- Author, Frankie Adkins
- Role, BBC Future
Armação de Pêra é uma antiga vila de pescadores que foi transformada em resort no Algarve, no litoral sul de Portugal.
No inverno, ela fica deserta. Sua grande baía de areia fica vazia, as ruas de pedras não têm visitantes e os restaurantes servem os clientes locais.
Mas basta chegar o verão e o mar estará repleto de barcos cheios de pescadores e operadores de turismo. Eles vêm atrás de uma das iguarias mais apreciadas da região: o polvo.
É verdade que as sardinhas e o bacalhau importado costumam ser sinônimos de Portugal. Mas o país consome cerca de 15 mil toneladas de polvo por ano – mais do que qualquer outro país europeu.
O polvo comum é o fruto do mar mais lucrativo de Portugal – e mais da metade dos animais é encontrada na região do Algarve.
“O polvo é a principal fonte de renda das pequenas comunidades pesqueiras do Algarve”, segundo a pesquisadora de pesca Mafalda Rangel, da Universidade local.
Mais de 90% dos pescadores da região usam potes e armadilhas para capturar os animais. O quilo do polvo pode valer um valor considerável para eles – 6,05 euros (cerca de R$ 35,15) por kg.
Mas a jornada do polvo, do fundo do mar até o prato, está ficando cada vez mais inquietante.
A pesca comercial e o turismo estão pressionando os recifes. O comércio do polvo, oficialmente, não está ameaçado, mas existe o receio de que, se a sua captura não for protegida, as quantidades podem diminuir, como ocorreu com as sardinhas e com o atum, nas últimas duas décadas.
Em toda a região do Algarve, os pescadores vêm observando as mudanças. As águas que, antes, eram repletas de vida marinha, agora, têm cada vez menos animais.
E, como isso prejudica a sua renda e seu antigo modo de vida, eles estão tomando medidas para proteger os seus recursos para o futuro.
“Quando eu tinha 10 anos de idade, eu ia para a água de bermudas com um fuzil de pesca submarina e conseguia facilmente frutos do mar para comer: caranguejos, enguias, moreias, tínhamos tudo por aqui”, conta o ex-presidente da Associação de Pescadores de Armação de Pêra, Miguel Rodrigues.
Agora, ele tem 45 anos de idade e aqueles dias são uma recordação distante. Mesmo com armadilhas mais sofisticadas e barcos a motor à disposição, os pescadores hoje em dia capturam menos polvos, segundo Rodrigues.
“Eles têm mais redes de pesca e outras formas de captura, mas não há mais frutos do mar”, lamenta ele.
Rodrigues é um dos poucos pescadores que ainda pegam polvos de forma tradicional, mergulhando potes no mar – conhecidos como alcatruz. Os polvos rastejam pelas fissuras até entrar naqueles potes de argila vermelha em busca de abrigo, quando são puxados para a superfície.
A maior parte dos pescadores modernos substituiu este método pelos potes cilíndricos de plástico, que podem ser produzidos em escala a baixo custo. Mas os potes de argila podem servir para prever o tempo – eles quebram em dias de tempestade e alertam os pescadores quando as condições do mar são muito rigorosas.
“Alguns pescadores dizem que pode ser uma forma de gerenciar a pesca, ajudando as pessoas a saber quando devem sair para o mar ou não”, segundo Rangel.
É difícil encontrar em Portugal dados que indiquem a queda do número de polvos, ao contrário do declínio observado em outras espécies, como as sardinhas.
O polvo não está sujeito às mesmas regulamentações de outros produtos marinhos. O animal não está incluído nas quotas da União Europeia, por exemplo. Por isso, é mais difícil monitorar sua população.
“O polvo é um animal muito específico porque ele morre depois da procriação”, explica Rangel. “Por isso, sua vida é muito curta.”
Ela acrescenta que a maioria dos polvos vive por apenas um a dois anos e eles são muito sensíveis às mudanças ambientais na fase de larva.
A pesca do polvo em todo o mundo quase dobrou entre 1980 e 2014. E, embora o polvo comum não seja uma espécie ameaçada, existem preocupações com a oferta futura, já que a demanda por frutos do mar está aumentando.
Uma série de normas já está em vigor em Portugal para reduzir a pesca do polvo e minimizar problemas ambientais, como a perda de equipamento de pesca e as altas emissões de combustível dos barcos.
Pensando mais adiante, surgiram os planos de criação da primeira fazenda comercial de polvo do mundo, nas ilhas Canárias (Espanha). Mas, embora a criação de polvos em cativeiro possa reduzir a pressão sobre a população selvagem, ela também alarmou os cientistas e os defensores do bem-estar dos animais.
Os polvos são conhecidos pela sua inteligência, desde o polvo Paul, que ficou famoso por prever resultados de futebol, até o animal astro do documentário Professor Polvo, vencedor do Oscar em 2021. E existem cada vez mais evidências de que os polvos podem ser considerados sencientes e, por isso, devem ser incluídos na legislação protetora do bem-estar dos animais.
No Algarve, pescadores como Rodrigues estão trabalhando para estabelecer um novo modelo de empoderamento das comunidades que dependem dessa espécie oceânica, para protegê-la. Dois projetos – uma nova Área Marinha Protegida (AMP) e um comitê de cogestão – estão colocando os pescadores em pé de igualdade nas decisões sobre o seu futuro.
A baía de Armação de Pêra abriga o maior recife rochoso de Portugal – um refúgio para cerca de 70% das espécies nativas da região. Elas incluem espécies protegidas, como os cavalos-marinhos e a garoupa-verdadeira.
Mas a rica biodiversidade do recife e as antigas cavas fazem com que o local atraia o turismo litorâneo e a pesca comercial.
“Dependo em 100% deste recife”, afirma Rodrigues. “Depois da segunda Era Glacial, a água entrou e criou esta baía. É uma dádiva.”
Rodrigues desempenha diversas funções. Ele é o ex-presidente da associação de pescadores da cidade, operador de mergulho, morador local e biólogo marinho.
Normalmente, ter diversos interesses concorrentes entre si tornaria a conservação um feito difícil de ser alcançado. Mas Rodrigues é um modelo de como muitos interessados estão trabalhando em conjunto para criar inovações.
Em 2021, foi criada a primeira Área Marinha Protegida de Interesse Comunitário de Portugal, idealizada e projetada pelos moradores da região.
Cerca de 89 organizações colaboraram para formar o Parque Natural Marinho do Recife do Algarve – Pedra do Valado. Elas incluíram municipalidades locais, cientistas, associações de pescadores e organismos do setor de turismo e hoteleiro.
O parque protege cerca de 156 km² de oceano, com uma zona de proibição de pesca de 20 km, para oferecer à vida selvagem uma chance de se recompor.
Para Rodrigues, a AMP foi uma tentativa desesperada de salvar o recife e seus muitos habitantes.
“Eu adoro polvo, mas a única forma de envolver a comunidade foi fazer com que a pesca fosse sustentável”, explica ele.
As AMPs – às vezes, também chamadas de santuários oceânicos, parques marinhos ou zonas de exclusão – são áreas designadas do oceano, criadas para proteger habitats e espécies marinhas.
Apesar de serem consideradas “pedras fundamentais” dos esforços de conservação marinha global, atualmente, elas cobrem menos de 10% da superfície do oceano. Mas criar um cordão de segurança para proteger um trecho de oceano pode criar conflitos com os pescadores locais e sua execução pode ser controversa.
Um exemplo foi uma AMP criada em 1998 em Sesimbra, uma cidade litorânea ao sul da capital portuguesa, Lisboa. Ela gerou conflitos, principalmente com os pescadores da região.
O Parque Marinho Luiz Saldanha (PMLS) foi criado de cima para baixo, imposto pelas estruturas do governo. Relatos indicam que as restrições deixaram os pescadores locais ressentidos e alienados do processo de tomada de decisões.
Por outro lado, diversas AMPs criadas em conjunto com a comunidade estão progredindo em vários países, do Quênia até os Estados Unidos.
Um estudo analisou 27 casos de AMPs de diversas partes do mundo e concluiu que a participação dos envolvidos era o fator mais importante para o sucesso das áreas de proteção – e a falta de envolvimento era o principal motivo de fracasso.
Protegendo para as gerações futuras
Em outro ponto do Algarve, na Marina de Lagos, acontece uma reunião na Docapesca, a empresa de propriedade do Estado, responsável pela venda de peixes e frutos do mar.
No lado de fora, gatos de rua vasculham potes usados para pescar polvos, na esperança de encontrar algum resíduo. Dentro, mais de uma dezena de pescadores se reúnem com um biólogo marinho, para decidir pela formação ou não de um comitê de cogestão.
Eles não fazem parte da AMP vizinha, mas a cogestão se baseia em valores similares: oferecer aos pescadores participação equitativa na forma de gestão dos recursos.
Portugal já dispõe de uma série de normas em vigor para evitar a pesca excessiva do polvo. Por lei, os pescadores não podem pescar o animal nos fins de semana e eles devem ser devolvidos ao mar se pesarem menos de 750 gramas.
“A cogestão é um modelo inovador”, afirma a apoiadora do projeto Rita Sá, da WWF Portugal.
“No começo, [os pescadores] estavam céticos sobre a cogestão. Agora, temos pescadores trocando ideias com os cientistas. Eles estão entendendo as normas, por que precisamos ter limites para a pesca e a biologia dos recursos.”
Em fevereiro de 2024, o modelo de cogestão foi aprovado com o apoio de mais de 75% dos licenciados, representando mais de 700 pescadores do Algarve.
André Dias é um pescador da região. Ele assumiu os barcos de pesca de polvo do pai.
Dias votou a favor do comitê, na esperança de que questões sérias, como os criadouros de polvos, sejam debatidas coletivamente.
“Qualquer pessoa tem o direito de levantar uma questão e todos precisam analisá-la em comunidade”, ele conta.
Dias acredita que as diversas iniciativas comunitárias no Algarve – das áreas marinhas protegidas até os comitês de cogestão – podem fortalecer os pescadores.
“Com estes dois projetos acontecendo simultaneamente, estamos realmente fazendo algo poderoso para a forma de lidar e gerenciar nossos recursos”, afirma ele. “É uma conquista muito importante em Portugal e mostra o que as pessoas podem fazer como grupo com interesses diferentes.”
De volta a Armação de Pêra, Miguel Rodrigues aponta cabanas desgastadas pelo tempo, com suas placas de madeira lascadas e abauladas. É ali que os pescadores guardam seus equipamentos, segundo ele. Sua degradação é um símbolo das dificuldades enfrentadas pela atividade pesqueira em pequena escala.
“As Áreas Marinhas Protegidas precisam ser para a comunidade local”, segundo Rodrigues. “Se os políticos simplesmente desenharem um quadrado no mapa e disserem ‘isto é uma reserva’, não irá funcionar.”
Durante o projeto da AMP, alguns pesquisadores participaram dos exercícios de “visão compartilhada”, imaginando diferentes cenários de conservação do recife. O processo participativo foi apoiado pela Fundação Oceano Azul, uma organização internacional dedicada a preservar os espaços azuis.
A AMP ainda aguarda implantação. Mas, para Rodrigues, a proteção é um sinal de esperança. Ele gostaria que houvesse vida no mar para os futuros pescadores – seus filhos e netos.
“Quero que minha filha continue protegendo o recife para as outras gerações”, conclui ele.
Fonte: BBC
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