- André Biernath – @andre_biernath
- Da BBC News Brasil em Londres
Imagine que, durante os próximos 60 minutos, você terá dois compromissos. O primeiro deles é uma reunião de trabalho sobre um tema que você considera chato e tedioso. O segundo é um café com um grupo de amigos, com os quais você adora conversar.
Mesmo que as duas atividades tenham exatamente a mesma duração, a tendência natural é que a sensação da passagem de tempo em cada uma delas seja muito diferente. Enquanto cada segundo da reunião parece demorar uma eternidade, o café vai passar voando num piscar de olhos.
Mas e o que aconteceu durante os primeiros meses da pandemia de covid-19? Será que o lockdown, o distanciamento social, o trabalho remoto, a suspensão das aulas e o cancelamento de festas e datas comemorativas alteraram a forma como a gente se relaciona com o relógio?
Essa foi a curiosidade que guiou uma pesquisa realizada pela Universidade Federal do ABC (UFABC), na região metropolitana de São Paulo, e pelo Instituto do Cérebro do Hospital Israelita Albert Einstein, na capital paulista.
A partir de maio de 2020, os especialistas enviaram pela internet um questionário, e 3.855 pessoas toparam participar do experimento. Durante 15 semanas, os voluntários responderam, com o auxílio de uma escala, perguntas relacionadas à percepção de tempo e às sensações do dia a dia.
Para tanto, os cientistas levaram em conta dois domínios diferentes. O primeiro foi a expansão temporal, ou a noção de que os minutos se prolongam e custam a passar — o que desemboca em tédio.
Já o segundo tem a ver com a pressão temporal, em que parece que há mais tarefas na agenda do que horas suficientes para cumpri-las. Quando essa sensação se prolonga, aparece o estresse e o abandono de dimensões importantes da vida, como o autocuidado e o relacionamento saudável com familiares e amigos.
Vale lembrar que o primeiro semestre de 2020 foi marcado por muitas incertezas: a doença havia sido descoberta pouco tempo atrás, os casos estavam subindo rapidamente (com uma situação de calamidade em alguns países), não existia vacina ou remédio efetivos e o isolamento era a única saída para conter o vírus.
Em resumo, ele indica que o tempo “se expandiu” logo no início da pandemia, mas essa sensação foi diminuindo com o passar das semanas. Outro achado interessante foi o de que a nossa consciência sobre a evolução das horas está diretamente relacionada com fatores psicológicos, como solidão e estresse.
As emoções se revelaram um aspecto crucial da maneira como o tempo é vivenciado, concluem os autores do artigo.
Mas será que é possível explicar como acontecem essas mudanças e o que elas podem significar, até para a vida pós-pandemia?
Um universo a ser explorado
O neurofisiologista André Cravo, um dos responsáveis pela pesquisa, explica que a percepção de tempo envolve uma série de habilidades do sistema nervoso.
“Uma delas é a capacidade de manter um ritmo, como medir adequadamente os milissegundos entre clicar no botão do mouse e ver alguma alteração na tela do computador”, diz.
“Outra tem a ver com estimar a duração de eventos no passado e colocá-los dentro de uma linha de tempo, em uma ordem de acontecimentos”, continua o especialista, que integra o Laboratório de Cognição e Percepção do Tempo da UFABC.
“E também existe uma terceira habilidade, que envolve estimar intervalos de eventos do passado e tentar comparar com eventos similares do presente, como uma maneira de avaliar se o tempo passa mais rápido ou devagar”, completa.
A Ciência ainda não desvendou completamente os mecanismos por trás de todos esses processos, ou quais são exatamente as áreas do cérebro envolvidas nessa tarefa tão complexa.
Mas uma coisa que não dá pra ignorar — e a pesquisa brasileira observou — é o impacto das emoções na percepção de que os ponteiros do relógio estão em marcha lenta ou em alta velocidade.
“No nosso estudo, fatores sociodemográficos, como gênero e idade, não foram tão preponderantes para a percepção de tempo. O que mais influenciou mesmo foram os fatores psicológicos, como a solidão, o tédio…”, diz Cravo.
“Mas é preciso levar em conta que os voluntários pertenciam a classes sociais com mais condições, e temos bons motivos para acreditar que indivíduos numa situação econômica mais complicada tenham sentido uma pressão temporal mais forte na pandemia.”
Portanto, é possível especular que, entre os participantes do experimento, aquela sensação de expansão do tempo no início da crise sanitária tenha a ver com uma agenda mais livre e com horas extras, que antes eram dedicadas às atividades sociais ou aos deslocamentos entre casa e trabalho.
Num primeiro momento, isso esteve relacionado à sensação de tédio e enfado, que foi diminuindo com o passar das semanas.
Mas esse sentimento é bastante subjetivo e pode variar de acordo com a realidade de cada um: é possível que, para alguém que precisa sair de casa para ganhar seu sustento, esses mesmos primeiros dias da covid-19 tenham sido marcados pela pressão temporal e pelo estresse.
Cravo também lembra que as características individuais influenciam nessa percepção e na forma como cada um experimentou esse período.
“Para alguns, não poder sair foi muito ruim e agoniante. Já para outros, que têm traços mais introvertidos, foi bem mais fácil se adaptar.”
Uma sensação que veio para ficar (ou que vai embora?)
Outra questão que fica em aberto tem a ver com o impacto que um evento como a pandemia deixa na percepção de tempo pelo resto da vida — mesmo quando a covid-19 deixar de ser uma emergência de saúde pública internacional.
Por ora, ainda não foram publicados estudos sobre esse tema. O neurocientista Raymundo Machado, do Instituto do Cérebro do Hospital Israelita Albert Einstein e que também fez parte do estudo, lista algumas maneiras de medir esse efeito a longo prazo.
“Daqui a dois ou três anos, poderemos entrevistar as pessoas para ver se elas se lembram da sequência em que os eventos aconteceram nesse período. Será que a ausência de marcos temporais importantes, como feriados e festas de aniversário, vai afetar a maneira como relacionamos as memórias?”, questiona o pesquisador.
Um exemplo simples: você consegue se lembrar de bate-pronto dos momentos exatos em que ocorreram as trocas de ministros da Saúde no Brasil nesses dois anos? Quando saiu Luiz Henrique Mandetta e entrou Nelson Teich? Em que mês e ano o general Eduardo Pazuello assumiu o posto? Quando ele deixou o ministério? E o médico Marcelo Queiroga está no cargo desde que mês?
Montar esse verdadeiro quebra-cabeças pode ser um desafio ainda maior daqui a alguns anos, quando espera-se que a pandemia seja coisa do passado e os marcos temporais (aniversários, festas, feriados…) estejam 100% restabelecidos.
Machado também destaca a dificuldade de comparar, do ponto de vista da percepção de tempo, a atual crise sanitária com qualquer outro evento histórico.
“Mesmo na gripe espanhola ou nas duas guerras mundiais, a forma como as pessoas lidaram com esses eventos foi diferente em cada parte do planeta.” E isso, claro, influencia na percepção do tempo sentida nesses locais.
“Já na covid, todo o mundo experimentou coisas parecidas, e a maioria dos países adotou algum tipo de distanciamento físico, ao menos por algum tempo”, conta o especialista. Ou seja: não há paralelos históricos e ainda é cedo para dizer se as mudanças sentidas na pandemia seguirão por toda a vida.
Mas os especialistas especulam que indivíduos que sofreram mais nesse período — e até desenvolveram transtornos sérios, como depressão, ansiedade ou estresse traumático — podem ter uma relação mais atribulada com o relógio daqui pra frente.
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