- Julia Braun
- BBC News Brasil em São Paulo
O cenário de extrema polarização, fragmentação partidária e baixa confiança nas instituições é grave e pode ameaçar a democracia no Brasil. É o que acredita o ex-assessor e principal nome para a América Latina da gestão de Barack Obama nos Estados Unidos, Arturo Valenzuela.
Em entrevista à BBC News Brasil, o professor emérito da Universidade Georgetown afirmou que o Brasil já demonstrou no passado ter instituições fortes para combater avanços de todo tipo, mas enfrenta novos obstáculos atualmente. “Será um desafio para todos os brasileiros analisarem as urnas e fortalecerem suas instituições”, disse.
Questionado se acredita que a democracia brasileira pode estar em risco, Valenzuela afirmou que essa é uma possibilidade real.
“Sim (…). Há um aumento da polarização. Há, de certa forma, o desaparecimento do meio-termo onde geralmente são feitos acordos entre os setores, tanto de centro-esquerda quanto de centro-direita”, afirmou.
“Um contexto em que as pessoas não confiam mais nos políticos, onde há preocupação com questões de corrupção e coisas assim, também leva a uma falta de confiança dos membros da sociedade nas instituições. Isso é um problema”.
Mas segundo o chileno naturalizado americano que serviu como assessor especial para o ex-presidente americano Bill Clinton e foi secretário-assistente de Estado no governo de Barack Obama, esse fenômeno não é exclusivo do Brasil. “Esses problemas são apresentados de diferentes formas e em diferentes graus em muitos países, incluindo nos Estados Unidos e em alguns países da Europa”, disse.
Indagado sobre as ameaças feitas pelo presidente Jair Bolsonaro e membros de seu governo sobre o não reconhecimento das eleições em caso de derrota, Valenzuela disse enxergar qualquer esforço para subverter o processo eleitoral como um golpe contra a democracia. “Isso é o tipo de coisa que afeta o fortalecimento das instituições democráticas”, afirmou.
O cientista político de formação comparou ainda os temores em relação ao pleito de outubro com o que aconteceu nos Estados Unidos após as eleições de 2020, quando o ex-presidente republicano Donald Trump se recusou a reconhecer sua derrota para Joe Biden.
“Como especialista em Direito Constitucional, estou preocupado que precisemos de algumas reformas significativas em nossas constituições, para que esse tipo de coisa não aconteça”, disse.
Arturo Valenzuela concedeu entrevista à BBC News Brasil por ocasião de sua participação em um webinar organizado pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais em parceria com o Consulado Geral dos EUA no Rio de Janeiro nesta quarta-feira (13/04). O evento marca a abertura de um projeto de um ano, liderado pelo ex-embaixador do Brasil em Washington Sérgio Amaral, que tem como objetivo aprofundar o conhecimento sobre as relações bilaterais entre os EUA e o Brasil.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
BBC News Brasil – Havia a expectativa de que o presidente americano Joe Biden adotasse uma posição dura com Jair Bolsonaro, principalmente em relação a questões como democracia e meio ambiente. No cenário de vitória de Bolsonaro nas eleições de outubro, como o senhor acredita que o atual governo dos Estados Unidos se posicionaria para um novo mandato?
Arturo Valenzuela – A relação dos Estados Unidos com o Brasil é importante, assim como com a América Latina em geral. É importante em questões de desenvolvimento econômico, comércio, tecnologia, propriedade intelectual, agricultura, abastecimento de alimentos e uma série de outras coisas. Mas, é claro, existem muitas agendas hoje que são realmente críticas, como a da mudança climática. E à medida que vemos o desdobramento da situação na Ucrânia, todas as questões de sobrevivência da governança democrática e direitos humanos se tornam realmente importantes.
E assim, fica claro que este é um momento mais difícil na relação com o Brasil. Talvez com o governo anterior houvesse certa afinidade – digo, entre o governo de Donald Trump e o de Bolsonaro. Mas isso acabou, Bolsonaro está concorrendo à reeleição e vamos ver o que acontece nos Estados Unidos.
A relação é um trabalho em andamento e muito vai depender do que acontecer no Brasil. Neste ponto em particular, é justo dizer que há divergências significativas com Bolsonaro e sua abordagem, tanto em relação à política doméstica quanto à sua política internacional. E vemos isso com as diferenças que foram colocadas nas últimas semanas em relação à crise na Ucrânia.
Mas nosso presidente anterior [Donald Trump] ainda não acredita que perdeu a eleição, então este não é um momento em que os Estados Unidos possam pregar a outros países do mundo que temos instituições melhores. Também lutamos com a qualidade de nossas próprias instituições e com muitas pessoas que tentaram essencialmente perturbar o processo democrático. Portanto, esses são desafios comuns que enfrentamos em todo o mundo.
BBC News Brasil – No momento, as pesquisas mostram o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na liderança da corrida presidencial. Considerando um segundo cenário, em que Lula seja eleito presidente, como acredita que a Casa Branca avaliaria essa mudança de governo?
Valenzuela – Fui Secretário de Estado Adjunto quando Lula era presidente e tive que lidar com o governo brasileiro. Houve algumas dificuldades e desentendimentos com o ministro das Relações Exteriores e outros em temas como a abordagem da questão iraniana. Por outro lado, houve um esforço para trabalharmos juntos em uma série de questões importantes, incluindo, por exemplo, a crise na Venezuela.
Mas não acho que haveria uma lacuna significativa com um novo governo. Creio que os Estados Unidos trabalharão com quem for eleito e farão um esforço nessa direção. Não estou tão preocupado com a possibilidade de revisitarmos algumas das questões do passado, porque, de certa forma, o mundo mudou muito significativamente e em um período muito curto de tempo.
E muito vai depender também do apoio que Lula terá no Congresso. Há uma história recente na América Latina de colapso e fragmentação de partidos políticos. Isso acontece não apenas em países com períodos curtos de estabilidade democrática, mas também em países com histórico de estabilidade. E não é possível ter certeza de quem terá maioria no Legislativo.
BBC News Brasil – Há uma certa preocupação de alguns setores de que o presidente Jair Bolsonaro pode não reconhecer o resultado da eleição caso perca. Na sua opinião, essa é uma possibilidade real? Podemos ter uma repetição da invasão do Capitólio de 6 de janeiro e toda aquela violência aqui no Brasil?
Valenzuela – Prefiro não especular muito sobre qual pode ser o resultado. Obviamente, se houver um esforço para não reconhecer uma eleição legítima e tentar subverter o próprio processo da eleição, a forma como a eleição é administrada ou realizada, seria um problema muito sério para qualquer democracia. Isso é o tipo de coisa que afeta o fortalecimento das instituições democráticas.
Isso aconteceu e ainda continua acontecendo nos Estados Unidos. Felizmente, os tribunais e muitos dos profissionais de diferentes níveis que estavam encarregados do processo eleitoral em ambos os partidos se opuseram a essa falsa narrativa. Espero que existam instituições suficientemente fortes no Judiciário e em outros lugares no Brasil para garantir o mesmo tipo de resultado.
Um dos pontos problemáticos, para voltar a um argumento que fiz anteriormente, é que a fragmentação política significa que não há um processo centrista alternativo no Brasil neste ponto em particular. E, como especialista em Direito Constitucional, estou preocupado que precisemos de algumas reformas significativas em nossas constituições, para que esse tipo de coisa não aconteça.
Na verdade, o segundo turno é uma má ideia. Creio que o Congresso deve ter um papel maior e decidir em casos de candidatos que não obtêm mais de 45% dos votos. Não deveríamos entrar em um segundo turno que pode pulverizar e fragmentar ainda mais o sistema político. Esse tipo de coisa precisa ser tratada no Legislativo. Portanto, há maneiras pelas quais precisamos parlamentarizar, por assim dizer, os sistemas presidencialistas.
BBC News Brasil – Vários institutos internacionais que medem o status da democracia no mundo apontam para um declínio na qualidade da democracia brasileira desde o início do governo de Jair Bolsonaro. Na sua opinião, a democracia no Brasil está em risco?
Valenzuela – Sim, por alguns dos pontos que já indiquei. Há um aumento da polarização. Há, de certa forma, o desaparecimento do meio-termo onde geralmente são feitos acordos entre os setores, tanto de centro-esquerda quanto de centro-direita. Esse tipo de fenômeno é um problema do nosso tempo. Temos observado um declínio considerável dos partidos políticos e sua fragmentação, e esse tipo de coisa é preocupante.
O Brasil vive um momento de extrema fragmentação, com uma polarização maior e talvez mais forte de extrema direita manifestada pelo atual presidente. A eleição em si está muito polarizada, com candidatos da extrema esquerda e da extrema direita com mais apoio do que os candidatos que podem ser identificados como centro.
Um contexto em que as pessoas não confiam mais nos políticos, onde há preocupação com questões de corrupção e coisas assim, também leva a uma falta de confiança dos membros da sociedade nas instituições. Isso é um problema.
Não estou dizendo que essas sejam características necessariamente exclusivas do Brasil. Esses problemas são apresentados de diferentes formas e em diferentes graus em muitos países, incluindo nos Estados Unidos e em alguns países da Europa.
O que realmente precisamos são de forças políticas pragmáticas que representem setores importantes da população. E deve haver regras nesse jogo para garantir que os partidos fiquem mais fortes e possam ser bons representantes.
BBC News Brasil – O senhor acredita que o Brasil tem instituições fortes o suficiente para lidar com isso?
Valenzuela – O Brasil mostrou que já teve instituições fortes, por meio de sua capacidade de combater a corrupção, por exemplo. Mas, de certa forma, isso foi há algum tempo. Então será um desafio para todos os brasileiros analisarem as urnas e fortalecerem suas instituições. Esse também é um desafio nos Estados Unidos.
BBC News Brasil – Dados recentes mostram que o desmatamento na Amazônia em 2021 foi o pior em 10 anos. O que o senhor acredita que o governo Joe Biden pode fazer nos próximos anos para pressionar mais o Brasil na questão ambiental?
Valenzuela – Esta é uma questão crítica e, de certa forma, o Brasil se destaca devido à extraordinária importância de sua contribuição para o ecossistema do mundo. As mudanças climáticas estão afetando o mundo de uma maneira muito significativa – tivemos incêndios horríveis na Califórnia por conta de secas excessivas, seguidos de tornados e as tempestades no sul dos Estados Unidos. As nações insulares também enfrentam um grande desafio à medida que as geleiras estão derretendo. Portanto, o Brasil desempenha um papel muito importante e não prestar atenção nessas ramificações mais amplas é preocupante.
Mas ao mesmo tempo, observadores e países estrangeiros também estão preocupados com o que está acontecendo com certas populações no Brasil. Não se trata apenas de cuidar da floresta, mas também das populações indígenas que foram suas guardiãs e tiveram que enfrentar as afrontas do extermínio e comercialização dessas áreas preciosas do Brasil. E sei que muitos brasileiros estão preocupados com isso também.
BBC News Brasil – O senhor acredita que os EUA podem tomar ações mais assertivas em relação ao Brasil?
Valenzuela – Durante a era Trump houve um desdém pelas alianças e instituições internacionais. Já o governo Biden representa uma administração que entende a importância de trabalhar com outros países, de apostar no multilateralismo, construir consenso e trabalhar em conjunto.
Mas isso só pode ser feito se as instituições mundiais estiverem funcionando. Por instituições mundiais quero dizer as instituições multilaterais e organizações internacionais como a Organização Mundial do Comércio, a Organização Mundial da Saúde, a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, a Organização dos Estados Americanos e outras.
Temas como o meio ambiente precisam ser fortalecidos por meio desses tipos de organizações. E o Brasil pode ser um líder nessa área. Mas, em vez disso, o Brasil está desprezando esse tipo de instituição e está contribuindo, de certa forma, para sua fraqueza.
BBC News Brasil – Na sua opinião, o Brasil perdeu relevância como mediador de conflitos e referência na América Latina?
Valenzuela – Sim, o Brasil perdeu relevância. Muitos podem discordar de algumas das coisas que foram feitas pelo governo Lula em termos de projeção, mas quando o ex-presidente pensou em cooperar com o Irã tinha o compromisso de tentar abordar os temas de forma que seriam vantajosos não apenas para os países envolvidos, mas para a ordem mundial. E pode-se discordar se tudo isso foi útil ou não naquele momento específico, mas pelo menos fez algum sentido.
E acho que o Brasil pode e deve agir dessa forma, porque é um país grande e um dos Brics do mundo. Há muitos elementos da tradição brasileira que contribuíram para essa ordem mundial para a qual precisamos retornar. Eu sou um admirador de muitos dos líderes brasileiros do passado e Fernando Henrique é uma das minhas referências.
Então, em última análise, precisamos de ordem mundial, precisamos de uma ordem mundial baseada no conceito fundamental de governança democrática, de governos do povo, pelo povo e para o povo. Precisamos de instituições internacionais que ajudem a proteger essa ideia para que possamos ter uma ordem mundial pacífica e bem-sucedida.
BBC News Brasil – A América Latina passou por muitas crises ao longo dos anos, mas nos últimos cinco anos parece que a situação da democracia na região se complicou, com muitas crises políticas em países como Chile, Bolívia, Nicarágua, Peru e Venezuela. A que o senhor atribui esse período de instabilidade política?
Valenzuela – Há uma diferença entre a trajetória de diferentes países da América Latina. Há alguns países em que não houve a consolidação das instituições democráticas e outros que têm uma longa história de consolidação das instituições democráticas.
Agora, como eu disse anteriormente, há realmente uma espécie de crise universal da democracia. Em alguns países da América Latina, ironicamente, parte disso se deve ao fato de que houve muito progresso. E digo isso porque muitas pessoas que observam situação chilena, por exemplo, e pensam que os protestos são motivados por uma enorme desigualdade. Na realidade, havia uma desigualdade muito maior em 1960, com uma grande uma porcentagem da população na pobreza absoluta, algo como 50% ou 65%. Hoje está em cerca de 8%. O que vimos acontecer é o surgimento de novas classes médias, que agora se sentem ameaçadas e mais vulneráveis.
Portanto, há razões pelas quais estamos enfrentando uma nova crise. Eu pertenço a várias organizações que analisam pesquisas de opiniões voltadas para os mais jovens, e é lamentável, mas muitos jovens sentem que as elites são os partidos convencionais. E isso tem acontecido no Brasil com partidos políticos realmente fortes como PSDB e outros que perderam uma forte base de apoio. Há uma crise da social-democracia em grande parte do mundo, por essa razão.
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