• Ula Chrobak e Katarina Zimmer
  • Revista Knowable*

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Logo após o devastador incêndio florestal ocorrido em setembro de 2020 no Vale de Napa, na Califórnia (Estados Unidos), a caixa de mensagens da especialista em química do vinho Anita Oberholster ficou abarrotada de e-mails de centenas de viticultores em pânico.

Eles queriam saber se podiam colher suas uvas sem o temido efeito sobre o seu vinho: aquele odioso cheiro de cinzeiro conhecido pelo nome em inglês smoke taint.

A única resposta que Oberholster, da Universidade da Califórnia em Davis, podia oferecer era: “talvez”.

Os laboratórios especializados estavam repletos de amostras de uvas para testar, com tempos de espera de até seis semanas. Os produtores não sabiam se valia a pena colher sua produção. Oito por cento das uvas viníferas da Califórnia foram deixadas para apodrecer nos campos em 2020.

Os viticultores já conhecem as vicissitudes causadas pelas mudanças climáticas. As temperaturas mais altas têm sido uma bênção nas regiões mais frias, que estão comemorando frutas mais maduras, mas também foram devastadoras para outros lugares.

Ondas de calor escaldantes, incêndios florestais e outras calamidades causadas pelo clima já arruinaram colheitas na Europa, América do Norte, Austrália e em outras partes do mundo.

E o ano de 2020 mostrou que as mudanças climáticas podem prejudicar as uvas sem destruí-las diretamente. Incêndios florestais e temperaturas mais altas podem transformar o sabor do vinho, cuja qualidade e sua própria identidade dependem da delicada química das uvas e das suas condições de cultivo.

Muitos produtores e fabricantes de vinho estão cada vez mais preocupados com a perda dos sabores característicos das suas bebidas com as mudanças climáticas, que chegam a arruinar safras inteiras.

“Esta é a grande preocupação”, afirma a especialista em vinhos Karen MacNeil, que mora no Vale de Napa e é autora de The Wine Bible (“A Bíblia do Vinho”, Ediouro, 2003). “É a pulsação do vinho – relacionada ao seu local.”

Para MacNeil, o maior desafio trazido pelas mudanças climáticas à produção de vinho é a imprevisibilidade. Os produtores costumavam saber quais variedades deveriam cultivar, como plantar, quando colher as frutas e como fermentá-las para produzir um vinho de qualidade consistente. Mas, agora, todas essas etapas estão indefinidas.

Esta percepção cada vez maior está impulsionando os pesquisadores e produtores de vinho a encontrar formas de preservar variedades de uvas apreciadas e suas qualidades próprias frente às condições caprichosas e em mutação do mundo atual em aquecimento.

Para aprender mais sobre as ameaças à nossa bebida favorita, conversamos com enólogos de duas renomadas regiões produtoras de vinho: Bordeaux, na França, e a Califórnia, nos Estados Unidos. E, tentando compreender como as mudanças climáticas estão alterando as uvas e vinhos tradicionais, viajamos para a Universidade da Califórnia em Davis e para o Vale de Napa no final de 2021, para conversar com cientistas, viticultores e fabricantes de vinho.

Conseguimos ter uma visão interna de como cada etapa da produção de vinho está se transformando para preservar sabores e aromas desejados – e, claro, provamos muito vinho, desde o mais fino Cabernet Sauvignon até amostras afetadas pela fumaça e pelo calor escaldante.

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Com o aquecimento do clima nas regiões tradicionais de produção de vinho, muitas variedades de uvas estão perdendo suas características e ficando mais parecidas entre si

O vinho em um mundo em aquecimento

O aumento das temperaturas vem prejudicando a delicada química das uvas, responsável pelos vinhos premiados. Veja como os produtores, fabricantes de vinho e pesquisadores estão trabalhando para preservar o sabor da bebida.

Fileiras redutoras da radiação

Alguns produtores reorientaram suas fileiras para a direção nordeste-sudoeste, para que o sol não atinja diretamente as uvas – o que causa perda de substâncias como as antocianinas, que dão a cor das uvas tintas.

Tratamentos no vinhedo e em laboratório

Os pesquisadores estão catalogando compostos relacionados ao smoke taint e encontrando formas de filtrá-los. Eles estão ajustando a produção de vinho para reduzir a perda de sabor com o aquecimento global, como tratamentos iônicos que aumentam a acidez.

Colheita e poda

Os produtores podem podar as folhas para reduzir o açúcar das uvas ou colher de manhã cedo para reter a acidez.

Plantio de uvas resistentes

Pesquisadores e produtores estão testando novos porta-enxertos para uso em variedades tradicionais, ajudando as plantas a suportar as mudanças climáticas. Os fabricantes de vinho estão testando variedades de uvas tolerantes ao calor.

Treliças

A forma como as uvas são fixadas aos fios de sustentação afeta a quantidade de luz que atinge as frutas. Treliças com função de guarda-chuvas podem evitar que as uvas recebam sol demais.

Filmes de sombra

Cientistas projetaram filmes que permitem a passagem de raios que promovem o crescimento e a produção das uvas e bloqueiam espectros que prejudicam o desenvolvimento de compostos aromáticos importantes.

O gosto das mudanças climáticas

Os extremos climáticos podem matar até as uvas mais resistentes, mas grande parte da ameaça climática é invisível a olho nu: as mudanças químicas das uvas.

A qualidade do vinho, no seu nível mais básico, resume-se em atingir o equilíbrio entre três aspectos gerais das frutas: açúcar, ácidos e compostos secundários.

O açúcar acumula-se nas uvas durante a fotossíntese dos vinhedos. Os ácidos decompõem-se à medida que as uvas amadurecem. Já os compostos secundários – basicamente, substâncias químicas que não são essenciais para o metabolismo central da planta – acumulam-se ao longo da estação.

Substâncias chamadas antocianinas dão às uvas tintas sua cor e protegem a planta contra os raios ultravioleta. E outras denominadas taninos dão ao vinho o amargor e a sensação seca e adstringente na boca. Aos vinhedos, eles oferecem proteção contra os animais de pastagem e outras pragas.

Estes três componentes – e, consequentemente, o sabor do vinho – são afetados por inúmeros fatores ambientais, que incluem o tipo de solo e os níveis de chuva e neblina. Todos esses fatores são englobados pela palavra francesa “terroir”.

E o clima (os padrões estabelecidos de temperatura e precipitação) forma a maior parte do terroir, segundo Oberholster.

Quando o clima de uma região muda, o equilíbrio de açúcar, ácidos e compostos secundários pode ser prejudicado pela alteração da velocidade em que cada um deles se desenvolve ao longo da estação de cultivo, segundo a bióloga vegetal Megan Bartlett, que estuda viticultura na Universidade da Califórnia em Davis.

As uvas, como a maior parte das frutas, decompõem ácidos e acumulam açúcar à medida que amadurecem. Mas, sob temperaturas mais altas, o amadurecimento é sobrecarregado, gerando uvas com sabor doce, similar a passas.

Os fermentos consomem esses açúcares durante a fermentação e expelem álcool, de forma que a fermentação de uvas mais doces gera vinho com teor alcoólico mais alto. E, de fato, o teor de álcool dos vinhos de regiões quentes como o sul da França vem aumentando.

Essa tendência é indesejável para os consumidores dos vinhos da região, especialmente porque é acompanhada por uma queda da acidez, segundo Cécile Ha, porta-voz do Conselho do Vinho de Bordeaux. A acidez gera sabor de frutas frescas e garante que os vinhos durem por anos na adega.

Em alguns vinhos, o teor de álcool mais alto cria um sabor ardente e mascara os aromas sutis, segundo a cientista alimentar Carolyn Ross, da Universidade do Estado de Washington, nos Estados Unidos. Ela catalogou compostos aromáticos do vinho na publicação Annual Review of Food Science and Technology.

Os vinhos com maior teor alcoólico também costumam ter sabor mais picante. Por isso, à medida que o clima fica mais quente, “você está caminhando cada vez mais para o estilo Zinfandel [uva vinífera popular na Califórnia]”, afirma Bartlett. “O que é ótimo se o que o que você quer é Zinfandel. Mas, se você tiver plantado Pinot ou Cabernet, você não tem mais a expressão real da melhor versão daquela variedade.”

Se a questão fosse simplesmente de açúcar e ácidos, a solução seria relativamente simples: colher as uvas mais cedo, antes que elas fiquem doces demais e enquanto elas ainda mantêm sua acidez. Mas os produtores também querem a formação da mescla de compostos secundários, que cria as camadas de aromas fundamentais para vinhos de qualidade.

Isso pode forçar os produtores de vinho a escolher entre colher cedo, sem o desenvolvimento completo dos taninos e antocianinas, ou colher mais tarde, quando as uvas estão carregadas desses compostos, mas também estão doces demais.

Se nada for alterado, as mudanças das uvas causadas pelo aumento das temperaturas geram sabores mais maduros, ou “cozidos”, no vinho.

MacNeil descreve a progressão desta forma: “[primeiro] cerejas verdes, depois cerejas quase maduras, depois cerejas maduras, depois suco de cereja, depois cerejas que foram cozidas no fogão como se fôssemos fazer uma torta, depois cerejas secas que são quase como passas.”

Para os vinhos de locais mais quentes, as mudanças climáticas são preocupantes porque há o risco de que eles percam o senso de local, à medida que cada vez mais vinhos ficam parecidos com uvas passas. E “todas as passas têm o mesmo gosto”, segundo MacNeil.

A falta de distinção entre os vinhos, causada pelas temperaturas mais altas e pela maior imprevisibilidade do clima, além do aumento dos intercâmbios de técnicas de cultivo, já está afetando a indústria. Ela dificultou ainda mais a certificação dos mestres sommeliers – um exame difícil e constrangedor, que inclui adivinhar a variedade, o ano e a região de um vinho.

“Existem muitas pessoas que são mestres do vinho há mais tempo e mestres sommeliers que afirmam que, se fossem prestar o exame agora, especialmente o exame de sabor, nunca seriam aprovadas”, afirma MacNeil.

Como o aquecimento do clima altera a química do vinho

Açúcar

As uvas amadurecem com mais rapidez sob temperaturas mais altas, acumulando mais açúcar, o que aumenta o teor alcoólico do vinho.

Ácidos

A acidez, que aumenta o frescor e o sabor do vinho, é reduzida em climas mais quentes.

Compostos secundários

Pigmentos conhecidos como antocianinas decompõem-se com o calor. Os taninos, importantes para a sensação do vinho na boca, podem não se desenvolver o suficiente se as uvas forem colhidas mais cedo para reduzir o aumento do nível de açúcar.

O sabor do fogo

Mas essas mudanças do sabor do vinho são sutis em comparação com outro temido impacto climático: o sabor de fumaça.

Um pouco de sabor de fumaça gerado, por exemplo, pelo envelhecimento em barris pode melhorar um vinho. Mas estamos falando de um “sabor de cinzeiro muito característico na parte posterior da garganta”, como descreve Oberholster, com notas como “Band-Aid” e “de remédio”.

Compostos conhecidos como fenóis voláteis, produzidos quando a madeira é queimada, infiltram-se nas uvas e acumulam-se principalmente nas cascas. Esses fenóis unem-se aos açúcares em compostos inodoros chamados glicosídeos – até a fermentação, quando alguns desses fenóis se rompem, fornecendo o sabor distinto e avassalador.

Essa decomposição prossegue no barril, na garrafa e na boca. O sabor é mais pronunciado quando as frutas são imersas em fumaça nova, em vez de fumaça mais antiga.

A experiência é “retronasal”, ou seja, o aroma eleva-se para os seios nasais quando o vinho está na língua. Estima-se que 20 a 25% das pessoas não conseguem sentir esse sabor, possivelmente porque sua saliva não contém as enzimas que rompem as ligações que liberam as notas de fumaça.

Trata-se de uma ameaça principalmente para os vinhos tintos, que são fermentados com as cascas das uvas.

O recente surto de intensos incêndios florestais, agravado pelas mudanças climáticas, vem deixando os produtores de Napa ansiosos todos os anos, à medida que se aproxima a colheita de outono das uvas.

Desde 2017, vem pairando forte fumaça sobre os vinhedos de Napa todos os anos. Os viticultores preocupados procuraram Oberholster para pedir orientação e a química fermentou diversos lotes de teste expostos a variados níveis de fumaça.

No dia em que a encontramos, Oberholster nos levou a uma biblioteca de vinho, com capacidade para 24 mil garrafas, no Instituto Robert Mondavi, da Universidade da Califórnia em Davis. Ela retira dois tintos do estoque e nos entrega as safras de 2020.

Um deles é um vinho com fumaça moderada, produzido com uvas expostas a uma semana de fumaça do incêndio florestal no Vale de Napa. O outro é uma fermentação altamente enfumaçada, com uvas que receberam fumaça de um grande complexo de incêndios causados por raios logo acima do vinhedo naquele mesmo ano.

Posteriormente, as autoras realizaram um teste cego informal na mesa da cozinha de Ula Chrobak, em Reno (Nevada, Estados Unidos). Em comparação com um Cabernet Sauvignon Kirkland Signature, os vinhos afetados têm uma nota de fumaça similar a uma fogueira, que Katarina Zimmer percebe principalmente na forma de odor, enquanto Ula também sente uma queimação na parte posterior da garganta.

“Bebendo madeira queimada”, anota Ula no seu caderninho, sobre a safra mais enfumaçada.

Plantar uvas mais resistentes

O gosto de fumaça é gritante e pode ser percebido até mesmo por amadores como nós. Mas muitos produtores também estão preocupados com as formas mais sutis em que as mudanças climáticas ameaçam o sabor e a identidade dos seus produtos.

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Em um clima mais quente, os vinhos costumam ter teor alcoólico mais alto, menos acidez e menos compostos secundários

De prontidão, os produtores e pesquisadores nas regiões mais quentes estão aprendendo como adaptar seus vinhedos, sua produção de vinhos e as próprias bebidas.

Em Bordeaux, por exemplo, o estilo tradicional dos vinhos tintos é encorpado, com fortes aromas frutados e leve rusticidade. Mas a chegada da primavera mais cedo significa que as uvas das variedades tradicionais amadurecem durante o pico do verão e não no outono, gerando grandes quantidades de açúcar, menos ácidos e alterações indesejáveis dos aromas.

Para identificar os tipos de uva mais adaptados aos climas mais quentes, que ainda produzem vinho com aromas típicos de Bordeaux, a agrônoma Agnès Destrac-Irvine, do Instituto Nacional de Agricultura, Alimentação e Meio Ambiente da França, e seus colegas concluíram recentemente um estudo de uma década sobre 52 variedades de outras regiões.

Trabalhando com produtores de vinhos, eles encontraram quatro tipos de vinho tinto e dois de vinho branco que atendem às exigências.

E, em decisão inovadora, as autoridades francesas – que há muito tempo permitiam apenas o cultivo de seis variedades tradicionais de uvas tintas e oito de uvas brancas – autorizaram formalmente em 2021 os produtores de vinho de Bordeaux a experimentar as novas variedades, desde que elas não representem mais de 10% do produto final.

Essas novas ferramentas oferecem aos produtores de vinho opções para equilibrar os efeitos das mudanças climáticas sobre os blends de Bordeaux, segundo Destrac-Irvine. Uma delas, a variedade francesa Arinarnoa, pode aumentar os níveis de acidez e tanino, enquanto outra, a portuguesa Touriga Nacional, pode elevar os poderosos aromas da fruta escura que as variedades sensíveis ao calor podem perder.

“Se você tiver mais cores, pode haver mais possibilidades de pintura”, afirma Ha.

Mas a aprovação das seis variedades escolhidas é apenas experimental. Em Bordeaux, onde os viticultores vêm cuidando das uvas há cerca de 2 mil anos, a ideia de novas variedades é assustadora, segundo o fisiologista vegetal Gregory Gambetta, da Bordeaux Sciences Agro (a Escola Superior Nacional de Ciências Agronômicas de Bordeaux) e do Instituto de Ciência do Vinho e da Uva da Universidade de Bordeaux.

Afinal, as variedades tradicionais estão tão entrelaçadas com a cultura e a história da região que, “francamente, seria muito melhor se pudéssemos adaptar o sistema usando outros instrumentos”, afirma ele.

É exatamente isso que Gambetta e outros pesquisadores estão tentando fazer: estudar como adotar técnicas de enxerto para cultivar uvas à prova de mudanças climáticas, usando diferentes porta-enxertos – que, de qualquer forma, normalmente já são de uma variedade diferente.

Os porta-enxertos (também conhecidos na agricultura como “cavalos”) controlam a resistência geral e o consumo de água da planta. Se eles forem selecionados para tolerar o mundo em aquecimento, a variedade cultivada – que determina a química única e o sabor das uvas – pode ainda ser usada e desenvolver-se.

Em um dia quente de sol em novembro de 2021, o especialista em viticultura Kaan Kurtural, da Universidade da Califórnia em Davis, leva-nos a um canteiro de uvas no Vinhedo Experimental de Oakville, no Vale de Napa. Ele fica entre montanhas cobertas de florestas, perto de vinhedos comerciais.

Desde 2016, Kurtural e seus colegas vêm monitorando 16 combinações exclusivas de porta-enxertos e clones de Cabernet Sauvignon para verificar quais combinações são mais resistentes a condições estressantes, como ondas de calor e seca, mantendo a produção de uvas Cabernet Sauvignon de alta qualidade.

Alguns dos enxertos experimentais – incluindo um deles com um porta-enxerto francês chamado 420A – claramente estavam murchos e, depois de apenas cinco anos, alguns já estavam mortos. Mas outros, incluindo os que usaram o porta-enxerto austríaco Kober 5 BB e os franceses 3309 Couderc e 110 Richter, pareciam mais fortes e folhosos.

Andy Beckstoffer, importante viticultor de Napa que está trabalhando com Kurtural em um teste similar em um dos seus próprios vinhedos, acredita que os resultados serão uma bênção para o Cabernet Sauvignon nos próximos anos.

“Esperamos que surjam novas combinações resistentes às mudanças climáticas que também melhorem a qualidade dos vinhos”, afirma ele.

Os produtores de todo o mundo já estão mudando suas práticas tradicionais para compensar os efeitos do aquecimento global. As uvas muitas vezes são colhidas mais cedo para evitar o amadurecimento excessivo e, nas regiões sujeitas a incêndios, para evitar o pico da estação de incêndios florestais e o sabor de fumaça.

Os trabalhadores de Bordeaux agora correm para colher as uvas de manhã cedo, quando a acidez é mais alta, e podam os arbustos para controlar a produção de açúcar.

Na estação de pesquisa de Oakville, Kurtural mostra um experimento atrás do outro para pesquisar os efeitos de diferentes práticas de viticultura, incluindo uma gramínea que absorve carbono e pode ser cultivada entre as fileiras, além de videiras amarradas a fios em diversos estilos de treliça.

Felizmente, para lugares como a Califórnia, atormentada pela seca, a solução não é simplesmente oferecer mais água. Suas pesquisas indicam que os vinhos mais equilibrados e aromáticos vêm de uvas sob tensão de água suave e constante. Uma melhor abordagem pode ser reduzir a exposição ao sol.

“Algumas regiões do espectro podem ser prejudiciais, como o infravermelho próximo”, explica Kurtural. Elas podem aquecer a planta e as frutas.

No vinhedo, ele nos leva a um canteiro de uvas Cabernet Sauvignon que passaram as duas últimas estações embaixo de filmes que formam sombra, como se fossem guarda-sóis. Os filmes retardam o processo de amadurecimento e, aparentemente, não afetam a quantidade de uvas produzida pelas videiras.

Chegamos a provar a diferença na mesma viagem, em uma conferência sobre a pesquisa do vinho na Universidade da Califórnia em Davis.

Ali, Lauren Marigliano – uma das alunas de graduação de Kurtural – apresentou uma análise química das uvas totalmente expostas ao sol ou protegidas por diferentes tipos de sombra. Em seguida, ela forneceu amostras de vinho de três tratamentos para a audiência de pesquisadores, viticultores e fabricantes de vinho.

À nossa volta, profissionais giravam suas taças, cheiravam, tomavam goles e depois cuspiam em pequenos baldes de plástico. Nós observávamos suas técnicas e os imitávamos cuidadosamente.

O primeiro vinho era bem amargo, enquanto o segundo tinha sabor menos complexo. Um especialista ao nosso lado afirmou que ele infelizmente “tem arestas”.

Gostamos mesmo foi do terceiro, que tem um aroma de frutas mais intenso e sabor mais suave. Os participantes o aprovaram, murmurando que ele era “redondo”.

Ocorre que esse vinho “redondo” veio de uvas cultivadas sob um filme protetor que bloqueou cerca de 30% do infravermelho próximo, os comprimentos de onda mais responsáveis pela transmissão de calor.

Ao resfriar as uvas, o filme permitiu que elas acumulassem maiores concentrações de antocianinas sensíveis ao calor que as uvas da primeira e da segunda amostra. Uma delas foi cultivada com um filme protetor menos eficiente, que bloqueou outro conjunto de comprimentos de onda, e a outra sem nenhum filme.

O filme vencedor permitiu ainda a passagem de luz suficiente para acúmulo dos compostos dependentes do sol, criando um vinho tinto mais completo e encorpado, segundo explicou Marigliano à audiência.

Mas nem sempre é econômico para os agricultores instalar longos filmes sobre suas fileiras de uvas, especialmente em terrenos maiores. É quando entra em jogo a treliça.

Durante nossa visita ao vinhedo experimental, Kurtural para em um ponto para indicar uma fileira de vinhas serpenteando ao longo de um único fio suspenso no alto. Ele explica que este estilo de treliça funciona de forma similar a um bom filme protetor, permitindo que as próprias folhas das videiras protejam as frutas.

Práticas como filmes protetores e treliças de proteção das uvas são principalmente limitadas à Austrália, América do Sul, Israel e Espanha. Mas, “agora, com as mudanças climáticas, existem cerca de 30 anos de boas pesquisas sobre a viticultura em clima quente que, de repente, passaram a ser relevantes para locais como a Borgonha e Beaujolais [na França], Alemanha, Napa e Sonoma [na Califórnia]”, afirma Steve Matthiasson, produtor de vinho do Vale de Napa que adotou os tecidos protetores.

Matthiasson também plantou suas uvas em orientação de nordeste para sudoeste, de forma que o sol brilhe diretamente sobre as videiras, deixando as frutas protegidas pelas folhas. “Napa era uma região de cultivo de clima fresco uma geração atrás”, afirma ele, surpreso.

Solucionando os impactos do clima sobre o vinho

Mesmo as uvas mais resistentes nem sempre conseguem suportar o calor extremo e a fumaça. Por isso, os pesquisadores e produtores de vinho também estão desenvolvendo formas de trabalhar com safras afetadas pelo clima e ainda produzir vinhos “redondos”.

Oberholster calcula que muitas das uvas que não foram colhidas após os intensos incêndios da Califórnia em 2020 ainda poderiam ter produzido bons vinhos. Por isso, ela incentiva os viticultores a fazer “fermentações em balde”, em pequena escala, poucas semanas antes da colheita para testar o gosto de fumaça, já que a fermentação libera esses fenóis com gosto de cinzeiro.

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O clima local traz profundos efeitos para o aroma e o sabor do vinho

Os produtores podem então enviar uma amostra do vinho para um laboratório, para que ele próprio analise e prove os microlotes. Eles poderão detectar alterações que um laboratório comercial não encontraria, já que os laboratórios verificam apenas um conjunto limitado de compostos e poderiam concluir que um vinho está bom quando não está.

Oberholster acrescenta que adoçar o vinho defumado com um pouco de concentrado de uva também pode ajudar. Isso faz com que o açúcar adicional impeça que as enzimas da boca liberem os fenóis.

Uma solução ainda melhor seria remover completamente os fenóis, mas os tratamentos atuais, que incluem carvão ativado e osmose reversa, são dirigidos a uma ampla variedade de compostos de fumaça. Por isso, inevitavelmente, eles também irão retirar alguns aromas desejáveis.

Por isso, Oberholster está selecionando enzimas usadas nas indústrias de alimentos e bebidas para encontrar aquelas que podem ajudar a decompor os compostos indesejados do vinho e facilitar sua retirada por filtragem.

E métodos de combinação de vinhos também podem ajudar. Beckstoffer afirma, por exemplo, que suas uvas atingidas pela fumaça de 2020 foram fermentadas e, quando misturadas com vinhos sem fumaça, “podem não valer US$ 200 por garrafa, mas muitas delas podem encher uma garrafa de vinho de US$ 40”.

Já Matthiasson mistura as variedades cuidadosamente para equilibrar os sabores. Ele colhe Cabernet Sauvignon no início da estação para preservar a acidez, o que também significa que as uvas têm menos riqueza na língua e no meio do palato. Por isso, ele mistura uvas Petit Verdot para alimentar o palato e Cabernet Franc para compensar a falta de aromas herbáceos.

Ele também plantou uma reserva de emergência da variedade Sagrantino – “com 20 anos de estrada” – que é rica em taninos, que as uvas Cabernet Sauvignon perdem durante as noites mais quentes.

O aumento das temperaturas ameaça o estilo preferido de Matthiasson: vinhos com teor de álcool mais baixo e maior acidez que a maioria dos vinhos encorpados que são populares atualmente. Mas ele não acha que seja inevitável ter vinho com gosto de passas em todos os lugares.

Na verdade, existem estudos que indicam que grande parte do crescimento dos vinhos mais fortes e doces é uma escolha orientada pelos viticultores e pela demanda de mercado, não só pelo aquecimento global.

“Fico muito frustrado quando vejo produtores de vinho usarem as mudanças climáticas como desculpa para vinhos maduros demais, ricos e frutados quando não é o caso”, afirma Matthiasson.

E a produção de vinho também está usando a alta tecnologia para adaptar-se às mudanças climáticas.

Na França, a microbióloga Fabienne Remize, da Universidade de Montpellier, produziu cepas de levedura inovadoras que produzem menos álcool durante a fermentação, para superar a questão do excesso de açúcar.

Cientistas também desenvolveram um processo de eletrodiálise que pode aumentar a acidez do vinho removendo íons como potássio. Este método já foi adotado por produtores de vinho da França, Marrocos e Espanha.

O futuro do vinho

A grande questão para os vinhos que sofrem com as mudanças climáticas e as adaptações a serem desenvolvidas pelos pesquisadores e produtores, naturalmente, é: as pessoas continuarão a comprar e degustar vinho?

Uma das lições mais surpreendentes das pesquisas de mercado é esse gosto pelos vinhos encorpados e frutados, observado por Kurtural e Gambetta.

Em um estudo sobre vinhos tintos de Napa e Bordeaux, eles concluíram que as avaliações dos vinhos, na verdade, vêm crescendo nos últimos 60 anos, mesmo com o aquecimento daquelas regiões. Para eles, as conclusões parecem contradizer as previsões anteriores de que a qualidade chegaria ao pico a uma temperatura média de 17,3 °C na estação de cultivo, que as duas regiões já ultrapassaram há muito tempo.

Kurtural e Gambetta ainda observam que podemos estar atingindo um momento crítico, em que as temperaturas mais altas eliminam os compostos secundários além da capacidade dos produtores de adaptar-se. “Francamente, não sabemos qual é o ideal”, afirma Gambetta. “Precisamos de melhores ferramentas e melhores análises para descobrir o quanto é demais.”

Já Matthiasson acredita que os vinhos finos superarão o aquecimento global. Com seus tecidos protetores, técnicas de combinação e a reserva de emergência de Sagrantino, ele está pronto para o que vier.

“Acho que conseguiremos nos adaptar”, afirma ele. “A curto prazo, nossa velocidade de aprendizado é maior que a das mudanças climáticas.”

* Ula Chrobak é jornalista freelancer especializada em ciências de Reno, em Nevada (Estados Unidos).

Katarina Zimmer é jornalista freelancer especializada em ciência e meio ambiente de Nova York, nos Estados Unidos.

Este artigo foi publicado originalmente na revista jornalística independente Knowable, da editora norte-americana Annual Reviews, e republicado pelo site BBC Future sob licença Creative Commons. Leia a versão original (em inglês).

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