- Author, Clare Thorp
- Role, BBC Culture
Poucos romances inspiraram tanta devoção nos últimos anos quanto os da escritora italiana Elena Ferrante. E, especificamente, sua série napolitana, que acompanha a vida de duas amigas de infância ao longo de seis décadas e quatro livros, transformando o que era íntimo em épico.
Publicados originalmente entre 2011 e 2015, os quatro livros despertaram a chamada “Febre Ferrante”. Milhões de leitores de todo o mundo foram enfeitiçados pelas personagens Elena (também conhecida como Lenù) e sua “terrível e deslumbrante” amiga Lila.
A identidade de Ferrante permanece um mistério, mas ela aborda temas ligados à amizade, desejo, maternidade, misoginia, ambição, classes e violência em impiedosos detalhes, tendo como cenário uma Itália em transformação.
Este ano, uma pesquisa do The New York Times elegeu o primeiro romance da série, A Amiga Genial (Ed. Biblioteca Azul, 2015) como o melhor livro do século 21. O jornal descreve a obra como “um romance descompromissado e inesquecível”.
Mas a adaptação de A Amiga Genial para a TV passou quase despercebida.
A série foi ao ar pela primeira vez em 2018 e começa agora sua quarta e última temporada. E mesmo a idolatrada obra original, as qualidades cinematográficas da adaptação e sua narrativa épica não foram suficientes para atrair a mesma atenção de outros dramas da HBO, sua coprodutora ao lado da TV pública italiana Rai.
A série não conquistou grandes prêmios e é frequentemente esquecida pelas listas de melhores programas de TV. Ela não chegou a ser incluída entre as 100 melhores séries de TV do século 21, em pesquisa divulgada pela BBC em 2021.
Ainda assim, da mesma forma que os livros de Ferrante contam com ardorosos admiradores, a série de TV reuniu um exército de fãs com a mesma devoção.
“Por que ela não é abertamente reconhecida como a melhor série em cartaz na TV?”, perguntou recentemente no X, antigo Twitter, a escritora e jornalista Taffy Brodesser-Akner. A pergunta reflete os sentimentos de muitas pessoas, que acreditam que a série foi criminosamente menosprezada.
A Amiga Genial dá vida à obra de Ferrante de forma brilhante. A série é tão complexa, envolvente e arrebatadora quanto os romances, além de trazer um dos melhores visuais entre as séries de TV.
A notícia de que seria produzida uma adaptação dos romances napolitanos de Ferrante para a televisão gerou grandes expectativas, mas também inquietações. Afinal, são livros aclamados pela sua interiorização, pelo seu tom emocional, pela profunda abordagem de sentimentos complexos.
A linguagem é parte integrante dos livros. Quando as duas jovens conseguem um exemplar do livro Mulherzinhas, de Louisa May Alcott (Ed. Principis, 2020), logo no início do primeiro romance, é possível perceber que os livros e a educação poderiam ser uma saída para elas.
Como uma história tão profundamente ligada ao poder da palavra escrita poderia ser traduzida para a televisão?
O criador da série de TV, Saverio Costanzo, dirigiu as duas primeiras temporadas e permanece como um dos roteiristas e produtor executivo das demais. Ele sabia muito bem como seria difícil trazer os aclamados livros de Ferrante para a tela.
Um de seus filmes anteriores, A Solidão dos Números Primos (2010), foi baseado em um romance do escritor italiano Paolo Giordano, vencedor do prestigiado Prêmio Strega na Itália.
“O filme não teve muito sucesso porque meu ponto de vista sobre o livro era diferente da maioria dos leitores”, contou ele à BBC. “Por isso, eu prometi a mim mesmo não adaptar outro best-seller.”
Coincidentemente, ele havia tentado adaptar o romance de Ferrante A Filha Perdida (Ed. Intrínseca, 2016), poucos anos antes.
Ferrante cedeu a ele direitos temporários. A autora deu seis meses para que ele tentasse produzir um roteiro.
O enredo da obra é parcialmente contado em flashbacks, mas Costanzo não conseguiu fazer a história decolar. A diretora Maggie Gyllenhaal transformaria o livro em filme em 2021, estrelado pela atriz britânica Olivia Colman.
Anos depois, sem aviso prévio, Costanzo estava na cozinha de casa quando recebeu uma ligação dos editores de Ferrante sobre um novo projeto: transformar A Amiga Genial e os demais romances da tetralogia napolitana em uma série de televisão. E, apesar das suas reservas sobre trabalhar com obras originais muito conhecidas, aquela era uma oportunidade boa demais para ser rejeitada.
“Li novamente os livros desde o princípio e me senti muito absorvido por eles”, conta Costanzo. “Eu senti, como leitor, o mesmo que tantos outros leitores em todo o mundo.”
Como muitas outras pessoas, Costanzo sentiu sua conexão com a abordagem profunda de Ferrante sobre a amizade, que a autora se recusa a sentimentalizar. Ela mostra como esses laços podem ser complexos, competitivos e até cruéis – e o quanto eles podem moldar as nossas vidas.
Para Costanzo, “a amizade é o relacionamento mais livre que conhecemos na nossa vida. É um relacionamento que surge do nada, apenas da vontade.”
“É puro e também muito perigoso. Levar uma amizade para toda a vida é um trabalho de tempo integral, pois você precisa lidar com suas partes mais fracas, com a inveja, com o amor, mas também com o ódio. Não existem regras na amizade.”
A alma da história é a amizade entre a narradora dos livros, Elena “Lenù” Greco, e Raffaella “Lila” Cerullo. Por isso, encontrar as atrizes certas para os dois papéis era fundamental.
O processo de seleção foi longo. Costanzo e sua equipe observaram mais de 9 mil candidatas ao longo de oito meses.
“As personagens eram muito claras no texto de Ferrante e não podíamos perdê-las”, ele conta. “Quando as procurava, eu sabia que, se encontrasse Elena ou Lila, eu as reconheceria.”
Ele encontrou as duas personagens nas atrizes Elisa Del Genio e Ludovica Nasti, que as interpretaram quando crianças, e em Margherita Mazzucco e Gaia Girace, que assumiram os papéis após os dois primeiros episódios.
Mesmo sendo atrizes adolescentes, Mazzucco e Girace permaneceram até o final da terceira temporada, quando as personagens já tinham mais de 30 anos. Nesta nova temporada, novos rostos assumem os papéis: Alba Rohrwacher como Elena e Irene Maiorino, como Lila.
Alba Rohrwacher é irmã da diretora Alice Rohrwacher, que dirigiu dois episódios da segunda temporada. Maiorino atuou na série Gomorra (2014-2021).
Maiorino tem marcante semelhança física com sua predecessora, Gaia Girace. Rohrwacher é menos parecida com Mazzucco, mas os espectadores certamente irão reconhecer a sua voz, já que ela é a narradora da série desde o seu início.
Além das duas protagonistas, a série inclui um elenco gigantesco de personagens secundários. Muitos dos atores também foram substituídos ao longo das várias temporadas, mas as similaridades físicas não foram o fator principal para a seleção.
“Em alguns casos, tivemos sorte”, explica Costanzo. “Em outros, procuramos apenas a alma do personagem.”
O pessoal é o político
Tão importante quanto o elenco era trazer à vida o bairro de Nápoles, na Itália, onde as meninas cresceram.
“O bairro é um personagem, tanto quanto Elena e Lila”, afirma Costanzo. “Quisemos mostrar pela sua evolução o quanto a Itália mudou.”
A maioria das pessoas acredita que o bairro do livro de Ferrante tenha se baseado na região real de Rione Luzzatti, um distrito de classe média a leste do centro da cidade. Os fãs de Ferrante transformaram o local em um inesperado ponto turístico.
Na série, o bairro é um cenário detalhadamente elaborado – um dos maiores já criados na Europa.
Construído onde antes ficava uma fábrica de vidro abandonada a 45 minutos de distância de Nápoles, o cenário tem 19.974 m² e também foi alterado ao longo das temporadas da série, como teria acontecido na vida real.
Na primeira temporada, ele parecia claustrofóbico, cinza e insular. Quando Elena e Lila eram crianças, aquele era todo o seu universo, tanto que as meninas só foram ver o mar quando ficaram maiores.
“Nos anos 1950, aquele era um bairro isolado, fora da cidade”, segundo Costanzo. “Depois, as pessoas começaram lentamente a construir e a cidade foi chegando cada vez mais perto do distrito.”
O bairro é marcado pela pobreza, violência e pelo crime organizado. A história não é explicitamente sobre a máfia, mas sua presença é sentida com frequência.
À medida que as personagens ficam mais velhas, seu mundo gradualmente fica maior – ainda que mais para uma delas do que para a outra – mas o bairro continua a definir as suas vidas.
Em A Amiga Genial, o pessoal é o político. A trajetória de vida das personagens está entrelaçada com a história da Itália enquanto nação.
Eventos como a expansão econômica e os protestos estudantis dos anos 1960, a sangrenta batalha entre o comunismo e o fascismo, o feminismo radical, a legalização do divórcio e, na nova temporada, a corrupção generalizada do governo alimentam as experiências de Lenù e Lila.
“O cenário político por trás da história de Lila e Elena é o verdadeiro motor [da história]”, descreve Costanzo.
A Amiga Genial foi a primeira série em língua não inglesa a estrear na HBO. A série não é falada apenas em italiano – existem grandes trechos em dialeto napolitano, fazendo com que os próprios espectadores da Itália lancem mão das legendas.
A dualidade dos idiomas é importante. O napolitano é a língua do bairro e o italiano representa a vida além das suas fronteiras.
É claro que essas mudanças sutis passam despercebidas para muitos espectadores, especialmente fora da Itália. Mas o diretor se recusou a aparar as arestas da obra de Ferrante – uma decisão que garantiu o sucesso da adaptação.
“Nunca, em nenhum momento, usei qualquer tipo de truque para facilitar as coisas para os espectadores”, afirma Costanzo.
Ferrante trabalhou com Costanzo sobre o roteiro. A autora se comunicava com ele apenas por e-mail. Ele já descreveu o processo como “trabalhar com um fantasma”.
Ferrante ofereceu observações e feedback, mas também deu liberdade para que o diretor pudesse buscar sua própria visão para a série, algo que ele transmitiu para as diretoras que o sucederam – Daniele Luchetti, na terceira temporada, e Laura Bispuri, na quarta.
“Eu disse a elas, ‘façam o seu trabalho, façam o seu ponto de vista'”, conta Costanzo. “Quero que elas tenham a mesma liberdade que eu tive.”
Esta última temporada é baseada no quarto livro de Ferrante, História da Menina Perdida (Ed. Biblioteca Azul, 2017). Ela mostra o círculo se fechando, com Lenù e Lila novamente juntas em Nápoles, depois de anos separadas.
São os anos 1980. Décadas de inquietação social e política estão chegando ao seu final, mas não sem antes uma sucessão de eventos que traz novas turbulências para a vida e a amizade das duas mulheres.
Para o público fascinado por A Amiga Genial, será difícil se despedir dos personagens. E seus criadores sentem o mesmo.
“Adorei este projeto, tanto que estava pronto para dedicar 10 anos da minha vida”, conta Costanzo.
As pessoas que ainda não descobriram esta série fascinante certamente têm algo muito especial à sua espera.
A quarta temporada de A Amiga Genial (My Brilliant Friend) começou a ser exibida no início de setembro, no Max e na Amazon Prime Vídeo.
Fonte: BBC
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