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Pesos e medidas

Não havia nada mais precioso que os cadernos de receitas, nas cozinhas de nossas avós. Não eram grandes, nem bonitos, nem sofisticados como os de hoje. Todos escritos, por elas mesmas, com letras desenhadas que aprendiam em tortuosos exercícios de caligrafia. Ali, havia segredos que só as próprias donas eram capazes de decifrar.

Porque, muitas vezes, omitiam alguns ingredientes importantes. Com dosagens pouco precisas – “um copo”, “um pires”, “um prato”, “uma colher”, “uma cuia”, “uma xícara”, “um bocado”, “o quanto baste”. E um modo de preparar vago – “asse até que fique bom”, “mexa até que chegue no ponto”, “misture até sentir que está bom”.

Tudo para que outros, lendo esses cadernos, não pudessem fazer o prato. Só elas próprias. Ou suas filhas – a quem passavam os segredos, secularmente, preservando esse importante patrimônio familiar. “Numa velha receita de bolo ou de doce há uma vida, uma constância, uma capacidade de vir vencendo o tempo sem transigir com as modas”, segundo Gilberto Freyre (em Açúcar).

Ele percebeu logo estar diante de uma importante fonte de pesquisa. E observou que nesses apontamentos estão “medidas que recordam as das antigas cozinhas portuguesas, do tipo da do convento de Alcobaça”.

Ocorre que, com o tempo, as maneiras de pesar foram ficando cada vez mais precisas. No início, usava-se o próprio corpo. Equilibrando os objetos, um em cada mão, para comparar. (Para medir, a referência era o comprimento do pé, a largura da mão, a grossura do dedo, o palmo, a passada).

Depois, vieram os primeiros modelos de balança – varas, improvisadas, suspensas no meio por uma corda. Com os objetos pendurados nas suas extremidades. Se houvesse equilíbrio, a vara ficaria na horizontal.

Mas essas medidas não eram confiáveis. Nem uniformes. Diferentes em cada lugar, dificultavam as transações comerciais. Foi a partir da Revolução Francesa (1789), com as novas ideias e o florescimento da era industrial, que cientistas famosos uniformizaram esses padrões – o matemático Jean-Charles Borda (1733-1799), o físico Joseph Louis Lagrange (1736-1813) e o também físico Pierre-Simon Laplace (1749-1827). A eles, segundo a bióloga Mila Massudo, se devem as “Formas para medir o mundo” (O Globo, 24 de novembro).

O metro foi então definido como a décima milionésima parte do meridiano terrestre, medido de Dunkerque a Barcelona. Representado por uma barra de metal. E, o quilograma, como a massa de um decímetro cúbico de água. Representado por um cilindro de platina e irídio.

Os objetos foram armazenados em caixas seladas, no Bureau Internacional de Pesos e Medidas (BIPM) do Pavillon de Breteuil, em Sèvres (França). Por Decreto-Lei, esses padrões foram adotados oficialmente na França. E, depois, em vários outros países (inclusive o Brasil). Todos, guardando cópias da barra de metal e do cilindro de platina.

A cada 40 anos, essas cópias eram devolvidas para confirmar tamanho e peso. Que com o tempo elas se alteravam. A Inglaterra não adotou esse sistema decimal. Até hoje usa o sistema Imperial. Assim como Estados Unidos, Libéria, Myanmar. Tendo, como medidas de comprimento, polegada (2,54 cm), pé (30,48 cm), jarda (91, 44 cm), milha (1,609344 km). E de peso, onça (28,35g), libra (454 g), quarto (12,7 kg) e tonelada (1.016 kg).

Com o desenvolvimento científico e tecnológico, surgiram novas maneiras de pesar e de medir. Ainda mais seguras. A barra de metal do metro, em 1983, foi substituída pela distância da luz viajando no vácuo de 1/299.792.458 de segundo. Como a velocidade da luz é constante, essa definição significa que a medida nunca se alterará. Já com o quilograma, passou-se a usar um eletroímã.

Calculando, com precisão, a quantidade de energia necessária para levantar um objeto. E assim vai permanecer tudo, até que um novo jeito de pesar e de medir apareça. Porque uma teoria científica nem sempre se mantém no tempo. Com mudanças, eventuais, conforme a própria ciência e tecnologia exijam.

Nas cozinhas modernas, as balanças estão cada vez mais disponíveis. Só que muitas receitas mantém, ainda, o mesmo padrão dos cadernos simples de nossas avós – uma xícara, um copo, uma colher de sopa. Talvez porque, com aquelas receitas, elas faziam pratos que jamais sairão de nossas memórias.

*É especialista em Gastronomia e escreve quinzenalmente neste espaço

Fonte: Folha PE
Autor: Letícia Cavalcante

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