- Martha Henriques*
- BBC Future
Era uma noite importante para Inky, o polvo neozelandês.
Os visitantes do dia já tinham vindo e saído. Sua sala no aquário estava deserta. E a tampa do tanque estava entreaberta, o que raramente acontece.
Inky não tinha companhia feminina há algum tempo e dividia o tanque apenas com outro macho, Blotchy. E a tampa solta oferecia a Inky uma oportunidade.
Com seus oito membros fortes e cheios de ventosas – e, provavelmente, com preocupações íntimas próprias – Inky saiu da água, passou pela tampa solta e desceu até o piso do aquário.
Ele prosseguiu por cerca de quatro metros até encontrar algo mais – não uma fêmea, mas um ralo que levava ao Oceano Pacífico. E fugiu.
Blotchy era a única testemunha presente para presenciar a intrépida fuga. Mas, com a ajuda de uma trilha úmida e comprometedoras marcas de ventosas, os movimentos de Inky foram rastreados posteriormente pelos funcionários do Aquário Nacional da Nova Zelândia, na cidade de Napier, no norte do país.
Inky demonstrou em sua famosa fuga que os polvos são animais hábeis na solução de problemas. Eles são muito inteligentes e podem aprender tarefas novas e orientar-se no seu ambiente.
E existe consenso cada vez maior de que os polvos, muito provavelmente, são sencientes.
As pessoas que trabalham com polvos e passam muito tempo na sua companhia descrevem a sensação que têm quando olham para um polvo. Parece que alguém está olhando de volta.
“Quando você lida com um polvo atento e curioso sobre alguma coisa, é muito difícil imaginar que ele não esteja tendo nenhuma experiência”, segundo Peter Godfrey-Smith, professor de história e filosofia da ciência da Universidade de Sydney, na Austrália, e autor do livro Outras Mentes: O Polvo e a Origem da Consciência (Ed. Todavia, 2019). “Parece algo irresistível. Não é evidência, é apenas impressão.”
Partindo desse pressentimento, como podemos explorar a consciência de um animal tão diferente de nós?
Como é ser um polvo?
Antes de tudo, o que os filósofos e cientistas querem dizer com “consciência” neste contexto? Para Godfrey-Smith, o significado é de “algo que é como ser aquele animal”.
Em um ensaio famoso, o filósofo norte-americano Thomas Nagel pergunta “como é ser um morcego?” Nagel descreve que é muito difícil, quando não impossível, imaginar as experiências íntimas de um morcego se o seu ponto de referência for o corpo humano e a sua própria mente humana.
Da mesma forma, imaginar a vida íntima de um polvo é difícil do ponto de vista humano. Tente por um momento – imagine como seria ficar suspenso na fria penumbra azulada do leito do oceano, talvez levemente arrastado pela corrente puxando você com seus oito braços balançando suavemente à sua volta.
Como você imagina a sensação de ter as pontas dos seus membros com ventosas se movendo? Talvez seja como agitar seus dedos humanos, das mãos e dos pés?
Agora, acrescente à equação o fato de que o polvo é um animal invertebrado, sem esqueleto. Suas pernas não têm fêmur, tíbia, nem fíbula. Ele não tem pés e nem dedos para agitar.
Os polvos têm um esqueleto hidrostático, que combina a contração muscular e a resistência da água para comprimir-se e gerar movimento. É muito diferente da experiência humana de mover as extremidades do corpo.
Uma analogia um pouco mais próxima pode ser o movimento das nossas línguas, que também fazem uso da pressão hidrostática. De fato, os membros do polvo são cobertos de ventosas que têm sensores exclusivos que sentem o sabor de tudo o que tocam.
“Os braços do polvo, de certa forma, são mais parecidos com lábios ou línguas do que com as mãos”, segundo Godfrey-Smith. “Existe todo um grande conjunto de informações sensoriais com base no paladar que chega cada vez que o animal faz qualquer coisa. É uma situação muito diferente da nossa.”
E tudo fica ainda mais estranho quanto mais examinamos o sistema nervoso do polvo. Os braços do polvo têm mais autonomia que nossos braços e pernas humanas.
Cada braço do polvo tem o seu próprio cérebro em miniatura, que fornece certo grau de independência do cérebro central do animal. Já o nosso sistema nervoso é altamente centralizado – o cérebro é o núcleo da integração sensorial, das emoções, do início dos movimentos, do comportamento e de outras ações.
“Um dos nossos desafios reais é tentar descobrir como poderão ser as experiências em um tipo de sistema menos centralizado, menos integrado”, afirma Godfrey-Smith.
“No caso do polvo, as pessoas às vezes perguntam se podem estar presentes diversas consciências. Acho que é apenas uma consciência por polvo, mas pode haver uma espécie de fragmentação parcial, ou apenas algum tipo de desarticulação”, explica ele.
Quanto mais de perto você examina o corpo e o sistema nervoso do polvo, mais difícil fica imaginar – ou acreditar que você está imaginando – qual pode ser a sensação de ser um polvo. Afinal, o nosso último ancestral comum com esses animais viveu 600 milhões de anos atrás (um animal sem aparência inspiradora, algo como uma lombriga).
Mas, por mais difícil que possa parecer, vale a pena tentar entender se os polvos têm consciência – e, se tiverem, como ela seria, segundo Godfrey-Smith. “Nós só precisamos pensar sobre isso, trabalhar e tentar formar um quadro.”
Esta questão é cada vez mais urgente. A empresa multinacional de frutos do mar Nueva Pescanova está no momento buscando as licenças para abrir a primeira fazenda comercial de polvos do mundo, nas Ilhas Canárias. O anúncio levantou questionamentos dos ativistas do bem-estar animal, que consideram antiético criar esses animais inteligentes e possivelmente sencientes em fazendas.
Um estudo afirma que “quando a questão de consciência animal está em consideração, nossa culpa ou inocência como civilização por um enorme conjunto de crueldades pode pesar na balança”.
A Nueva Pescanova declarou à BBC que está realizando pesquisas sobre os “mecanismos cognitivos e neurofisiológicos do polvo” e que suas condições de aquacultura permitem “melhorar objetivamente o bem-estar dos polvos”.
A Nueva Pescanova afirma que suas condições de aquacultura imitarão o habitat natural dos animais. “É um sistema inovador que está tendo excelentes resultados em termos de crescimento, sobrevivência e resistência da espécie”, segundo um porta-voz da empresa.
Mentes diferentes, mas ambos sencientes
Heather Browning, pesquisadora cursando pós-doutorado em senciência e bem-estar animal na London School of Economics (LSE), argumenta em um ensaio que “a mente de um polvo pode ser muito diferente da nossa, mas somente tentando ver o mundo do ponto de vista dele é que poderemos descobrir o que é bom para ele e assim garantir seu bem-estar”.
Browning trabalha em um projeto sobre as bases da senciência animal na LSE e fez parte de uma equipe que produziu um importante relatório tentando descobrir se os polvos têm consciência.
Uma abordagem é começar com um estudo de caso sobre um animal que sabemos que é senciente: o ser humano.
“Se formos realmente analisar, consideramos que somos sencientes e que outros seres humanos como nós também são, o que acho bastante razoável”, explica Browning. “A partir daqui, você pode começar a procurar características que outros animais podem ter em comum conosco.”
Vamos considerar, por exemplo, a capacidade de sentir dor, que foi o tema do relatório da equipe da LSE sobre moluscos cefalópodes (incluindo polvos, sépias e lulas) e crustáceos decápodes (que incluem caranguejos, lagostas, lagostins e camarões).
Browning e seus colegas analisaram mais de 300 documentos científicos para elaborar oito critérios que indicam que os animais podem sentir dor:
1. Presença de nociceptores (receptores que detectam estímulos nocivos, como altas temperaturas ou cortes).
2. Presença de partes do cérebro que integram informações sensoriais.
3. Conexões entre os nociceptores e as regiões do cérebro integradas.
4. Reações afetadas por anestésicos ou analgésicos locais.
5. Compensações motivacionais que exibem equilíbrio entre ameaças e oportunidades de recompensa.
6. Comportamentos flexíveis de autoproteção em resposta a lesões e ameaças.
7. Aprendizado associativo que vai além do hábito e da sensibilização.
8. Comportamento que demonstra que o animal valoriza anestésicos ou analgésicos locais quando lesionado.
Os animais podem atender a cada critério com nível de confiança alto, médio ou baixo, dependendo se a pesquisa for conclusiva ou inconclusiva. Se o animal atender a sete ou mais dos critérios, Browning e seus colegas defendem que existem evidências “muito fortes” de que o animal é senciente. Se ele atender cinco ou mais critérios com alto nível de confiança, existem “fortes evidências” de senciência e assim por diante.
Com esta avaliação, Browning e seus colegas concluíram que existem poucas dúvidas de que os polvos podem sentir dor e, portanto, são sencientes. Eles atendem a todos os critérios com confiança alta ou muito alta, exceto um com confiança média.
Eles tiveram a avaliação mais alta de todas as criaturas estudadas – mais até que as suas primas sépias, que são consideradas mais inteligentes. Mas Browning observa que outros cefalópodes, além dos polvos, receberam muito menos pesquisas, o que afeta suas avaliações.
O relatório foi usado como evidência para servir de informação para uma alteração da Lei do Bem-Estar (Senciência) Animal do Reino Unido, reconhecendo que os moluscos cefalópodes e os crustáceos decápodes são sencientes.
“Acho que é algo bom o fato de que, no Reino Unido, os polvos e também os crustáceos estejam conseguindo um novo tipo de reconhecimento de direitos animais”, afirma Godfrey-Smith.
A capacidade de sentir dor é apenas uma das muitas facetas da consciência. Existe também a capacidade de sentir prazer, de sentir interesse ou desinteresse, de experimentar companhia e muitas mais. Com novas pesquisas, os cientistas podem ser capazes de idealizar escalas similares para medir outros aspectos diferentes da consciência dos animais.
Curiosos e criativos
Existe também uma segunda linha de evidências, além das correlações com as experiências humanas. Trata-se da análise do papel biológico da consciência e por que ela evoluiu. “É algo que as pessoas estão apenas começando a questionar”, segundo Browning.
Uma possibilidade é que a consciência tenha evoluído lado a lado com os comportamentos, como os tipos complexos de aprendizado, tomada de decisões e compensações motivacionais.
Você se arrisca a sair do seu abrigo para pegar uma refeição, mesmo depois de ter visto um predador nas redondezas? São situações complexas como esta que podem gerar a sensação de experiência.
“Existem algumas coisas que as pessoas pensam, pelo menos entre os seres humanos, que não é possível fazer inconscientemente”, explica Godfrey-Smith. “Elas incluem a reação inteligente à novidade.”
Às vezes, quando encontram uma novidade, como uma alavanca no seu tanque, os polvos reagem com uma criatividade toda própria. E, para os estudiosos, essa originalidade pode ser um pouco frustrante.
Em um experimento em 1959, o psicólogo norte-americano Peter Dews treinou três polvos – que ele batizou de Albert, Bertram e Charles – a empurrar uma alavanca no seu tanque para acender uma lâmpada e liberar um pequeno pedaço de peixe.
Albert e Bertram aprenderam a fazer isso sem muita dificuldade. Mas Charles foi mais além.
Dews relatou que “Charles fixou diversos tentáculos ao lado do tanque, outros em volta da alavanca e aplicou bastante força. A alavanca dobrou diversas vezes e, no 11º dia, ela se rompeu, levando ao término prematuro do experimento.”
Além de ser “particularmente festeiro”, nas palavras de Godfrey-Smith (Charles tinha o hábito de espirrar jatos de água em todas as pessoas que se aproximassem do seu tanque), o polvo demonstrou notável interesse pela lâmpada. Albert e Bertram praticamente a ignoraram, mas Charles rodeou a luz com seus tentáculos e a carregou para o seu tanque.
Para Godfrey-Smith, esses exemplos de curiosidade e atenção são reveladores. “Algumas das principais teorias sobre o que é a consciência nos animais aceitam que uma espécie de orientação atenta aos objetos não é o tipo de coisa que pode ocorrer inconscientemente para nós ou, aparentemente, para outros animais”, ele conta. “Por isso, é um sinal altamente sugestivo de experiência.”
Mas, se o polvo realmente for senciente, ainda permanece a questão mais importante: como é ser um polvo?
Parte da razão da dificuldade da resposta é que a ciência não fornece resultados que sejam úteis para determinar experiências subjetivas, segundo Marta Halina, professora do Departamento de História e Filosofia da Ciência da Universidade de Cambridge, no Reino Unido.
“Como é ser um organismo do ponto de vista daquele organismo em primeira pessoa – nós não temos acesso a isso”, afirma Halina. “A ciência assume o ponto de vista de terceira pessoa sobre os sintomas – e aqui reside o problema.”
Este salto do objetivo para o subjetivo ficou conhecido como “o problema difícil da consciência”.
O problema difícil da consciência
Segundo o filósofo australiano David Chalmers, a questão é: como os processos físicos no cérebro causam as experiências subjetivas da mente?
Apesar de décadas de pesquisas neurocientíficas sobre fenômenos como o sono, vigília, percepção e solução de problemas, o problema difícil da consciência persiste.
Chalmers argumenta que é concebível podermos compreender os fundamentos neurocientíficos de uma ampla variedade de comportamentos humanos sem a necessidade de invocar uma experiência subjetiva do mundo, em primeira pessoa, para que faça sentido.
Chalmers acredita que o problema, em última análise, é uma questão para os cientistas responderem – se é que os nossos métodos científicos atuais são apropriados para encontrar essa resposta.
Consciência exótica
O problema difícil da consciência pode ainda não ter solução clara, mas existem uma ou duas formas práticas de contorná-lo.
Uma delas é observar as “correlações comportamentais” ou “correlações neurológicas” da consciência – em outras palavras, comportamentos e sistemas neurais que suspeitamos terem relação próxima com os estados conscientes.
“Podemos usá-los como marcadores da consciência”, afirma Halina. É o que fizeram Browning e seus colegas da LSE, usando marcadores como a presença de nociceptores.
Mas existe o risco de afundarmos na nossa perspectiva humana.
“Temos mais certeza sobre a consciência humana e, com muita frequência, as correlações neurológicas e comportamentais nas quais nos baseamos têm seus fundamentos no caso humano”, segundo Halina. “Quanto mais nos afastamos dos seres humanos em termos de estrutura, comportamento e função, menos certeza temos de que estamos realmente rastreando a consciência.”
Se observarmos um organismo como a mosca das frutas e procurarmos um sistema neural parecido com o dos humanos para sentir e reagir às dores, sem encontrar, isso não elimina a possibilidade de que a mosca das frutas consiga sentir dor. “Significa simplesmente que elas podem sentir de forma um pouco diferente”, explica Halina.
É por isso que o polvo é um caso tão interessante. Ele pode ser considerado uma forma de “consciência exótica”, ou um exemplo de consciência muito diferente da nossa, como descreve Halina em um ensaio sobre o tema.
Os polvos são tão diferentes de nós que precisamos questionar muitas das nossas concepções sobre eles – e até as nossas concepções sobre nós mesmos.
“Quando questionamos se os polvos são conscientes como nós, podemos estar formulando uma pergunta que não faz muito sentido, porque não sabemos totalmente como é ser consciente”, afirma Halina.
Ela usa o exemplo de uma técnica tomada emprestada da pesquisadora da consciência Susan Blackmore. A tarefa proposta pela pesquisadora britânica é perguntar a si mesmo “estou consciente agora?” ao longo de todo o dia, sempre que for possível – quando estiver a ponto de dormir, durante o café da manhã, em meio a uma conversa.
“Você descobre que não tem tanta confiança sobre o que é a consciência em todos os momentos”, segundo Halina.
Além de aprender mais sobre a consciência do polvo para o próprio bem-estar da sua espécie em vista da criação comercial em fazendas, suas mentes também podem nos dizer algo sobre nós mesmos.
“É importante ponderar como é ser um polvo porque pode nos levar a reavaliar como é ser humano”, afirma Halina. “E talvez refletir sobre como sabemos tão pouco sobre o que é ser humano possa nos abrir mais para saber como é ser um polvo.”
*Martha Henriques é editora do site BBC Future Planet. Sua conta no Twitter é @Martha_Rosamund.
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