- Leandro Machado
- Da BBC News Brasil em São Paulo
Pelo menos 188 mil famílias podem ter de sair de suas casas a partir deste 1º de novembro no Brasil, segundo estimativas de organizações e movimentos sociais.
Isso porque uma decisão do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), liberou despejos e reintegrações de posse depois de mais de um ano de proibição durante a pandemia de covid-19.
Em junho de 2021, o ministro determinou a suspensão de ordens de desocupação de áreas habitadas antes de 20 de março de 2020, quando foi aprovado o estado de calamidade pública no país devido à pandemia
Segundo ele, o objetivo era “evitar que remoções e desocupações coletivas violem os direitos à moradia, à vida e à saúde das populações envolvidas”.
Em agosto deste ano, a maioria do plenário do STF prorrogou a suspensão até 31 de outubro – só votaram contra os ministros Kassio Nunes Marques e André Mendonça.
Nos últimos dias, partidos de esquerda e movimentos sociais pediram outra renovação, mas Barroso decidiu nesta segunda-feira liberar as ações de despejo e liberação de posse.
Barroso determinou que Tribunais de Justiça (TJ) nos Estados, além dos Tribunais Regionais Federais (TRF), criem comissões de mediação de conflitos fundiários para apoiar os juízes no cumprimento de ordens de reintegração de posse.
O Ministério Público e a Defensoria terão de participar dessas reuniões.
Na decisão, o ministro também apontou que famílias removidas e em situação de vulnerabilidade social devem ser encaminhadas para abrigos – elas também terão de ser incluídas em programas habitacionais alternativos, como o auxílio-aluguel.
Para Benedito Roberto Barbosa, da União dos Movimentos de Moradia de São Paulo, a decisão de Barroso é positiva porque “organiza e disciplina a forma como ordens de reintegração devem ser cumpridas pela Justiça”.
“Mas ainda não se sabe qual será o impacto da decisão e como a Justiça, prefeituras e governos estaduais vão se organizar para cumprir as determinações do ministro”, disse.
Conflitos
Na prática, a decisão de Barroso liberou a retomada de despejos de inquilinos individuais.
E também autorizou a retomada de desocupações coletivas de áreas ocupadas por movimentos de moradia e que tenham decisões judiciais de reintegração – para isso, as desocupações devem ser discutidas nas comissões de mediação a serem criadas.
A Campanha Despejo Zero, que reúne organizações e movimentos sociais que atuam contra o despejo forçado de pessoas, compila apenas o número de famílias em risco de desocupações coletivas – tanto de áreas públicas como particulares.
Despejos individuais não são compilados. Ou seja, o número de afetados pela decisão de Barroso pode ser muito maior do que as 188 mil famílias calculadas pela campanha.
Segundo a estimativa, o Sudeste é a região com maior número de famílias ameaçadas, 80 mil. Depois vem o Nordeste, com 51 mil; Norte, com 49 mil; Centro-Oeste, 29 mil; e Sul, com 18 mil.
O Estado de São Paulo, com 64 mil famílias ameaçadas de despejo, será o mais afetado pela decisão do Supremo.
Segundo Benedito Roberto Barbosa, que também atua na Campanha Despejo Zero, há 80 ocupações com ordens imediatas de reintegração de posse em São Paulo.
Para Raquel Ludenin, da Campanha Despejo Zero, o despejo tem impactos materiais e psicológicos para os membros de uma família.
“O despejo é devastador para uma família. Significa não ter um teto, não ter onde colocar suas coisas, não ter para onde voltar no fim do dia”, diz Raquel Ludenin, da Campanha Despejo Zero.
“Mas também há um impacto psicológico: o medo e a incerteza de ter de acordar no meio da noite e não ter para onde ir. Nós sabemos que as crianças dessas famílias perdem acesso à educação, ao sistema de saúde e de assistência social”, explica.
Segundo Ludenin, com as desapropriações, é bastante provável que cresça também o tamanho da população em situação de rua nas grandes cidades, como São Paulo.
O último censo da prefeitura apontou que 32 mil pessoas vivem atualmente nas ruas da capital paulista.
O país também sofre com um aumento da fome, o que agrava a vulnerabilidade dos despejados.
Segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, 33,1 milhões de brasileiros estão sofrendo com a fome – 15,5% da população brasileira.
Para Felipe de Freitas Moreira, arquiteto, urbanista e pesquisador do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da USP, o possível despejo de milhares de pessoas “acontece em um momento em que as políticas de habitação social estão sendo desmontadas.”
No orçamento enviado ao Congresso, o presidente Jair Bolsonaro (PL), derrotado por Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no último domingo, reduziu para apenas R$ 34,1 milhões o montante destinado ao programa habitacional Casa Verde e Amarela em 2023, queda de 95% do valor deste ano.
“As consequências desses cortes são gravíssimas para a população de baixa renda, principalmente para famílias com renda de até 3 salários mínimos. É como se não existisse mais um programa nacional que dê conta de atender as famílias em estado de vulnerabilidade”, diz.
“A gente tem um desafio muito grande na área habitacional pela frente”, afirma.
O Casa Verde e Amarela foi lançado por Bolsonaro para substituir o programa Minha Casa, Minha Vida, criado pelo PT.
Em seu discurso após a vitória, Lula afirmou que vai retomar o projeto anterior.
“Não podemos aceitar como normal que famílias inteiras sejam obrigadas a dormir nas ruas, expostas ao frio, à chuva e à violência. Por isso, vamos retomar o Minha Casa Minha Vida, com prioridade para as famílias de baixa renda, e trazer de volta os programas de inclusão”, disse Lula.
Hiperperiferias
Mesmo com a proibição anterior, entre março de 2020 e setembro deste ano, cerca de 35,2 mil famílias foram retiradas de suas casas à força no país.
Em suma, esses pontos de refúgio para desabrigados ficam em bairros dos extremos do município, como Grajaú e Campo Limpo, ou da região metropolitana, em cidades como Itapecerica da Serra e Carapicuíba.
Para Kazuo Nakano, professor do Instituto das Cidades da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), as hiperperiferias “são núcleos de ocupação recente, mais distantes e mais precários, nas franjas da região metropolitana”.
“Elas retomam esse padrão de casas de madeira, rua de terra e sem infraestrutura básica. É como se fosse a periferização da periferia”, diz o urbanista.
O número de ocupações irregulares cresceu 136% na cidade de São Paulo entre fevereiro de 2020 e setembro deste ano. Hoje são 516 ocupações de movimentos de habitação monitoradas pela prefeitura.
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