- Thais Carrança – @tcarran
- Da BBC News Brasil em São Paulo
O ex-piloto de Fórmula 1 Nelson Piquet, 69, usou um termo considerado racista para se referir ao heptacampeão mundial da modalidade Lewis Hamilton, 37.
Numa entrevista concedida em novembro de 2021, que voltou a circular nas redes sociais, o brasileiro referiu-se ao britânico como “neguinho”, ao comentar um acidente entre Hamilton e o belgo-holandês Max Verstappen, no Grande Prêmio da Inglaterra em julho daquele ano.
“O neguinho meteu o carro e deixou. (…) O neguinho deixou o carro. É porque você não conhece a curva, é uma curva muito alta, não tem jeito de passar dois carros e não tem jeito de você botar o carro do lado. Ele fez de sacanagem”, disse Piquet, que é sogro de Verstappen, namorado de sua filha Kelly Piquet.
A fala gerou ampla repercussão, sendo repudiada pelo próprio Hamilton, pela Fórmula 1, Mercedes, FIA (Federação Internacional de Automobilismo) e dezenas de pessoas nas redes sociais.
“É mais do que linguagem”, escreveu Hamilton, em sua conta no Twitter. “Essas mentalidades arcaicas precisam mudar e não têm lugar no nosso esporte. Eu fui cercado por essas atitudes e fui alvo delas minha vida toda. Houve muito tempo para aprender. Chegou a hora da ação.”
“Linguagem discriminatória ou racista é inaceitável sob qualquer forma e não tem espaço na sociedade”, disse a Fórmula 1, em comunicado postado em conta oficial na rede social.
“Lewis é um embaixador incrível para nosso esporte e merece respeito. Seus esforços incansáveis para aumentar a diversidade e a inclusão são uma lição para muitos e algo com o qual estamos comprometidos na F1″, completou a representação oficial da modalidade.
Em meio ao repúdio e às duras críticas a Piquet — que é abertamente apoiador do presidente Jair Bolsonaro (PL) —, pessoas ligadas à direita do espectro político passaram a questionar se o uso da palavra “neguinho” pelo ex-piloto foi de fato racista.
Os defensores de Piquet também criticaram repercussões do caso na imprensa internacional que traduziram a expressão “neguinho” como equivalente a “nigger”, palavra de forte conotação racista na língua inglesa, cujo uso é considerado atualmente socialmente inaceitável nos Estados Unidos.
Diante da discussão, a BBC News Brasil ouviu três especialistas para explicar porque o uso da palavra “neguinho”, da forma como empregada por Piquet, é considerada racista.
‘Uma forma paternalista de menosprezo’
“O uso da palavra ‘neguinho’ é uma forma comum de racismo no Brasil porque é empregada em especial para ressaltar algo de errado que se pensa que alguém fez, como quem diz que tal pessoa só poderia ter feito aquilo por ser negra”, observa Thiago Amparo, professor da FGV (Fundação Getulio Vargas) em São Paulo.
“É uma palavra que, no diminutivo e no contexto, serve para reduzir de forma paternalista pessoas negras a inferiores intelectualmente”, considera o advogado.
Daniela Gomes, professora em estudos da diáspora africana na San Diego State University, nos EUA, tem entendimento similar.
“O racismo brasileiro é diferenciado, é um racismo tido como velado, embora de velado não tenha nada. Mas ele tem entonações. E ali o que vimos é o Piquet usando uma entonação no diminutivo, mas que não era uma entonação de carinho, mas de menosprezo”, diz Gomes.
“A questão ali é o desdém com o qual ele se dirigiu a um piloto que é alguém da mesma categoria profissional que ele. Lewis Hamilton tem um nome e não é amigo pessoal de Piquet. No nosso racismo à brasileira, foi uma forma de inferiorizar, de tratar como se fosse um moleque.”
Para Daniel Teixeira, advogado e diretor do Ceert (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), a fala de Piquet é um produto do racismo estrutural — conjunto de práticas institucionais e relações sociais, econômicas e políticas que privilegiam um grupo étnico em detrimento de outro, perpetuando desigualdades.
“Em função do racismo que é estrutural na nossa sociedade, há dificuldade das pessoas brancas de verem pessoas negras numa posição de igualdade. Como o próprio Hamilton falou, não se trata apenas de linguagem, mas da mentalidade que está por trás disso, de reduzir uma pessoa à cor de sua pele”, diz Teixeira.
“Piquet não faria isso com uma pessoa branca. Essa é a questão que importa e que demonstra o racismo estrutural na sociedade brasileira. Ele não se referiria ao Verstappen como ‘branquinho’, reduzindo uma pessoa, uma trajetória, uma história, à cor da pele”, completa o diretor do Ceert.
Amparo, Gomes e Teixeira concordam que a palavra “neguinho” em português não tem o mesmo peso ofensivo da palavra “nigger” em inglês. Mas reforçam que isso não diminui a carga de desdém, inferiorização e ridicularização da expressão usada por Piquet para se referir a Hamilton.
“A palavra com N era usada nos Estados Unidos pelos senhores de escravos, como uma forma de diminuição. Antes da escravidão, éramos africanos de diversas etnias. Quando começa a escravidão, começa também a dualidade. Os brancos se leem como brancos e nos leem como o oposto, assim a gente se torna negro. E a maneira como os senhores de escravos tratavam os escravizados era através da palavra com N, nigger ou nigga”, explica Gomes, da San Diego State University.
“Quando a escravidão e a segregação acabam, a população negra passa por uma série de mudanças políticas. Há um movimento para ressignificar a palavra ‘negro’, mas as duas variações são banidas.”
A professora destaca que o racismo se expressa de forma distinta em lugares diversos. E que uma mesma palavra, dependendo do contexto ou tom de voz, pode significar coisas diferentes.
“A minha mãe me chamar de neguinha pode ser uma forma de carinho, já uma estranha, ao invés de me tratar como professora Daniela Gomes, me tratar como negrinha, é racismo”, exemplifica.
‘Sociedade não mais aceita o racismo cotidiano’
Para Teixeira, do Ceert, o episódio revela como os preconceituosos têm se sentido mais à vontade para expressar seus preconceitos, sob lideranças políticas que fazem o mesmo.
“Muitas pessoas se sentem autorizadas a se manifestar dessa forma justamente porque há lideranças políticas hoje que fortalecem essa estigmatização, que usam essa mesma linguagem, fazendo com que ela seja usada de forma aberta. Isso influencia sim, mas essas pessoas também refletem uma questão estrutural no Brasil, de como as pessoas negras são tratadas”, diz o advogado.
“Quando pessoas negras despontam nas suas atividades, elas acabam incomodando pessoas brancas que se viam como universais, como o padrão de determinados lugares sociais. A presença negra questiona esse padrão e, quando ela ganha um destaque do tamanho do Lewis Hamilton para a Fórmula 1, isso incomoda muito mais, gerando uma reação estereotipada e desrespeitosa.”
Para Amparo, da FGV, porém, a força do repúdio à expressão usada por Piquet demonstra o avanço da luta antirracista e como certas coisas não são mais socialmente toleradas
“É louvável que haja uma rejeição ao uso da palavra ‘neguinho’ neste episódio específico, porque mostra uma mudança na sociedade em não mais [aceitar] o racismo cotidiano e antes normalizado”, diz Amparo.
“Esta palavra é muito recorrente no dia a dia brasileiro, embora seja invariavelmente utilizada num tom pejorativo. Rejeitar o seu uso implica rejeitar o racismo cotidiano, recreativo ou não, tão comum no Brasil.”
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