A controversa reforma do Poder Judiciário do México – considerada a mudança mais profunda do setor nos últimos 30 anos – está muito perto de se tornar realidade.
A Câmara dos Deputados aprovou a reforma na quarta-feira (4/9). Afinal, desde a vitória nas últimas eleições, no início de junho, o governo detém maioria qualificada na Câmara, que permite aprovar emendas à Constituição sem dificuldades.
Nos próximos dias, as medidas serão discutidas no Senado, onde o governo atual está a um assento de garantir os dois terços do Legislativo.
O projeto recebeu duras críticas da oposição e de organizações especializadas. Ele foi votado em meio a uma greve inédita, por tempo indeterminado, de milhares de juízes e funcionários do Poder Judiciário.
Os deputados precisaram votar a iniciativa em outro prédio, fora do Legislativo, que foi bloqueado pelos grevistas que se opõem ao projeto.
Os manifestantes consideram que a reforma prejudica a independência dos poderes e enfraquece a democracia.
O projeto foi apresentado ao Congresso em fevereiro. Na época, a coalizão Morena, do governo mexicano, ainda não contava com votos suficientes para sua aprovação.
Mas, agora, com a posse do novo Congresso, não houve obstáculos para aprovar a iniciativa na Câmara. E, no Senado, embora a coalizão não tenha a mesma maioria, não parece ser difícil negociar o único voto que falta para a aprovação.
A BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, apresenta três pontos fundamentais para entender o que muda no México com a histórica reforma do Poder Judiciário.
1. Qual é a mudança proposta
O ponto mais inovador e polêmico da reforma é a eleição, por voto popular, dos quase 2 mil juízes e magistrados do Judiciário federal, a partir do próximo ano.
A proposta é que os três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – apresentem listas de candidatos para que as pessoas possam votar.
O texto estabelece que a presidência da Suprema Corte será renovada a cada dois anos, alternadamente, em função do número de votos obtidos por cada candidatura nas eleições.
No sistema atual, os 11 ministros da Suprema Corte elegem seu presidente. E eles, por sua vez, são eleitos pelo Congresso e nomeados pelo presidente da República.
O projeto de lei prevê a redução dos tempos de mandato dos juízes e ministros, além de reduzir a quantidade de magistrados da Suprema Corte e do Tribunal Eleitoral.
Ele também contempla duas eleições para renovar os cargos do Poder Judiciário. A primeira delas é extraordinária e deve ser realizada em junho de 2025. A segunda está prevista para 2027.
A eliminação da pensão vitalícia para os ministros atuais e futuros da Corte e o ajuste das suas remunerações ao limite máximo estabelecido para o presidente da República são outras medidas que fazem parte do projeto.
Por outro lado, a reforma cria um órgão disciplinar e outro administrativo para o Poder Judiciário, independentes da Corte. Eles ficariam a cargo dos temas relacionados à carreira judiciária e ao controle interno, além de elaborarem o orçamento.
O novo Órgão de Administração Judiciária será integrado por cinco pessoas, nomeadas para um período de seis anos. Um deles será nomeado pelo Poder Executivo, outro pelo Senado e os três restantes, pela Suprema Corte.
Esta é uma reforma do Poder Judiciário federal, não do sistema de justiça mexicano como um todo. Por isso, ele não afeta os sistemas locais, nem as promotorias, que analisam a maior parte dos processos do país (80%, segundo os dados oficiais).
Por este motivo, analistas defendem a necessidade de uma reforma específica para impulsionar mudanças em nível local, onde costuma ocorrer a maior parte dos casos de corrupção na Justiça.
2. Por que é polêmica
Os opositores da emenda defendem que a eleição de juízes pelo voto direto das urnas irá “politizar” a justiça.
Em outras palavras, em vez de aumentar a independência e a transparência dos juízes, a reforma irá favorecer a seleção política dos candidatos, sem considerar as capacidades profissionais de cada um e as promoções por mérito.
Uma das críticas mais frequentes é que a nomeação irá favorecer os candidatos que tiverem uma rede de contatos, que contarem com financiamento ou os aliados políticos do governo.
Existe também o receio de que a reforma abra as portas para que o crime organizado financie candidaturas ou se aproveite dos juízes menos experientes – o que já acontece atualmente, de muitas formas.
Em carta enviada ao Congresso, juízes e magistrados alertaram que a reforma do Judiciário não respeita as normas do tratado comercial entre o México, Estados Unidos e Canadá (T-MEC), em aspectos como o compromisso de estabelecer e manter “tribunais independentes para a resolução de controvérsias trabalhistas”.
Somou-se à polêmica interna a advertência da Embaixada dos Estados Unidos no México, qualificando a proposta de “risco maior” para a democracia, que poderia ameaçar o acordo comercial entre os três países, a ser revisado em 2026.
Entre outras reações contrárias, a Relatoria Especial das Nações Unidas sobre a Independência dos Juízes e Advogados pediu a reconsideração do projeto para proteger a “independência do Judiciário”.
A organização de direitos humanos Human Rights Watch também expressou um argumento similar. A proposta, segundo ela, debilita “a independência do Judiciário, a privacidade e a prestação de contas”.
Investidores também manifestaram sua preocupação com a reforma. Eles afirmam temer que o próximo governo conte com todas as ferramentas necessárias para levar adiante leis que possam prejudicar o setor empresarial, retirando a segurança jurídica dos investimentos de longo prazo ou aumentando a percepção de risco.
Já os defensores da reforma argumentam que a transformação do Poder Judiciário é uma forma de garantir que a nova presidente possa governar sem os obstáculos jurídicos enfrentados por AMLO para levar adiante sua agenda “humanista”.
O presidente atual afirmou, em repetidas ocasiões, que os tribunais se transformaram em uma trincheira da oposição, a serviço dos mais poderosos.
3. Por que AMLO considera importante para o seu legado
Durante seu mandato, Andrés Manuel López Obrador promoveu um ambicioso projeto de esquerda, que recebeu o nome de 4T – a “Quarta Transformação”.
Como ocorreu com a Independência do México, a Reforma e a Revolução de 1910, o projeto procura mudar “as bases da sociedade mexicana”, segundo o governo.
Neste contexto, a reforma do Judiciário surge como um movimento essencial na agenda de reformas do presidente. E Claudia Sheinbaum pretende dar continuidade a essas reformas.
Para dar impulso à Quarta Transformação, AMLO defende que é preciso pôr fim às estruturas de poder “corruptas” que dominaram por décadas os rumos do país – entre elas, o Poder Judiciário.
Segundo o presidente, seu objetivo é estabelecer um verdadeiro Estado de direito, para que os juízes “não fiquem a serviço de uma minoria”.
AMLO enfrentou duros confrontos com a Suprema Corte, que bloqueou suas reformas no passado. Um exemplo foi o projeto que ampliava a participação estatal no setor energético.
O governo considera que a reforma do Judiciário é a pedra angular que irá assentar as bases para a implementação de outras mudanças no país. Por isso, ele a considera um dos pilares fundamentais do projeto 4T.
O presidente mexicano tem menos de um mês, até deixar o cargo, para fazer uso da maioria obtida com a nova legislatura e aprovar seus últimos projetos.
Assim, ele poderá sustentar seu legado, antes do próximo mandato presidencial – que, no México, é de seis anos.
Inspiração política
Análise de Daniel Pardo, correspondente da BBC News Mundo no México
O que, para alguns, é a democratização da Justiça, para outros é a sua cooptação política. Mas, independente de qual for o resultado, fica claro que a inspiração da reforma é política.
Na prática, ela pretende restringir os poderes da Suprema Corte e sua capacidade de criar obstáculos para o Executivo, que teve diversas de suas reformas truncadas por argumentos judiciais, nos seis anos de mandato de Andrés Manuel López Obrador.
A reforma, em princípio, pode parecer uma forma de aproveitar a popularidade da coalizão Morena para ganhar poder. Mas, a médio prazo, se o apoio popular diminuir, ela pode ser prejudicial.
Existem eleições para juízes por voto popular em dois países do continente: nos Estados Unidos (apenas em nível local) e na Bolívia, onde a abstenção e o boicote da oposição impediram a verdadeira democratização do sistema judiciário.
Ninguém nega que a justiça mexicana precisa de reformas. Ela não sofre mudanças há anos, tem um dos mais altos índices de impunidade, herdou vícios do sistema unipartidário e as pessoas não a conhecem, nem a entendem.
A eleição de juízes também contempla apenas as postulações apresentadas pelo Executivo. Ou seja, por definição, ela hoje é politizada.
De qualquer forma, os especialistas concordam que a maior parte dos problemas do Judiciário está onde as reformas não alcançam: nas promotorias e nos sistemas regionais.
Sua aprovação na Câmara dos Deputados sem contratempos, mas com protestos pontuais, evidencia a ruptura existente entre o sistema tradicional, judiciário e político, e as novas maiorias mexicanas da 4T.
Também parece claro que a oposição saiu das eleições de junho muito fragmentada e carente de narrativa, para poder combater um movimento popular como a coalizão Morena.
AMLO irá governar até o último dia como fez desde o primeiro – sem deixar ninguém indiferente. A pergunta é como isso poderá afetar sua sucessora.
Fonte: BBC