- Author, Leandro Machado
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
- Twitter, @machadoleandro
Da varanda de seu apartamento na Mooca, o empresário Marcos Dorça, de 47 anos, eleitor de Pablo Marçal (PRTB), aponta para sua vista da zona leste de São Paulo: um paredão de prédios cortado por linhas de metrô e trens e por uma enorme avenida, a Radial Leste, fervendo de carros às 10h de terça-feira (8/10).
“Ali é o Platina, o prédio mais alto da cidade”, diz, apontando para um arranha-céu cinza, inaugurado em 2021, um edifício com hotel, escritórios e apartamentos.
“Aqui na frente estão construindo um grande complexo empresarial. Estão falando que é a nova avenida Luiz Carlos Berrini [polo empresarial de São Paulo]”, diz, mostrando uma grande cratera onde será erguido um novo empreendimento de luxo (a maior sala de teatro da cidade, centro de convenções e o terceiro shopping em um raio de dois quilômetros).
Morador da zona leste desde que nasceu, Marcos Dorça é um exemplo dos eleitores dessa região da cidade que escolheram Pablo Marçal como opção ao cargo de prefeito nas eleições municipais deste ano.
Em pouco tempo, o ex-coach e empresário angariou 28% dos votos do eleitorado paulistano e por pouco não foi para o segundo turno. Ficou atrás de Guilherme Boulos (PSOL) por apenas 56,8 mil votos. O atual prefeito, Ricardo Nunes (MDB), ficou em primeiro lugar, com 29% dos votos totais.
E foi principalmente nessa banda da cidade, a mais populosa de São Paulo, onde Marçal conseguiu demonstrar sua força eleitoral.
Ele foi o candidato mais votado em 14 das 20 zonas eleitorais da zona leste – popularmente conhecida como ZL. Segundo o Tribunal Regional Eleitoral (TRE-SP), a ZL concentra 3,2 milhões de eleitores, o maior colégio eleitoral da capital.
Marçal também foi o vencedor em outras seis zonas eleitorais da zona norte, formando na cidade uma espécie de “Marçalândia”, um corredor de bairros que vai de Itaquera ao Tucuruvi, passando por Penha, Mooca e Vila Maria.
Candidato à reeleição, Nunes foi o mais bem votado em 17 distritos, principalmente na zona sul, seu reduto eleitoral, e em parte da zona norte.
Já Boulos venceu em outros 19, tanto em bairros mais pobres dos extremos da cidade, como Guaianazes (leste) e Campo Limpo (sul), quanto em áreas centrais e de classe média e alta, como Bela Vista e Pinheiros.
Nos últimos dias, a BBC News Brasil visitou três bairros da “Marçalândia” – Mooca, Itaquera e Vila Medeiros – para conversar com eleitores do ex-coach, entender suas motivações e como avaliam o desempenho do candidato – que prometeu se candidatar de novo em 2026.
Para três entrevistados, Marçal representa uma “esperança de mudança”, um “rosto novo na velha política”, alguém que “acredita na pessoa, e não no sistema”.
Por outro lado, eles culpam a derrota ao comportamento explosivo e desrespeitoso de Marçal contra seus adversários: “ele atacou demais”, “perdeu a linha”, “infantilizou a campanha”, disseram.
E para onde vai o voto da “Marçalândia” no segundo turno?
Na última terça-feira (8/10), Marçal disse acreditar que metade de seus votos poderiam migrar para Boulos. “Ele sabe sinalizar com o povo e o Ricardo [Nunes] não sabe, Boulos e Lula têm a língua do povo, os outros só brigam”, afirmou.
Uma pesquisa do Instituto Datafolha divulgada na quinta (10/10), no entanto, apontou que 84% dos eleitores de Marçal disseram pretender votar em Nunes no segundo turno – tendência também verificada entre os eleitores entrevistados nesta reportagem.
‘Sair da mesmice’
“Conheci Marçal na campanha. Achei que valia a pena arriscar em um rosto novo na política nacional, uma chance de sair da mesmice. Não acredito em ninguém que já estava na política, ou que venha de uma família de políticos. Ele é um empresário bem-sucedido. Concordo com as ideias dele”, diz o empresário Marcos Dorça.
Para ele, que hoje atua no ramo de tecnologia e trabalha sempre em casa, um dos principais problemas de São Paulo é o trânsito. “Isso é o que mais me revolta. Eu gastava quatro horas por dia dentro do carro”, diz. “Minha mãe mora na Penha, a sete quilômetros daqui. Às vezes levo 1h30 nesse percurso.”
Ali, na Mooca, Marçal teve 33% dos votos, seguido por Nunes (30%) e Boulos (22%). Dorça arrisca uma explicação sobre o bom desempenho do ex-coach no tradicional ponto da ZL:
“Aqui é uma região de classe média, com muitos empresários. E vamos ser sinceros? É a classe média que sustenta esse país. E ser classe média no Brasil é um inferno, porque os ricos não pagam nada, e os pobres não têm condições de pagar. Então, quem segura a bucha somos nós. E estamos muito cansados disso.”
Para Dorça, esse estrato da ZL viu no ex-coach alguém que acredita que o Estado não deve ser assistencialista, e sim “prover condições para a pessoa ter seu ganha pão”, nada além disso.
“Esse negócio de dar de graça, cara, ninguém evolui. Você dá aquele mínimo, e a pessoa não se esforça, se acomoda, porque aquilo vem de graça. Essa é mais uma forma de manter curral eleitoral. O assistencialismo é importante, mas até certo ponto”, diz.
O empresário, que escolheu votar em Nunes no segundo turno, se considera de centro-direita e diz que “jamais votaria em Jair Bolsonaro”.
Embora tenha oficialmente apoiado o atual prefeito, o ex-presidente chegou a flertar com Marçal durante a campanha.
“Por outro lado, temos essa direita extremista, que não tem visão administrativa, de futuro, de sustentabilidade… Marçal tem algumas características de Bolsonaro, como a maneira de se comunicar, mas acho que eles são bem diferentes. Bolsonaro é um militar exonerado, um boçal. Marçal tem experiência administrativa.”
Dorço acredita que, na reta final da campanha, Marçal foi “vítima” de sua própria personalidade: teria perdido votos ao atacar demais seus adversários, como quando divulgou um laudo toxicológico falso que seria de Guilherme Boulos.
“Se ele fosse mais racional, teria vencido. Mas se mostrou moleque, passou a linha do desrespeito. Agora já era, nunca mais vai ganhar. Quando você vem do nada, você só tem uma oportunidade de ganhar. Se não emplacou, não vai”.
‘Ele não é da política’
Perto das margens de São Paulo, Itaquera é outro tradicional bairro da ZL que se “marçalizou” nestas eleições, embora ali a distância do ex-coach para Boulos tenha sido de apenas um ponto percentual – pouco mais mil votos.
Na terça-feira, o comerciante Celso Rossi, de 71 anos, outro eleitor da Marçalândia, encaixotava os últimos sapatos da loja que leva o nome de sua família há 34 anos.
“Vou encerrar minhas atividades. Não vale mais a pena, não tenho capital de giro. Depois da pandemia, as pessoas só compram pela internet. Veem a foto do sapato e compram, sem experimentar antes”, lamenta.
Entre as vitrines da loja, há uma bandeira do Brasil.
“Já votei no Maluf e muitas vezes no PSDB, mas me decepcionei muito, principalmente com o apoio do Geraldo Alckmin ao Lula”, diz, referindo-se ao passado tucano do atual vice-presidente, hoje no PSB.
“Pra mim, ali acabou o PSDB. Quem fez renascer meu interesse por política foi Jair Bolsonaro. Toda minha família é de direita”, diz.
“Confesso que preferia o Ricardo Salles (ex-ministro do Meio Ambiente do governo Bolsonaro). Mas me identifiquei com as ideias do Marçal”, afirma Rossi, que costuma frequentar manifestações bolsonaristas na avenida Paulista.
O comerciante se surpreendeu ao ser informado que o ex-coach foi o candidato mais bem votado em Itaquera e que deu Boulos no vizinho Guaianazes. “Talvez o povo de Itaquera tenha mais expertise”, diz.
Para Rossi, São Paulo tem um problema fundamental: a educação precária.
“Na minha época, a escola pública era melhor que a particular. E, mesmo a particular, hoje em dia, também é ruim. Vejo pela minha neta. Ela está na quinta série de um colégio particular aqui perto, e só tem dois professores…”
Também cita o trânsito lento como outro defeito insuportável de São Paulo. “Você tem carro? Eu fico indignado de pegar o carro às 6h e a marginal Tietê já estar parada. Caramba, são 6 horas da manhã, cara, imagina o que é isso…”
Ele tenta explicar porque a ZL apostou em Marçal. “Acho que boa parte da sociedade está muito desacreditada da política. Então, como ele não é político, as pessoas acreditam nas novas ideias que ele apresenta”, diz ele, que preferiu não tirar fotos para esta reportagem.
Para Rossi, que também decidiu votar em Ricardo Nunes no segundo turno, o coach cometeu erros básicos na campanha: “Ele atacou as mulheres dizendo que elas têm um cérebro menor que o dos homens. Isso não se faz, o eleitorado feminino é maior”.
“Outro equívoco foi cantar vitória antes do tempo. Ele se empolgou e disse que iria ganhar no primeiro turno. Você não faz isso em eleição. Está aí o resultado.”
O mito da ascensão da ZL
Para o cientista social Tiaraju Pablo D’andrea, coordenador do Centro de Estudos Periféricos da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a votação de Pablo Marçal encarna o “mito da zona leste como um local historicamente prejudicado, mas que hoje ascendeu economicamente em um mundo do trabalho cada vez mais precarizado.”
“Há um aumento da informalidade e da precarização. E Marçal apresenta uma saída falsa: o descrédito nas políticas públicas e o empreendedorismo como solução pessoal. A ideia de que apenas esforço pessoal leva à ascensão”, diz D’andrea, autor do livro A Formação das Sujeitas e dos Sujeitos Periféricos (Editora Dandara).
“Mas Marçal é diferente do jovem desempregado, do motoboy e do vendedor de tupperware. Ele é milionário, e vende uma esperança falsa para quem está desesperado. Uma esperança que flerta com o ‘golpe de sorte’, a ideia de que você pode ficar rico de uma hora para outra, na lógica das bets e do jogo do tigrinho.”
Para explicar o alcance de Marçal na região, o pesquisador divide a ZL em quatro núcleos de bairros com comportamentos eleitorais diferentes.
Os mais afastados, como Guaianazes, Itaim Paulista e São Mateus, representam uma periferia mais precarizada e com tendência mais à esquerda. É nessa região onde o PT historicamente concentra boa parte de seus votos.
“Depois, há uma faixa que chamo de ‘periferia em transição’. Itaquera, São Miguel, Parque do Carmo, Teotônio Vilela, onde existe uma mistura de características tanto da classe média baixa, com mais estrutura e comércio, como pontos mais parecidos com a periferia tradicional”, diz D’andrea.
O pesquisador avalia que esses são os “distritos pêndulos” da cidade, pois costumam votar mais na esquerda ou na direita, a depender do contexto eleitoral. “Em 2018, Bolsonaro venceu nesses bairros, mas em 2022 Lula foi o mais votado. Em 2012, Fernando Haddad ganhou. E agora Marçal se saiu melhor”.
D’andrea explica outra camada na ZL:
“Há bairros tradicionais, como Penha, Vila Formosa e Carrão, onde há uma população mais conservadora e envelhecida, de classe média baixa, que tem um certo medo da pobreza das regiões periféricas e tende a votar mais à direita.”
Já o quarto setor é formado por Tatuapé e Mooca, mais próximos do centro e em franco crescimento econômico, diz. “Podemos chamar esses bairros de epicentro do bolsonarismo em São Paulo. É uma região rica, ocupada por empresários e pessoas que ascenderam socialmente.”
O professor, no entanto, pondera sobre a análise da votação nessas regiões.
“Quando a gente pinta o mapa das zonas eleitorais de azul ou de vermelho, não significa que toda a população daquele ponto é de direita ou esquerda. Há divisões internas e diferentes maneiras de pensar. Boulos e Nunes também foram votados nesses bairros. Então, o mapa mostra muita coisa, mas também esconde.”
‘O sistema não vai fazer nada por você’
A “Marçalândia” também concentra parte do território da zona norte, principalmente em pontos de “fronteira” com a ZL.
Nessa parte da cidade, Marçal venceu em seis das 11 zonas eleitorais: Vila Maria, Vila Sabrina, Tucuruvi, Santana, Jaçanã e Pirituba.
Dois dias depois da eleição, a comerciante Rosane Cazé, de 44 anos, lamentava a derrota do ex-coach no primeiro turno – ela já o acompanhava pelas redes sociais há alguns anos.
“Ele atacou demais os outros candidatos, e deveria ter se defendido melhor. Se passou por louco. E teve o episódio da cadeirada do [José Luiz] Datena…”, diz, referindo-se ao ataque do candidato do PSDB ao ex-coach durante um debate da campanha.
Rosane falou com a reportagem enquanto postava fotos dos cosméticos que vende em sua loja em uma rua movimentada da Vila Medeiros.
O bairro faz parte da zona eleitoral da Vila Maria, onde Marçal teve seu maior percentual de votos na cidade (33,6%).
“Já votei no Lula porque acreditava que ele iria mudar o país. Mas não mudou nada. Piorou.”
“Hoje sou de direita, mas não sou militante nem voto no Bolsonaro, não. Na última (eleição presidencial), eu anulei. Agora, vou votar no apático do Nunes por falta de opção mesmo. Boulos está dentro da corja do Lula, não voto”, diz a comerciante.
Para ela, que há 19 anos mantém sua loja no bairro empregando jovens mulheres do bairro, Pablo Marçal encarna sua visão de mundo:
“Penso exatamente como ele: acredito na evolução da pessoa, e não no sistema. O sistema não vai fazer nada por você, e você não vai mudar o sistema. É só você, sozinho.”
Fonte: BBC
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