- Author, Steve Rosenberg
- Role, Editor da BBC para a Rússia, em Moscou
Em Moscou, a Catedral de Cristo Salvador ecoa os cânticos e orações ortodoxas. Está lotada de fiéis em uma das grandes festas da Ortodoxia: o Pentecostes.
Mas muitos vieram aqui para ver uma obra-prima em exposição. Um ícone ortodoxo de 600 anos — um dos mais preciosos da Rússia — que se acredita ter sido pintado pelo artista medieval Andrei Rublev. A obra é conhecida como Santíssima Trindade.
Por um século, esta frágil pintura esteve em um museu estatal, a Galeria Tretyakov de Moscou. Controles de temperatura e umidade, juntamente com equipes de restauradores, ajudaram a proteger e preservar a obra de arte.
Mas o Kremlin ordenou recentemente que o ícone fosse transferido para a Igreja Ortodoxa Russa. O líder da Igreja, patriarca Kirill, está encantado.
“Este ícone retorna à Igreja em um momento em que nossa pátria está enfrentando enormes forças inimigas”, disse ele aos fiéis no fim de semana.
“Ele retorna para que possamos pedir a Deus que ajude nosso país e orar por nosso presidente ortodoxo Vladimir Putin, cuja decisão foi devolver o ícone.”
O patriarca pode ficar satisfeito. Mas a transferência do ícone gerou polêmica.
Um dos historiadores de arte mais renomados da Rússia explica o motivo.
Lev Lifshits fez parte de um grupo de especialistas que desaconselhou a remoção do ícone da Galeria Tretyakov, alertando que a transferência poderia resultar em grandes danos.
‘Capricho pessoal’
“Essa decisão foi um capricho pessoal de alguém”, explica Lev. “O Conselho de Restauração [da Galeria Tretyakov] foi categoricamente contra.”
“Enquanto o ícone estava no museu, com uma equipe de restauradores, era como uma pessoa em terapia intensiva. Ele era monitorado 24 horas por dia, pelos equipamentos mais modernos”, diz o especialista,
“Esta é uma decisão política. Os que estão no poder aqui estão olhando para os céus e esperando ajuda superior.”
Ou, pelo menos, ajuda da Igreja para manter o apoio público à invasão em grande escala da Ucrânia pela Rússia e ao presidente da Rússia.
O patriarca Kirill apóia publicamente o que o Kremlin chama de “operação militar especial”. Ele afirmou anteriormente que qualquer soldado russo morto terá seus pecados “lavados”.
Além disso, o patriarca russo indicou que o governo do presidente Putin sobre a Rússia foi planejado por Deus.
“Deus o colocou no poder para que pudesse realizar um serviço de especial importância e de grande responsabilidade pelo destino do país e das pessoas confiadas aos seus cuidados”, disse Kirill em outubro passado.
Nesse sentido, devolver o ícone da Santíssima Trindade pode ser interpretado como uma recompensa pela lealdade da Igreja.
Mas isso pode ser apenas parte da história.
“A Igreja é um elemento muito importante da ideologia pessoal dele [Putin]”, acredita Andrei Kolesnikov, do Carnegie Russia Eurasia Center.
“O círculo íntimo de Putin e o próprio Putin têm uma ideologia: ela é clerical, antiocidental e imperialista. Qual é a base dessa ideologia? Não o marxismo-leninismo como em um período anterior da história russa, mas a religião”, diz o analista.
“Ele é um homem religioso. Mas não se trata do cristianismo como tal, com verdadeiros valores cristãos, porque crueldade — isso não é um valor cristão. Nesse sentido, Putin é um seguidor de um tipo muito específico de religião.”
Em frente à Catedral de Cristo Salvador, em Moscou, fiéis fazem fila para ver o ícone da Santíssima Trindade. Alguns aqui estão à espera de milagres.
“As coisas estão difíceis agora com a operação militar especial”, diz Valentina. “Estamos rezando pela vitória.”
“Qualquer pessoa sensata torce para que o conflito termine logo”, diz Antonina. “Acho que Deus vai ajudar.”
Na Rússia, a Igreja Ortodoxa costuma pintar a guerra na Ucrânia como uma “guerra santa” para fazer os russos acreditarem que Deus está do lado deles. E para fazê-los esquecer que foi o país deles que invadiu a Ucrânia.
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