um romance, todos vivem felizes para sempre e isso é uma parte fundamental do sonho americano.”

“Mas a cultura japonesa é mais baseada no sentido de impermanência. Existe um ciclo e uma sensação de que você precisa usufruir do que tem. Este não é necessariamente um mundo ruim, mas é um mundo complicado”, explica.

Yoshioka acrescenta que “este sempre foi um problema quando tentamos exportar animações japonesas para os Estados Unidos. Eles têm essa mentalidade de que a animação é para crianças — possivelmente criada por sua associação com os desenhos animados das manhãs de sábado — e precisa ser nivelada por baixo.”

Ele relembra que, “nos anos 1980, quando a animação Nausicaä do Vale do Vento, de Miyazaki, foi exportada para os Estados Unidos, ela foi transformada em uma história muito simples do bem contra o mal, o que deixou Miyazaki enfurecido. É por isso que agora ele insiste que nada deve ser alterado quando exportado para os Estados Unidos.”

Mas Gaiman não está totalmente convencido destes argumentos.

“Não acho que saí pensando: ‘OK! [Existe um] fosso enorme entre os Estados Unidos e o Japão’. O que eu concluí foi que existe um fosso enorme entre o que Miyazaki está fazendo e o cinema comercial americano.”

Falhas de marketing

Gaiman acredita que tudo o que saiu errado com Princesa Mononoke “se resumiu à mesquinharia de Harvey Weinstein”. Ele conta como, depois da primeira apresentação oficial do filme no Festival de Cinema de Nova York, Weinstein informou a Gaiman que planejava não cumprir o acordo feito com a Disney de não cortar o filme.

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Os pequenos espíritos livres (os Kodamas) aparecem na cena mais sublime de natureza em ação do filme

“Ele disse: ‘precisamos cortar 40 minutos’. Eu respondi: ‘Harvey, você perdeu esta batalha antes do filme chegar até você. Contratualmente, você não pode cortar um quadro sequer.’ E ele respondeu: ‘Sim, mas precisamos que tenha 90 minutos. Vou falar com Miyazaki esta noite, e ele vai concordar.'”

Isso aconteceu durante um jantar comemorativo em um restaurante cubano. Gaiman relembra que Weinstein deu a notícia a Miyazaki e Suzuki enquanto eles fumavam do lado de fora.

“Miyazaki e Suzuki não voltaram”, diz Gaiman.

“Eu perguntei a Harvey o que eles haviam dito. Ele respondeu: ‘Bem, disseram não, mas vão mudar de ideia. Amanhã sai a crítica do New York Times dizendo que é longo demais. E então eles vão me ouvir.'”

A crítica do jornal americano The New York Times, assinada pela experiente jornalista Janet Maslin, classificou Princesa Mononoke de “feito histórico da animação japonesa”, com imagens, como a das flores e plantas que brotam sob os cascos de Shishigami, que são “simples, significativas e apresentadas de forma arrebatadora”.

Nenhuma menção foi feita à longa duração do filme.

“De repente, a próxima coisa que ouço é que o pomposo lançamento e a campanha gigante de marketing que haviam sido planejados para Princesa Mononoke não iriam acontecer. A animação seria apresentada em 10 cidades sem publicidade específica. Harvey nem sequer compareceu à estreia em Hollywood”, conta Gaiman.

“Não vejo nenhuma razão para que Princesa Mononoke não pudesse ter sido lançado com desempenho muito bom”, acrescenta.

“Mas você teria que ter enviado pessoas para explicar o que era aquilo.”

Neil Gaiman cita a campanha de marketing de Coraline e o Mundo Secreto, a adaptação do seu próprio livro infantil para o cinema. A projeção era de que a animação arrecadaria US$ 6 milhões (cerca de R$ 32 milhões) no primeiro fim de semana, mas arrecadou US$ 16 milhões (aproximadamente R$ 86 milhões).

“E a razão para isso é que tivemos uma empresa de relações públicas que decidiu divulgar para vários pequenos grupos, não apenas pais e filhos. Eu olho para Mononoke e acho que, se tivessem buscado as pessoas que gostam de filmes estrangeiros, que gostam da cultura japonesa, fãs de animação e de terror, poderia ter se tornado um fenômeno.”

Novas animações — e o Oscar

O relativo fracasso do lançamento de Princesa Mononoke fez com que a Disney perdesse a confiança no sucesso de futuros lançamentos do Studio Ghibli. Mas o então chefe da Pixar, John Lasseter, discordava e assumiu o lançamento nos Estados Unidos da animação seguinte de Miyazaki: A Viagem de Chihiro (2001).

Lasseter defendia Miyazaki há muito tempo e, certa vez, escreveu como ele o havia inspirado a “reduzir a velocidade da ação” em animações como Vida de Inseto e Toy Story 2.

Ainda assim, mais uma vez, apesar do novo recorde de bilheteria no Japão (arrecadando US$ 304 milhões, ou cerca de R$ 1,63 bilhão), a versão em inglês — dirigida por Kirk Wise, de A Bela e a Fera — arrecadou apenas US$ 10 milhões (aproximadamente R$ 54 milhões) nos Estados Unidos.

Mas A Viagem de Chihiro ganhou o segundo Oscar de melhor filme de animação concedido pela Academia (Shrek foi o primeiro vencedor), embora Miyazaki tenha se recusado a comparecer à cerimônia, em protesto contra a Guerra do Iraque.

Princesa Mononoke abriu um capítulo emaranhado, de maior consciência social, na carreira de Hayao Miyazaki. Um exemplo foi O Castelo Animado, de 2004, produzido com base no protesto de Miyazaki no Oscar, com uma história pacifista inspirada pelas invasões do Iraque e do Afeganistão.

Já o seu longa de animação mais recente, Vidas ao Vento, de 2013, foi uma biografia, em grande parte fictícia, do engenheiro japonês Jiro Horikoshi, que vê seu novo projeto de aeronave transformado no avião de combate Mitsubishi A5M, usado pelo Japão na Segunda Guerra Mundial.

Desafiando ostensivamente o mercado da Disney, cada uma destas duas animações arrecadou cerca de US$ 5 milhões (aproximadamente R$ 27 milhões) nos Estados Unidos.

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Shishigami, o espírito da floresta, representa o ciclo da vida e da morte, central para a visão do filme

Por que é mais relevante do que nunca

Princesa Mononoke é agora mais relevante do que nunca”, diz Neil Gaiman.

“Nós passamos anos com as pessoas dizendo: ‘Esse negócio de clima vai ser um enorme problema’. E, agora, estamos começando a ver o resultado e dizer: ‘OK, perdemos realmente o controle por aqui e só vai piorar’. E o que fazemos agora? Como sobrevivemos?”

“Estamos como as pessoas na Cidade do Ferro, tentando descobrir. Exceto que, na verdade, não estamos cuidando tanto das profissionais do sexo e das pessoas com lepra”, explica.

Mas o que faz com que Princesa Mononoke seja uma obra de arte tão profunda e duradoura é que Miyazaki, mesmo com seu desgosto incontestável com o curso da humanidade, vê sua misantropia dar lugar a uma sincera crença na resiliência da natureza e do espírito humano.

É possível ver isso no final ambíguo do filme, quando Shishigami — manifestação viva do ciclo de vida e morte — ameaça envolver a terra nas trevas depois que Lady Eboshi corta sua cabeça. Mas, da morte, surge uma nova vida: plantas brotam novamente, Ashitaka é curado e um único Kodama sobrevive — um lembrete de que a natureza estava aqui antes de nós e vai perseverar por muito tempo depois que não estivermos mais por aqui.

“Shishigami não pode morrer”, diz Ashitaka a San. “Ele é a própria vida. Ele é a vida e a morte. E está nos dizendo que devemos viver.”

É reflexo de um tema recorrente nas obras posteriores de Miyazaki: um sinal de alerta para as crianças, e talvez para si próprio, que, não importa o quanto o mundo fique ruim, não importa o quanto seja tentador cair no fatalismo ou no desespero, é preciso continuar.

“A vida é sofrimento e dor”, diz para Ashitaka um homem com lepra, com seu rosto envolto em ataduras.

“O mundo e as pessoas estão amaldiçoados. Mesmo assim, desejamos viver.”

Este texto foi originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/vert-cul-62306990

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