- Alessandra Corrêa
- De Washington (EUA) para a BBC News Brasil
Nesta semana, a Suprema Corte dos Estados Unidos, mais alta instância da Justiça do país, ouviu os argumentos de dois casos que poderão transformar a maneira como as universidades americanas selecionam seus alunos.
Os casos diante dos nove juízes do tribunal contestam a inclusão da raça dos candidatos entre os vários critérios considerados nos programas de admissão da Universidade Harvard e da Universidade da Carolina do Norte (UNC). Os autores dos processos alegam que o uso de ações afirmativas por essas instituições prejudica estudantes brancos e de origem asiática e representa discriminação racial.
A decisão final só deve ser anunciada na metade de 2023, mas os casos já são considerados entre os mais importantes deste calendário da Suprema Corte (que começa em outubro e se estende até julho do ano seguinte). Grupos contrários e a favor do uso de ações afirmativas estão planejando manifestações em frente ao tribunal nesta segunda-feira.
Uma decisão que proíba o processo de seleção dessas universidades de levar em consideração a raça dos candidatos teria impacto em outras instituições de ensino superior em todo o país. Segundo defensores do uso de ações afirmativas, isso reduziria a diversidade e o número de alunos negros e latinos em universidades americanas.
No passado, outros casos diante da Suprema Corte já questionaram o uso de ações afirmativas no ensino superior, e o tribunal sempre reafirmou a legalidade da prática, que é herança do movimento dos direitos civis dos anos 1960.
Mas a atual composição da Corte, com seis juízes na chamada ala conservadora (indicados por presidentes do Partido Republicano, sendo três deles por Donald Trump) e apenas três na ala liberal (indicados por presidentes do Partido Democrata), pode abrir caminho para uma decisão que reverta quase 45 anos de precedentes.
Em junho deste ano, essa supermaioria conservadora já levou a uma decisão que abandonou quase 50 anos de precedente no caso do aborto, ao anular o direito constitucional à interrupção da gravidez, que era garantido desde 1973 e havia sido reafirmado várias vezes ao longo de décadas.
O que dizem os dois lados
“(Sem ações afirmativas) os benefícios substanciais da diversidade serão colocados em risco”, disse em entrevista coletiva nesta semana o diretor do projeto de oportunidades educacionais da organização de direitos civis Lawyers’ Committee for Civil Rights Under Law, David Hinojosa.
Hinojosa foi um dos advogados a apresentar argumentos orais diante da Suprema Corte na segunda-feira (31/10), defendendo o uso da prática e representando como clientes ex-alunos da UNC.
“Esses casos (contra a UNC e Harvard) nos lembram que a educação continua sendo um campo de batalha para os direitos civis”, disse na mesma entrevista o presidente do Lawyers’ Committee, Damon Hewitt.
Para ambos, apesar de as ações afirmativas serem uma questão de justiça racial, seu uso em universidades beneficia alunos de todas as raças e “é crucial para formar um corpo diversificado de profissionais para atuar em uma sociedade global e pluralista”.
Mas apoiadores dos processos contra as universidades dizem esperar que o tribunal ponha fim à prática.
“O sistema ideal deveria ser (o de levar em conta a) diversidade de pensamento”, disse à BBC News Brasil a presidente da Chinese American Citizens Alliance Greater New York, Wai Wah Chin.
Sua organização, que representa americanos de origem chinesa em Nova York, é uma entre várias integrantes da Asian American Coalition for Education (Coalizão Asiática-Americana para Educação), grupo formado em 2014 e que apoia os autores das ações.
“Um dos desafios que temos é que as universidades estão buscando uma suposta diversidade de cor da pele. Nós não podemos olhar para a cor da pele. Devemos olhar para as capacidades (de cada candidato) e como podem contribuir por seu mérito”, afirmou Chin.
O debate sobre ações afirmativas em universidades divide os Estados Unidos há décadas. A decisão da Suprema Corte deve ser anunciada em meados de 2023
Os detalhes dos casos
Os casos diante da Suprema Corte têm origem em duas ações iniciadas em 2014 pela organização Students for Fair Admissions (Estudantes por Admissões Justas, ou SFFA, na sigla em inglês), fundada pelo ativista conservador Edward Blum, que é branco e tem um longo histórico de processos judiciais contra ações afirmativas.
De acordo com a SFFA, o uso da raça em processos de seleção viola a garantia constitucional de igualdade de proteção da lei. A organização afirma representar “mais de 20 mil estudantes, pais e outros que acreditam que classificações e preferências raciais em admissões a universidades são injustas, desnecessárias e inconstitucionais”.
“Nossa missão é apoiar e participar de ações judiciais que irão restaurar os princípios originais do movimento de direitos civis da nossa nação: ‘A raça e a etnia de um estudante não devem ser fatores que prejudicam nem ajudam esse estudante a ganhar admissão em uma universidade competitiva'”, diz a SFFA.
Em uma das ações movidas em 2014, representando candidatos de origem asiática rejeitados por Harvard, a SFFA acusou a universidade, uma das mais prestigiosas do país, de discriminação e de violar os direitos civis desses estudantes, que estariam sendo penalizados por sua raça e perdendo a vaga para alunos brancos, negros e latinos menos qualificados.
Segundo alegações da SFFA, como candidatos de origem asiática costumam se sair melhor do que estudantes brancos ou de outras raças em desempenho acadêmico, atividades extracurriculares e outras categorias objetivas, a universidade estaria reduzindo suas notas em critérios que são subjetivos e difíceis de quantificar, como “simpatia” ou “compaixão”.
Em sua ação, a SFFA alegava que Harvard estaria assim manipulando determinados aspectos de seu processo de admissão, que é notoriamente envolto em segredo, para tentar limitar o número de calouros de origem asiática e manter inalterado o percentual de cada raça em seu corpo de estudantes. Para a organização, o processo de admissão em Harvard equivale a um sistema de cotas raciais, o que é proibido nos Estados Unidos.
Enquanto ações anteriores contestando ações afirmativas tinham como protagonistas brancos que diziam ter sido prejudicados pela preferência dada a negros ou latinos, o caso contra Harvard é diferente, ao alegar que a prática penaliza estudantes asiáticos, eles próprios pertencentes a uma minoria racial.
Resposta das universidades
Harvard rejeita as alegações e diz que a raça dos candidatos nunca é considerada de maneira negativa e é apenas um entre vários critérios analisados em uma abordagem “holística”.
Advogados de Harvard ressaltam que o sistema de admissões da instituição é considerado modelo e foi elogiado pela Suprema Corte em uma decisão de 1978, que proibiu o uso de cotas, mas permitiu que universidades considerem a raça dos candidatos entre os critérios de seleção, como modo de assegurar diversidade.
Um dos argumentos de Harvard é o de que, se qualquer consideração sobre raça for eliminada do processo de seleção, o resultado será o declínio na diversidade, colocando em risco o que a instituição considera uma parte fundamental de sua missão. A universidade é uma das mais competitivas do país, e mais de 95% dos candidatos costumam ser rejeitados a cada ano.
Nesse contexto, com muito mais estudantes altamente qualificados do que vagas, os advogados dizem que Harvard é obrigada a considerar outros aspectos além do desempenho acadêmico para decidir quem é aceito. Na turma mais recente, dos 61.220 estudantes que se inscreveram para uma vaga, apenas 1.954 foram aceitos. Desses, 27,8% são de origem asiática, 15,5% são negros e 12,6% são latinos.
Na ação contra a UNC, a alegação é a de que a universidade discrimina candidatos brancos e de origem asiática ao dar preferência a estudantes negros, latinos ou indígenas. Assim como Harvard, a UNC também nega as alegações de discriminação e defende suas práticas, ressaltando que são legais e promovem diversidade.
Ambas as universidades receberam decisões favoráveis da Justiça em instâncias inferiores. A SFFA apelou e, em janeiro deste ano, a Suprema Corte anunciou que aceitaria analisar os dois casos.
Opinião dividida
O debate sobre ações afirmativas em universidades divide os Estados Unidos há décadas. Defensores da prática ressaltam que é essencial para garantir um ambiente acadêmico que reflita a diversidade da sociedade, fator importante para a formação dos alunos.
Outros lembram que a raça dos candidatos é apenas um entre os vários critérios que irão definir quem será admitido. Mas críticos dizem que a seleção deveria ser baseada somente em fatores objetivos, como notas.
No ano passado, uma pesquisa Gallup indicou que 62% dos americanos apoiam ações afirmativas para grupos minoritários e a maioria diz acreditar que o racismo persiste no país e que é importante promover diversidade racial.
Mas em outra pesquisa recente, divulgada neste ano Pew Research Center, 74% dos entrevistados, entre eles 59% dos que se identificam como negros, disseram que a raça ou etnia de um candidato não deveria ser um fator na admissão de alunos em universidades.
Entre a própria comunidade de origem asiática, no centro da ação contra Harvard, não há consenso sobre o tema. Os autores das ações judiciais são criticados por alguns por supostamente explorar estudantes asiáticos para avançar uma agenda que prejudicaria o interesse de minorias raciais.
“A oposição (às práticas) não fala pelos americanos de origem asiática. Nós rejeitamos essas narrativas falsas enraizadas em supremacia branca para colocar comunidades de cor umas contra as outras”, disse em entrevista coletiva John C. Yang, presidente e diretor executivo da organização Asian Americans Advancing Justice, dedicada à defesa dos direitos civis de americanos de origem asiática.
Mas outros manifestam apoio à SFFA. No fim de semana, líderes comunitários representando americanos de origem asiática, entre eles chineses, indianos, coreanos e vietnamitas, organizaram manifestações em Washington em apoio às ações diante da Suprema Corte.
“Esperamos que a Corte decida em favor da SFFA, para que possamos assegurar que considerações raciais não serão levadas em conta nas admissões nas universidades”, afirmou Chin, da Chinese American Citizens Alliance, à BBC News Brasil.
“E, por extensão, queremos desafiar a noção de que a raça (dos candidatos) deve determinar as admissões não apenas no ensino, mas também em outras áreas.”
Histórico
O uso de ações afirmativas nos Estados Unidos remonta aos anos 1960, auge do movimento de luta pelos direitos civis. Em 1961, pouco depois de chegar à Casa Branca, o então presidente John Kennedy assinou uma ordem executiva determinando medidas descritas como “ações afirmativas”, para garantir que trabalhadores não sofressem discriminação com base em raça, crença, cor ou origem nacional.
Essas práticas seriam uma forma de oferecer oportunidades a pessoas de minorias raciais, prejudicadas pelas desigualdades resultantes de séculos de escravidão e de políticas de segregação. Nas universidades, especialmente as de ponta, onde estudantes brancos formavam a grande maioria, as ações afirmativas passaram a ser uma ferramenta para tornar as instituições mais racialmente integradas.
Mas, desde o início, a prática provocou reações negativas, especialmente por parte de grupos conservadores, que questionavam sua constitucionalidade. No fim da década de 1970, essas tensões chegaram à Suprema Corte.
Em 1978, o tribunal anunciou sua decisão no caso do estudante branco Allan Bakke, que havia entrado com uma ação contra a faculdade de medicina da Universidade da Califórnia após ter sido rejeitado. Na época, a instituição mantinha um sistema de cotas, com 16 de 100 vagas reservadas para alunos de minorias raciais.
Bakke argumentava que o sistema de cotas era inconstitucional e violava a Lei dos Direitos Civis de 1964. Em sua decisão, a Suprema Corte concordou que cotas raciais numéricas violavam essa lei. Mas os juízes permitiram o uso de ações afirmativas em determinadas circunstâncias, nas quais a raça dos candidatos é considerada ao lado de vários outros critérios, com o objetivo de promover diversidade no corpo estudantil.
Essa posição foi reafirmada pela Suprema Corte 25 anos depois, no caso Grutter versus Bollinger, que contestava o uso de ações afirmativas pela Universidade de Michigan e foi decidido em 2003. As ações agora diante do tribunal pedem que os juízes derrubem esses precedentes.
Mais de 20 processos
Blum, que está à frente da SFFA e é ajudado por doações financeiras de grupos conservadores, já moveu mais de 20 processos questionando o uso de preferências raciais em diferentes aspectos da vida pública nos Estados Unidos, alguns deles litigados até chegar à Suprema Corte.
Em um desses casos, em 2013, Blum foi vitorioso ao contestar partes da lei dos Direitos de Voto de 1965 que exigiam que Estados com histórico de discriminação racial obtivessem permissão federal antes de mudar leis eleitorais.
Três anos depois, em 2016, ele foi o autor do último caso sobre ações afirmativas no ensino superior a chegar à Suprema Corte. Naquela ação, movida em nome de uma estudante branca que contestava a consideração de raça no processo de seleção da Universidade do Texas, a decisão foi desfavorável a Blum, e a Suprema Corte confirmou que o sistema de admissões da universidade era legal.
Naquela decisão, o juiz Anthony Kennedy, nomeado pelo presidente republicano Ronald Reagan, não votou com a ala conservadora, e se aliou aos colegas da ala liberal para garantir a maioria. Mas Kennedy se aposentou em 2018, e a composição da Suprema Corte é hoje considerada mais fortemente conservadora.
Apesar das divisões, o uso de ações afirmativas é limitado nos Estados Unidos. Atualmente, nove Estados proíbem universidades públicas de considerar a raça dos candidatos entre os critérios de admissão.
Mesmo instituições que adotam ações afirmativas enfrentam dificuldades em atingir diversidade na população estudantil, especialmente as universidades de elite. Mas, nas que buscam outras alternativas, o sucesso também costuma ser limitado.
O caso da Califórnia, onde em 2020 os eleitores rejeitaram em consulta pública uma proposta que previa o fim da proibição, costuma ser citado: apesar da busca de alternativas, como considerar condições socioeconômicos em vez da raça dos candidatos, o corpo estudantil ainda não reflete a diversidade racial do Estado.
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