- Ángel Bermúdez (@angelbermudez)
- BBC Mundo
“Balseiros do ar” é uma expressão que se tornou popular há algumas décadas para descrever os venezuelanos que emigraram para os Estados Unidos depois que Hugo Chávez assumiu o poder em 1999.
Morto em 2013, Chávez governou a Venezuela por 14 anos.
Essa frase não descreve mais como os venezuelanos entram nos EUA, que ultimamente está mais para os chamados “wetbacks” (“costas molhadas”, em tradução livre), um termo cunhado na década de 1920 — e muitas vezes usado de forma depreciativa — para se referir àqueles que atravessaram a fronteira nadando pelo Rio Grande do México.
Em agosto deste ano, o número de venezuelanos que tentou cruzar a fronteira do México para os Estados Unidos foi maior que o de guatemaltecos e hondurenhos. Apenas os próprios mexicanos fizeram mais travessias.
Naquele mês, a patrulha de fronteira americana deteve 25.349 cidadãos venezuelanos, número quatro vezes maior do que o de agosto de 2021 (6.301).
Já o número de brasileiros tentando cruzar a fronteira do México com os EUA caiu no mesmo período – foram 5.750 detenções contra 9.100 um ano antes. Em dezembro do ano passado, por pressão do governo americano, o México passou a cobrar visto de turista de brasileiros.
Em setembro, segundo o Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos (DHS, na sigla em inglês), aumentou ainda mais o contingente de venezuelanos detidos na fronteira sul: 33 mil.
Mas talvez os dados que mostrem mais claramente como as coisas mudaram nos últimos dois anos sejam os seguintes: entre os anos fiscais de 2014 e 2019, a média mensal de detenções de venezuelanos foi de 127.
No total, entre o ano fiscal de 2021 e o ano fiscal de 2022 (que terminou em 30 de setembro), as detenções de venezuelanos na fronteira aumentaram 293%, segundo o DHS.
Diante dessa situação, o governo do presidente americano Joe Biden anunciou nesta quarta-feira (12/10) uma nova política que prevê a expulsão para o México de todos os venezuelanos que entrarem nos EUA sem autorização pela fronteira, mas que, ao mesmo tempo, concederá permissão humanitária para cerca de 24 mil deles, atendida uma série de requisitos.
Mas por que tantos venezuelanos estão entrando nos Estados Unidos pela fronteira sul?
Um país em crise
Historicamente, os venezuelanos não tinham tradição de emigrar.
Pelo contrário.
No século 20, a Venezuela serviu durante décadas como local de acolhimento para pessoas vindas, sobretudo, de outros países da América Latina e do sul da Europa.
A profunda crise que a Venezuela experimentou nos últimos sete anos mudou completamente essa dinâmica e o país se tornou um grande emissor de migrantes.
Cerca de 7,1 milhões de venezuelanos (cerca de 20% da população) vivem atualmente como migrantes ou refugiados em diferentes partes do mundo, segundo dados da ONU de setembro de 2022.
Segundo Juan Navarrete, vice-diretor para a crise de refugiados da Anistia Internacional Venezuela com sede em Bogotá (Colômbia), esse número mostra que a crise migratória venezuelana não deu sinais de arrefecimento — em agosto o número de refugiados era de 6,8 milhões de pessoas.
“O fluxo de pessoas que sai da Venezuela continua, embora talvez não na mesma proporção do período 2015-2017”, diz Navarrete à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC.
Julia Gellat, analista sênior do Migration Policy Institute, um centro de estudos com sede em Washington (Estados Unidos), acredita que uma combinação de condições econômicas e políticas difíceis vem forçando os venezuelanos a deixar o país.
Em sua visão, algumas pessoas que decidiram permanecer na Venezuela até agora estavam esperando a queda do governo de Nicolás Maduro e, como isso não aconteceu, agora acreditam que é hora de sair.
A Venezuela saiu de um longo período de hiperinflação em dezembro de 2021, mas continua sendo um dos países com a inflação mais alta do mundo.
Nos últimos dois meses, a moeda venezuelana se desvalorizou cerca de 30% em relação ao dólar, cuja cotação oficial passou de 6,28 bolívares por dólar em agosto para 8,26 bolívares por dólar nesta semana, o que deixa o salário mínimo mensal dos venezuelanos em torno de US$ 16 ou R$ 85 — no Brasil, para efeitos de comparação, o salário mínimo é de R$ 1.212.
Mudança na tendência migratória
Desde o início da crise migratória, a maioria dos venezuelanos que decidiu deixar o país migrou para outras nações da América Latina e do Caribe: cerca de 5,96 milhões.
Estima-se que existam quase 2,5 milhões de venezuelanos na Colômbia, 1,5 milhão no Peru, 500 mil no Equador e 450 mil no Chile. No Brasil, são cerca de 260 mil, segundo dados da ONU.
No entanto, Navarrete explica que as condições de entrada e permanência de venezuelanos na região ficaram mais difíceis nos últimos anos.
Isso levou a uma mudança na tendência migratória. Portanto, agora, em vez de procurarem rotas para o sul, os venezuelanos que buscam uma vida melhor no exterior passaram a olhar mais para o norte.
“Assim como no norte existe o Estreito de Darién [uma selva muito perigosa que os migrantes que vão da Colômbia ao Panamá devem atravessar], no sul, desde a pandemia de coronavírus, os países da região começaram a exigir dos venezuelanos vistos e outros documentos de difícil obtenção”, diz.
O especialista indica que a essas dificuldades se somam alguns episódios de xenofobia ocorridos em alguns países como Chile e Peru, que os migrantes também levam em consideração ao pensar em possíveis destinos.
Soma-se a tudo isso o fato de que, desde a pandemia do coronavírus, a situação econômica nos países da América Latina se deteriorou tanto para a população local quanto para os imigrantes, que ficaram em situação ainda mais precária.
“Acho que uma mudança que ocorreu recentemente é que as condições econômicas em outros países levaram os venezuelanos a virem para os Estados Unidos”, diz Julia Gelatt.
A atratividade dos EUA e a ‘inteligência migratória’
Navarrete explica que, diante da deterioração das condições econômicas e das dificuldades crescentes de ir para outros países latino-americanos, os EUA podem aparecer como um lugar mais atraente na mente dos migrantes venezuelanos.
“Um migrante venezuelano que vive mendigando dinheiro nas ruas da Colômbia pode pensar que pode conseguir muito mais dinheiro nos Estados Unidos, onde os meios de subsistência são melhores. Então, em sua imaginação, eles preferem ir rumo ao norte em vez de ao leste, sem pensar que os riscos da rota norte são muito maiores”, argumenta.
A isso se soma o fato de que os Estados Unidos tinham uma política benevolente em relação aos migrantes venezuelanos, que as autoridades daquele país consideram vítimas do governo Maduro, descrito como um “ditador” tanto por Biden quanto por seu antecessor, o republicano Donald Trump.
Em um comunicado de imprensa Alfândega e Proteção de Fronteiras dos Estados Unidos (CBP, na sigla em inglês) divulgado em setembro, destaca-se que “o grande número de pessoas que foge dos regimes comunistas fracassados na Venezuela, Nicarágua e Cuba está contribuindo para um maior número de migrantes tentando atravessar a fronteira.”
Por volta desses mesmos dias, questionado pela imprensa, o próprio presidente Biden disse que não era “racional” devolver os migrantes a esses três países.
Até agora, na prática, essa posição significava que, durante meses, quando os venezuelanos cruzavam a fronteira para os EUA vindos do México, eles “se rendiam” à patrulha de fronteira, porque achavam que não seriam deportados, mas que simplesmente seriam detidos por alguns dias e depois soltos enquanto aguardavam o processamento de seu pedido de asilo perante um juiz de imigração.
Isso era uma diferença fundamental em relação ao tratamento dado aos migrantes de muitos outros países expulsos dos EUA para o México ou deportados para seus países de origem.
“Alguns imigrantes achavam que até agora os Estados Unidos estavam deixando os venezuelanos entrarem e não os expulsavam com base no Título 42 (uma regra da era Trump que permite que eles sejam devolvidos ao México com a desculpa da pandemia de coronavírus), ao contrário do que acontece com os migrantes de outros países. Acho que essa informação se espalhou entre as redes de migrantes”, diz Gellat.
Navarrete se refere a esse fenômeno como “inteligência migratória”: a troca de informações entre migrantes que, como explica, no caso dos venezuelanos, ocorre muito por meio de redes sociais como TikTok e Facebook.
Segundo o especialista, a soma de todos esses elementos vem tornando a ideia de emigrar para os EUA atraente na mente dos migrantes venezuelanos.
Mas podemos esperar alguma mudança após o governo Biden anunciar que vai expulsar para o México os venezuelanos que tentarem entrar na fronteira sul sem visto?
Navarrete acredita que, em parte, isso dependerá do que acontecer com essas informações e como elas são tratadas nas redes de migrantes, e aponta que muitos dos que estão emigrando são jovens, de classes populares, que não conhecem as normais legais sobre migração.
Ele acrescenta ainda que os grupos de contrabando de migrantes encontraram nos venezuelanos uma oportunidade de negócio.
Julia Gelatt, por sua vez, considera ser possível que, embora alguns decidam permanecer na Venezuela ou ir para outros países, haja quem insista em ir para os Estados Unidos.
“Se as pessoas estão fugindo da fome, da pobreza e da repressão política na Venezuela, é muito provável que façam a viagem de qualquer maneira e possam tentar atravessar a fronteira, mesmo que não estejam mais procurando por agentes de patrulha de fronteira para que lhes permita entrar e ficar. As pessoas ainda podem estar tentando entrar, mas clandestinamente”, diz.
“Quando as condições são tão difíceis, haverá pessoas que precisam emigrar para sobreviver e essas ainda podem tentar vir para os EUA”, conclui.
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