- Author, Lucy Sherriff
- Role, BBC Future
Os enormes peixes-boi cinza da Flórida (EUA) costumam nadar preguiçosamente com seus corpos cobertos de cracas, perto da superfície do canal protegido ao lado de Apollo Beach, na Costa do Golfo.
Ali, a água se aquece à temperatura perfeita para os peixes-boi, que não conseguem sobreviver abaixo de 20 °C.
O habitat natural dos peixes-boi são as fontes de água quente encontradas ao longo da Flórida. Ali, os mamíferos passam até oito horas por dia pastando entre as ervas marinhas.
Mas estes peixes-boi de Apollo Beach não se alimentam nestas fontes artesianas marinhas do fundo do oceano, protegidas por rocha calcária e rodeadas por árvores cobertas por barbas-de-velho. Na verdade, o que existe ali é uma grande usina produtora de eletricidade, movida a carvão, que paira sobre os animais. A usina bombeia água quente – um subproduto daquela indústria.
Mistério ‘inacreditável’
Esses peixes-boi se tornaram dependentes das usinas elétricas a carvão e gás. Seu local de crescimento histórico – as fontes naturais ao longo do litoral do Atlântico – foi destruído pelo desenvolvimento humano, explica a conservacionista Elizabeth Fleming, especialista em peixes-boi da organização sem fins lucrativos Defenders of Wildlife.
Agora, esta situação está atingindo um ponto crítico. Com os Estados Unidos passando a adotar a energia renovável, essas usinas serão desligadas e a fonte de água quente artificial para os peixes-boi irá desaparecer.
“É um dos mistérios da relação entre o ser humano e a vida selvagem mais inacreditáveis que já observei na minha vida”, comenta Fleming. “Nós reelaboramos completamente todo o seu habitat.”
Os peixes-boi se dirigem a essas usinas há anos, incluindo a usina do Cabo Canaveral, na Indian River Lagoon. Mas as companhias energéticas provavelmente irão desligar progressivamente essas descargas de água quente ao longo dos próximos 30 anos, à medida que a Flórida se movimenta para atingir emissões zero até 2050.
“Nós destruímos todas as suas fontes no litoral do Atlântico”, explica Fleming. “Precisamos descobrir como fazer esses peixes-boi irem para outros lugares.”
Em 1997, uma usina elétrica frequentada pelos peixes-boi foi modificada para atender padrões de qualidade da água. Com isso, ela eliminou a descarga de água quente, que é produzida usando água fria para resfriar o vapor e produzir eletricidade.
Acostumados a usar a água quente para sobreviver nos meses de inverno, os peixes-boi não deixaram a região e morreram de hipotermia.
Embora as usinas elétricas forneçam aos peixes-boi a água quente de que eles precisam, isso não significa que haja ervas marinhas no local, já que elas não conseguem sobreviver em águas poluídas.
Entre 2011 e 2019, 19 mil hectares de ervas marinhas da Indian River Lagoon (representando 58% do total) morreram, devido à poluição e esgotamento de nutrientes.
Outras estimativas do grupo ambientalista Save the Manatee, que acompanha a população de peixes-boi e defende proteções mais rigorosas, calculam a perda de ervas marinhas em quase 90%.
Os peixes-boi que acostumaram a se dirigir à Indian River Lagoon para conseguir água quente artificial não deixaram o local – e morreram de fome. Em 2021 e 2022, morreram 1,9 mil peixes-boi.
“Isso não tem precedentes”, afirma o fundador do grupo Save the Manatees, Pat Rose.
“Foi preciso termos uma tragédia para que as pessoas compreendessem o que estava acontecendo com os peixes-boi.”
Os animais mortos foram tantos que os cientistas da Comissão da Vida Selvagem da Flórida simplesmente deixaram de realizar necropsias, que normalmente são feitas sempre que morre um peixe-boi.
Medidas desesperadas
A população de peixes-boi estava em crise, o que levou os cientistas a criar um plano desesperado: se não houvesse ervas marinhas para comer, eles iriam alimentar os animais com alface-romana.
Cerca de 272.155 kg de alface foram oferecidos à população de peixes-boi da costa leste da Flórida, principalmente no entorno do Cabo Canaveral, por dois anos. O programa recebeu o nome de Let Them Eat Lettuce (“Deixe que eles comam alface”) e foi supervisionado por Rose.
A iniciativa foi um sucesso. Os peixes-boi se recuperaram o suficiente para que o programa pudesse ser suspenso durante o inverno de 2023.
Mas a perda de habitat e ervas marinhas não é a única ameaça enfrentada pelos peixes-boi da Flórida – 96% deles têm algum tipo de cicatriz no corpo, devido às colisões com os barcos.
“Virtualmente todos os peixes-boi vivos já estiveram a 5-10 cm de perder a vida”, explica Rose. “A principal causa das suas lesões e mortes ainda são as colisões com embarcações.”
Os peixes-boi da Flórida dividem as vias aquáticas com centenas de milhares de barcos. Eles sofrem traumas fortes e cortes, causados pelas hélices. E as colisões representam quase 25% das mortes.
Ainda assim, os barcos motorizados continuam permitidos em muitas das fontes naturais que os peixes-boi da Flórida procuram para sua sobrevivência.
“Os santuários que temos para eles são simplesmente pequenos demais”, prossegue Rose.
Ele ajudou a redigir a Lei dos Santuários de Peixes-Boi da Flórida de 1978. Segundo a lei, é ilegal que “qualquer pessoa, a qualquer momento, intencionalmente ou por negligência, perturbe, moleste, abuse ou incomode qualquer peixe-boi.”
A lei também definiu zonas de proteção. Ela proíbe a entrada dos navios em certas áreas ou estabelece limites de velocidade, em outras.
Apesar dessas proteções, pelo menos 104 peixes-boi foram mortos pela atividade humana em 2023.
“Estamos longe de proteger todas as áreas que precisamos”, afirma Rose. “Já progredimos bastante, mas precisamos nos esforçar ainda mais.”
Garantir o futuro
O progresso é lento, mas contínuo, afirma Pat Rose.
Em 2023, novas questões foram introduzidas no curso de segurança de barcos, exigido de toda pessoa que opera um barco na Flórida.
As questões incluíram como proteger os peixes-boi para evitar que eles sejam feridos pelas embarcações.
Foram também tomadas medidas para recuperar as fontes naturais. A Comissão de Conservação dos Peixes e da Vida Selvagem da Flórida (FWC, na sigla em inglês) restaurou as fontes de Warm Mineral Springs no final do ano passado, que haviam sido danificadas por graves enchentes.
Do inverno até a primavera, a região tem acesso proibido, para permitir que os peixes-boi tenham acesso ao seu refúgio de águas quentes sem perturbações. Mas a FWC ainda não publicou os números de peixes-boi do inverno anterior.
Em 2019, a Flórida alocou mais de US$ 50 milhões (cerca de R$ 254 milhões) a programas dedicados ao peixe-boi. E, em 2023, o Estado verificou a menor taxa de mortalidade de peixes-boi desde 2017.
Outros US$ 325 milhões (cerca de R$ 1,65 bilhão) foram investidos na restauração das fontes de água quente da Flórida.
O Parque Estadual Blue Spring tem investido para restaurar as fontes desde 1970. Em janeiro de 2024, o parque recebeu um número recorde de 932 peixes-boi. No início do trabalho de restauração, os administradores do parque haviam contado apenas 14 animais.
Algumas fontes naturais do Estado foram dragadas para ampliar o acesso para os peixes-boi. Mas, em alguns lugares, refúgios térmicos completos foram construídos pelo Corpo de Engenheiros da Marinha americana.
Em 2015, foi construído um conjunto de três bacias com seis metros de profundidade em uma área de 4 hectares ao sul de Port of the Islands, nos Everglades. Ele fornece aos peixes-boi água quente suficiente para que eles sobrevivam pelo inverno.
O serviço de Peixe e Vida Selvagem dos Estados Unidos informou que os peixes-boi vêm usando o refúgio artificial.
Um porta-voz do FWC, que monitora o refúgio, declarou à BBC que sua última contagem era de 48 peixes-boi. Este número é um terço menor do que os anos anteriores, pois as temperaturas fora do refúgio ainda estão suficientemente altas para os animais. Basicamente, o clima mais quente fez com que os peixes-boi tivessem opções de lugares para passar o inverno.
Outras ideias ainda devem ser testadas, como aquecedores a energia solar ou a instalação de um sistema de aquecimento móvel que os peixes-boi possam seguir.
Em 2011, foram ligados aquecedores de água para os peixes-boi, pouco depois que uma usina elétrica foi desativada, para ajudá-los a atravessar o inverno.
Em outras partes do Estado, os cientistas estão fazendo experimentos de cultivo das ervas marinhas em grandes tanques e seu transplante para a Indian River Lagoon.
A Universidade do Atlântico da Flórida, nos Estados Unidos, está criando um viveiro de ervas marinhas, que irá criar uma fonte para transplante e restauração. Eles também estão pesquisando a diversidade genética das ervas marinhas e como seria possível criar linhagens com crescimento mais rápido e maior tolerância ambiental.
Ainda assim, a mais otimista das estimativas prevê que a recuperação das ervas marinhas pode levar 12 a 17 anos.
Outras ações se concentram na educação, como convencer as pessoas que mantêm gramados na orla a não aplicar fertilizante, para evitar que a poluição atinja os habitats dos peixes-boi.
Já mover os peixes-boi será um processo longo e de alto custo. O próprio governo reconhece que os peixes-boi levaram 50 anos para desenvolver sua dependência das usinas elétricas – e pode ser necessário o mesmo período para desmamá-los.
Para Elizabeth Fleming, esta “é uma situação fascinante de gestão da vida selvagem. Temos a obrigação moral de garantir que esses animais possam viver sua vida em segurança.”
Trabalhar para salvar os peixes-boi será benéfico para todo o ecossistema aquático, segundo Rose. Afinal, para proteger os peixes-boi, o ambiente também precisa ser protegido, principalmente contra o desenvolvimento e a poluição.
Rose permanece otimista, apesar da dificuldade de desmamar os animais das usinas elétricas. A solução é encontrar áreas onde o lençol freático esteja se aquecendo, sem nos concentrarmos necessariamente nas fontes naturais.
“Precisaremos de uma combinação de velhas e novas tecnologias”, explica ele. “E não é algo impossível, pois nós acreditamos que podemos encontrar uma saída desta situação.”
Fonte: BBC
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