- Author, André Biernath
- Role, Da BBC News Brasil em Londres
- Twitter, @andre_biernath
Diversos levantamentos realizados ao redor do mundo nos últimos anos detectaram uma tendência curiosa e surpreendente: a atual geração de jovens consome menos bebidas alcoólicas do que fizeram os pais ou avós deles na juventude.
Um estudo publicado em 2020 mediu os hábitos etílicos de adolescentes de 12 a 18 anos em 39 países da América do Norte, Europa e Oceania — em praticamente todos esses lugares, aliás, a venda de bebidas alcoólicas para essa faixa etária é ilegal, embora na prática esta seja a fase em que a maioria das pessoas experimenta diferentes drinques pela primeira vez.
Em comparação com as taxas de consumo de álcool observadas há 20 anos, a tendência atual é de queda na grande maioria dos locais. E essa diminuição percentual supera os 50% em países como Noruega, Suécia e Lituânia, e ultrapassa os 80% na Islândia.
Já um levantamento realizado pela organização britânica Drinkaware mostrou que 26% dos jovens de 16 a 24 anos se consideram totalmente abstêmios.
No Brasil, um inquérito realizado todos os anos pelo Ministério da Saúde avalia o consumo abusivo de álcool — classificado como cinco ou mais doses para homens e quatro ou mais doses para mulheres em uma única ocasião — em diferentes faixas etárias.
Os números do último levantamento, realizado em 2021, apontam que 19,3% dos brasileiros de 18 a 24 anos fazem esse consumo abusivo. Esta foi a primeira vez que o índice ficou abaixo dos 20% desde 2015.
Já uma pesquisa publicada nesta semana pelo Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa) mostrou que 46% dos jovens de 18 a 24 anos afirma não beber nunca e 20% declararam consumir produtos etílicos uma vez por mês ou menos.
Na contramão, os autores do trabalho chamam a atenção para o fato de que, quando comparados com outras idades, os jovens (18-24 anos) e os adultos jovens (25-34 anos) apresentam o menor nível de abstenção e a maior frequência de consumo.
O Cisa também pondera que, no Brasil, ainda “não temos dados suficientes para confirmar se há uma tendência de mudança de comportamento dos jovens em relação ao hábito de beber e as razões para moderarem o consumo”.
O órgão também fez uma pesquisa qualitativa sobre a questão com o auxílio do Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica (Ipec). Para isso, foram entrevistados grupos de jovens em Salvador (BA) e São Paulo.
Entre as conclusões, os pesquisadores destacam que “o principal motivador para moderar o consumo de bebidas alcoólicas [entre os jovens] está relacionado à necessidade de manter a reputação e o bom desempenho nas atividades rotineiras, principalmente o trabalho”.
“Além disso, algumas ocasiões específicas, como almoço em família, confraternização com colegas de trabalho, locais com muitas pessoas desconhecidas e necessidade de dirigir também propiciam maior atenção à quantidade de álcool ingerida”, continua o texto.
“A preocupação com a saúde não apareceu como motivo relevante para os jovens pesquisados controlarem o consumo, no entanto, houve a concordância de que o alerta médico acerca dos danos do consumo abusivo poderia contribuir para alterar essa situação.”
A historiadora Deborah Toner, professora da Universidade de Leicester, no Reino Unido, classifica a tendência como “sólida”.
“Trata-se de uma mudança geracional interessante e sólida. Os dados mostram claramente que as taxas de consumo de álcool estão em declínio entre os mais jovens, especialmente na faixa etária dos 20 a 25 anos”, corrobora ela, que também é codiretora da Rede de Estudos sobre a Cultura da Bebida.
“E isso está relacionado a práticas de sobriedade e consciência, que já estão consolidadas em lugares como Reino Unido, Austrália e Estados Unidos”, continua a especialista.
Segundo a professora, essa “cultura da sobriedade” está ligada a uma preocupação cada vez maior com um estilo de vida saudável, mas também com uma afirmação de identidades próprias — se antes todo mundo tinha que ir ao bar e beber para fazer parte de determinado grupo social, hoje as pessoas respeitariam mais as decisões daqueles que desejam se manter sóbrios.
“E isso também já provocou uma mudança na indústria de bebidas, em termos de disponibilizar opções sem álcool ou com baixo teor alcoólico. Há dez anos, era bem difícil encontrar vinhos, cervejas ou outras bebidas zero álcool em bares, pubs, restaurantes e supermercados. Mas esse mercado se expandiu enormemente nos últimos anos”, observa ela.
Além das questões de saúde, as pressões sociais também parecem influenciar nesse cenário. Num artigo para o site de notícias acadêmicas The Conversation, pesquisadores da Universidade La Trobe, na Austrália, da Universidade de Sheffield, no Reino Unido, e da Universidade de Estocolmo, na Suécia, destrincharam o assunto.
“Ser jovem num país desenvolvido hoje é muito diferente em comparação com as gerações anteriores. Das mudanças climáticas ao planejamento de carreira e a compra de uma casa, indivíduos dessa faixa etária sabem que o futuro é incerto”, escrevem eles.
“Com isso, muitos jovens pensam sobre o futuro de maneiras que as gerações passadas não precisavam. Eles tentam ganhar um senso de controle sobre a vida e assegurar o futuro que eles tanto aspiram.”
“Agora, os jovens sentem a pressão de se apresentarem como responsáveis e independentes cada vez mais cedo, e alguns temem que beber leve à intoxicação e à perda de controle, o que poderia atrapalhar os planos sobre o futuro. Essa ênfase no amanhã significa que esses indivíduos limitam o tempo gasto com festas e bebedeiras”, concluem os autores.
O grupo também cita as preocupações de saúde como um fator importante, além da influência das redes sociais na exposição da vida, as mudanças nos relacionamentos com os pais e o fato de o consumo excessivo de álcool não ser mais encarado como algo positivo nesta faixa etária.
O ‘caminho’ do álcool pelo corpo
As bebidas alcoólicas são produzidas sistematicamente desde o advento da agricultura, a 8 mil ou 5 mil anos atrás, a depender da região do planeta. Isso faz do álcool uma das mais antigas drogas consumidas pela humanidade.
Basicamente, elas são obtidas por meio do processo de fermentação do açúcar presente em grãos, frutas e verduras. Esse “trabalho” é feito por leveduras e bactérias.
O produto final depende do que é fermentado. No vinho, são as uvas. Em cervejas, a cevada ou o trigo. Na vodka, a batata. Na cachaça, a cana de açúcar. E assim por diante.
Em termos químicos, o álcool, ou etanol, é uma molécula feita a partir de átomos de carbono, oxigênio e hidrogênio.
Já do ponto de vista farmacêutico, as entidades classificam o álcool como uma substância psicoativa, capaz de alterar as sensações e a percepção que temos de tudo o que está ao redor.
Mas qual o caminho de um drinque pelo corpo? Após passar por boca, esôfago e estômago, essas moléculas de etanol são absorvidas pelo intestino delgado e logo caem na corrente sanguínea.
A chegada delas ao cérebro — junto do fígado, o órgão mais afetado neste processo — demora poucos minutos. É ali que o álcool modifica e “bagunça” o funcionamento de diferentes neurotransmissores. O primeiro deles é a dopamina.
“Alguns especialistas chamam a dopamina de neutransmissor da alegria. Ela faz você se sentir feliz. É por isso que as pessoas bebem álcool, para ter essa sensação de felicidade. Você consegue falar e se soltar mais”, resume a farmacêutica Jing Liang, professora da Universidade do Sul da Califórnia, nos Estados Unidos.
E aqui não podemos nos esquecer do aspecto social da bebida: geralmente, os drinques são consumidos com amigos, e essa atmosfera gera vínculos e conversas que, estimuladas ou não pela dopamina, tornam todo o contexto ainda mais agradável e convidativo. A maioria das pessoas, claro, vai querer repetir essa experiência outras vezes.
Os outros dois químicos cerebrais afetados pelo álcool são o glutamato, que também tem um efeito excitatório, e o Gaba (ácido gama-aminobutírico), que tem uma função contrária, de inibir e diminuir a atividade do sistema nervoso central.
Segundo pesquisas feitas pela professora Liang, uma única dose de bebida alcoólica pode afetar o funcionamento do neurotransmissor Gaba por até 14 dias seguidos.
Mas, mesmo que uma bebida alcoólica tenha efeitos bem duradouros, o impacto do álcool varia segundo uma série de fatores.
“Tudo depende bastante de três coisas: onde o álcool está agindo no cérebro, a quantidade de bebida consumida e até a genética da pessoa. Tudo isso pode mudar as respostas do corpo”, lista a farmacêutica Rochelle Schwartz-Bloom, professora da Universidade Duke, nos Estados Unidos.
Aliás, outro fator que influencia a rapidez com que a bebida vai surtir efeito é a alimentação. Se o estômago está cheio, o álcool chega mais devagar ao intestino Com isso, é absorvido e cai na corrente sanguínea aos poucos.
Ainda no universo do corpo humano, existem muitas dúvidas sobre a ressaca, ou seja, o cansaço, a dor e a indisposição no dia após uma bebedeira intensa. Schwartz-Bloom aponta que uma molécula é a principal suspeita por trás dessa sensação desagradável.
“Quando o álcool passa pelo fígado, há enzimas que o metabolizam e modificam a sua estrutura química. Ele passa de etanol para aldeído ou acetil-aldeído”, explica ela.
“Porém, quando uma pessoa bebe demais ou muito rápido, as enzimas não conseguem fazer esse trabalho de lidar com os aldeídos. Essa molécula é tóxica e pode permanecer no corpo por um longo tempo. E é isso que provavelmente está no organismo na manhã seguinte e provoca dores de cabeça, problemas na pele e dilatação de vasos sanguíneos”, complementa a farmacêutica.
Existe dose segura?
Outra mudança recente na forma como a sociedade se relaciona com as bebidas alcoólicas tem a ver com os limites de consumo, que são cada vez mais restritos.
As Diretrizes Americanas de Nutrição, por exemplo, apontam que adultos acima de 21 anos “podem optar por não beber” ou “beber com moderação, limitando o consumo diário a dois drinques ou menos para homens e um drinque ou menos para mulheres”.
Já a Organização Mundial da Saúde (OMS) mudou seu posicionamento a respeito dessa questão nos últimos anos e agora afirma: nenhum nível de consumo de álcool é seguro.
Segundo a entidade, os riscos e danos relacionados ao hábito de beber álcool foram sistematicamente avaliados nos últimos anos e estão bem documentados.
A OMS aponta que o álcool é uma substância tóxica, psicoativa e indutora de dependência que é classificada como carcinogênica e está relacionada a pelo menos sete tipos de tumores diferentes, como os de mama e de intestino.
A organização calcula que o consumo de bebidas alcoólicas pode levar a 230 doenças diferentes e provoca 3 milhões de mortes no mundo todos os anos.
E mesmo aquela história de que doses moderadas de álcool — como uma taça de vinho por dia — fariam bem ao coração caiu por terra.
Em 2022, a Federação Mundial de Cardiologia divulgou um posicionamento dizendo que, ao contrário do que é dito na cultura popular, o álcool não é nada bom para a saúde cardiovascular. O hábito de beber está relacionado a doenças cardíacas crônicas, segundo a entidade.
Diante das evidências recentes de saúde, a recomendação dos especialistas é não beber álcool, se possível, ou consumir o mínimo para evitar o risco de uma série de doenças, que incluem não apenas câncer e problemas no coração, mas também cirrose, dependência e transtornos psiquiátricos.
Mas os pesquisadores apostam na educação para um consumo consciente e rechaçam as ideias ligadas ao proibicionismo e ao moralismo — até porque acabar com a venda de bebidas alcoólicas não deu nada certo em experiências anteriores, como a implantação da Lei Seca nos Estados Unidos no início do século 20.
“Essa foi a mais ampla lei proibicionista sobre álcool já implementada. E teve efeitos dramáticos nos EUA, particularmente na expansão do crime organizado, que foi capaz de tirar vantagem do enorme mercado clandestino de tráfico e venda de álcool que se instalou nos anos 1920”, destaca Toner.
“Todo esse fenômeno foi muito impactante do ponto de vista econômico e político. E levou ao desenvolvimento de uma infraestrutura policial que depois foi mobilizada com mais intensidade na chamada ‘guerra às drogas’ dos EUA”, conclui a historiadora.
Fonte: BBC
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