- Stuart Butler
- BBC Travel *
Segundo os budistas tibetanos, sua localização somente será revelada em momentos muito específicos, quando o mundo estiver sob enorme tensão e em risco de destruição.
Olhando pela entrada do monastério para as colunas de rocha e picos de gelo que se elevam aos céus a 7 mil metros de altitude, o monge budista sorri, dizendo “estou em casa, no meu paraíso”.
Ele volta sua atenção para a sala de aula, onde está ensinando jovens monges iniciantes. Agradeço a ele, fecho a porta atrás de mim e deixo o monastério.
Saio da pequena aldeia de Thame, no Nepal, com suas sólidas casas de pedra e seus campos de cevada e batata. Deixo para trás os enormes picos do Himalaia e o beyul.
Parte das crenças da escola Nyingma de budismo tibetano – a mais antiga das quatro diferentes escolas, formada no século 8º – o beyul é o local onde os mundos físico e espiritual se sobrepõem.
Especificamente, eles são vales paradisíacos ocultos, cuja localização somente será revelada em momentos excepcionais, quando o mundo estiver sob enorme tensão e em risco de destruição pela guerra, fome ou pragas.
Acredita-se que, nessas ocasiões, o beyul possa servir de refúgio em um mundo instável, onde tudo vive em harmonia.
Como surgiram os beyuls?
“O beyul é um local sagrado e um santuário no qual os lamas [os professores do budismo tibetano] podem liderar as pessoas em tempos de conflitos e problemas”, explica Frances Klatzel, autora de diversos livros sobre a cultura budista e do Himalaia, incluindo Gaiety of Spirit – the Sherpas of Everest (“Alegria de espírito – os xerpas do Everest”, em tradução livre).
Mas nem todas as pessoas podem entrar no beyul, segundo ela. Somente os budistas verdadeiros com coração puro, que tenham superado enormes dificuldades e provações, podem entrar em um beyul.
Para os budistas da escola Nyingma, quem tentar entrar em um beyul sem atender a todas as condições acima provavelmente enfrentará a morte.
Como autor de uma série de guias da região e visitante regular das regiões do Tibete e do Himalaia, acho fascinante que, em algum lugar entre as montanhas da região, possa haver terras escondidas que são reveladas a poucos merecedores em tempos de calamidade.
E, antes de seguir para as montanhas para descobrir mais a respeito, peço a Klatzel algumas informações sobre como surgiram os beyuls.
Ela explicou que os beyuls foram criados por Padmasambhava (o Guru Rinpoche, nascido do lótus), um mestre budista tântrico Vajra. Acredita-se que ele tenha sido fundamental na difusão do budismo pelo Tibete e pelo Himalaia no século 8º ou 9º.
“Enquanto viajava pelo Himalaia, Padmasambhava percebeu que tempos de conflito estavam por vir”, conta Klatzel.
“Por isso, ele usou seus poderes espirituais para purificar e ‘esconder’ certos vales e escreveu textos descrevendo suas localizações e as condições para entrar neles.”
Esses textos foram escondidos em cavernas, dentro de monastérios e atrás de cachoeiras em todo o Himalaia e somente poderiam ser descobertos pelos lamas em momentos pré-determinados por Padmasambhava.
Ninguém sabe exatamente quantos beyuls existem, mas o número mais aceito é de 108 – embora a maioria ainda não tenha sido revelada.
A maior parte das áreas que foram localizadas está no lado sul do Himalaia, que é mais verde, úmido e fértil – mais “paradisíaco” – que o planalto tibetano, muitas vezes hostil e estéril.
Alguns desses beyuls – como em Sikkim, no nordeste da Índia, e os vales de Helambu, Rolwaling e Tsum, no Nepal – são conhecidos há séculos pelos praticantes do budismo e agora são pontilhados por aldeias e cidades.
E existem beyuls cuja localização é conhecida, mas que são inacessíveis para a maioria das pessoas. Isso ocorre porque um beyul pode ser tanto um local físico quanto um local espiritual.
Afirma-se que uma pessoa pode ficar de pé sobre um beyul, mas estar fora dele.
Evidências encontradas
Talvez seja fácil acreditar que a ideia de uma terra escondida seja algo saído de um conto de fadas. Ocorre que, de fato, já foram encontrados pergaminhos antigos com os detalhes da localização de beyuls.
O beyul Pemako, por exemplo. Ele fica no que hoje é o remoto Estado de Arunachal Pradesh, no nordeste da Índia.
O portal para o venerado beyul foi indicado como estando escondido sobre os rochedos atrás de uma cachoeira, na parte mais inacessível do cânion Yarlung Tsangpo, no Tibet – o mais profundo do planeta.
Até muito pouco tempo atrás, o cânion era apenas um ponto em branco nos mapas. Ninguém nem mesmo sabia que havia uma cachoeira ali.
Mas, no início dos anos 1990, um grupo de praticantes do budismo, liderado pelo acadêmico budista Ian Baker (que descreveu sua experiência posteriormente no livro The Heart of the World, “O coração do mundo”, em tradução livre), finalmente explorou a região e, de fato, descobriu uma grande cachoeira escondida dentro do cânion.
E, da mesma forma que os próprios beyuls, as histórias sobre um fim aterrador se você tentar entrar em um deles antes da época certa ou se o seu coração não for tão puro quanto você pensa parecem ser mais do que uma lenda.
Em 1962, um respeitado lama tibetano, Tulshuk Lingpa, afirmou ter encontrado um mapa que levaria ao beyul Demoshong. O portal, segundo rumores, estaria em algum lugar nas encostas do monte Kanchenjunga, a terceira montanha mais alta do planeta.
Ele viajou até a montanha com cerca de 300 seguidores. O escritor americano Thomas K. Shor conta o relato dos sobreviventes do evento no livro A Step Away from Paradise (“A um passo do paraíso”, em tradução livre).
Segundo eles, Lingpa e alguns outros que seguiam à frente dos demais para fazer o reconhecimento do caminho viram diversas luzes brilhantes chamando-os em direção a um portal.
Mas, em vez de entrar no beyul, Lingpa voltou para reunir todos os seus seguidores. E, infelizmente, em vez de cruzar a fronteira mágica para um vale paradisíaco, a maior parte do grupo foi morta por uma avalanche – incluindo o lama.
A jornada dos sherpas
Outras pessoas tiveram mais sucesso em suas tentativas de entrar em um beyul. O povo sherpa é um exemplo.
Esses renomados alpinistas, carregadores e guias de caminhada têm hoje uma relação íntima com a parte nepalesa do Himalaia, particularmente o monte Everest.
Mas nem sempre eles viveram na face sul do Everest. Na maior parte da sua história, eles viveram na região Kham, no leste do Tibete (hoje, parte da província chinesa de Sichuan), até que, no século 15, conflitos e agitações generalizadas no Tibete viraram o mundo dos sherpas de cabeça para baixo.
Foi então que o Lama Sangya Dorje, mestre do Budismo tibetano, decidiu que havia chegado a hora de revelar o beyul Khumbu. Ele liderou os sherpas pela assustadora passagem de Nangpa La (com 5.716 metros de altitude) até uma terra com água em abundância, que eles poderiam cultivar e onde seus iaques poderiam pastar em paz.
Os sherpas haviam chegado ao Khumbu (o nome dado à região em volta da face nepalesa do monte Everest) e, em comparação com o local de onde eles partiram, era uma visão de paraíso nas alturas.
Atualmente, a região de Khumbu recebe milhares de visitantes estrangeiros todos os anos, no famoso acampamento base do Everest – embora, durante a minha visita, a maioria das pessoas não soubesse que estava em um beyul, nem demonstrasse nenhum tipo de interesse.
Mas existem alguns pontos da região de Khumbu onde o espírito do beyul permanece forte.
Empoleirado em uma encosta íngreme e coberta de floresta, o Lawudo Gompa é considerado um dos pontos mais sagrados do vale de Bhote Koshi Nadi, no Nepal, a dois vales a oeste do acampamento base.
“A maioria das pessoas acha que existem apenas quatro vales na região de Khumbu. Mas não é verdade”, afirma a monja Dawa Sangye Sherpa, com 82 anos de idade, que vive no gompa (um pequeno monastério tibetano) há mais de 50 anos.
Ela me trouxe chá e biscoitos logo que cheguei e prontamente concordou em me contar mais sobre a ligação entre Lawudo e o beyul Khumbu.
“Atrás do gompa, existe um grande rochedo chamado Dragkarma”, ela conta. “O rochedo é um portal que leva para um quinto vale secreto. Lá é o coração do beyul.”
Quando perguntei se eu poderia ver o rochedo, Dawa Sangye sorriu e balançou a cabeça, negativamente. “Mas vou mostrar outra coisa”, ela disse.
Guiando-me pelo salão de orações principal, a monja abriu uma pequena porta que dava acesso a um quarto construído em uma saliência rochosa.
Dentro, o teto de rocha foi pintado de azul. Na extremidade do quarto, havia um pequeno santuário com uma imagem de Padmasambhava.
E, aos seus pés, estavam as oferendas deixadas pelos visitantes: uma pequena caixa de biscoitos digestivos, um pacote de macarrão e flores secas.
“Era aqui que Padmasambhava meditava e aqui ele abençoou o Khumbu, transformando-o em um beyul”, afirma Dawa Sangye. E, mesmo não sendo budista, passo a mão pelas paredes da caverna, maravilhado.
‘O beyul é um estado de espírito’
Talvez vendo meu sorriso, a monja sugeriu que eu fosse até a aldeia de Thame, acima do vale.
Situado no ponto em que a terra agrícola torna-se pastagem para os iaques, o monastério de Thame, segundo ela, é considerado um dos mais antigos de Khumbu e um lugar de grande significado espiritual. Alguns chegam a dizer que é o centro espiritual do beyul Khumbu.
A trilha de caminhada de Lawudo até Thame desce em espiral por faces de rochedos e desliza ao longo de um cânion formado por poderosos picos montanhosos. De repente, a terra se abre para revelar um grande vale aberto com a aldeia de Thame ao longe.
Abrindo as portas do salão de orações principal do monastério de Thame, encontrei três monges idosos recitando palavras escritas em pergaminhos amarelados. Interrompendo seus cânticos, um deles acenou para que eu me sentasse no banco ao seu lado.
“Às vezes, quando estamos recitando nossas orações aqui, Padmasambhava aparece para nós”, sussurrou ele, acrescentando que o espírito de Padmasambhava dizia a eles que o trabalho que eles estavam fazendo e as orações oferecidas estavam trazendo o bem para o mundo.
Pouco tempo depois, passei pela porta da classe onde o monge budista havia dito “estou em casa, no meu paraíso”. Haja ou não vales ocultos no Himalaia, esses monges claramente encontraram seu lugar de paz.
Enquanto deixava o local, lembrei-me de algo que Klatzel havia me dito antes de começar a viagem: “um beyul é mais que apenas um lugar, é um estado de espírito. Os beyuls são lembretes para nos prepararmos para os desafios à nossa frente, desenvolvendo um estado de espírito calmo e estável, que se torne o nosso beyul interno, o nosso santuário interior”.
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