- Edison Veiga
- De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
Com pequenas variações cá e acolá, é uma frase que permeia a Bíblia, do Antigo ao Novo Testamento: “Os humilhados serão exaltados”.
Aparece nos evangelhos como algo proferido pelo próprio Jesus. Aparece no livro dos Provérbios como um ensinamento próprio da sabedoria dos judeus. Aparece em textos de profetas anteriores a Cristo e em textos de apóstolos posteriores a ele. E até nos manuscritos do Mar Morto, textos que não integram a Bíblia.
No capítulo 23 do evangelho de Mateus, o texto coloca Jesus em uma forte crítica aos fariseus, a elite religiosa judaica da época.
“Vós, porém, não queirais ser chamados de mestre, porque um só é o vosso mestre, a saber, o Cristo, e todos vós sois irmãos./ E a ninguém na terra chameis vosso pai, porque um só e o vosso pai, o qual está nos céus./ Nem vos chameis mestres, porque um só é o vosso mestre, que é o Cristo. O maior dentre vós será vosso servo./ E o que a si mesmo se exaltar será humilhado; e o que a si mesmo se humilhar será exaltado./ Mas ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Pois que fechais aos homens o reino dos céus; e nem vós entrais nem deixais entrar aos que estão entrando”, diz a escritura.
Já na narrativa que consta do evangelho de Lucas, a mesma expressão aparece em outra situação. Jesus também é situado em um debate com os fariseus, mas recorre a uma parábola, recurso muito comum nos evangelhos. Ou seja: ele conta uma história de fácil compreensão para ilustrar seu ensinamento.
No caso, sua parábola era ambientada em uma festa de casamento. Jesus orienta que “quando por alguém fores convidado às bodas, não te assentes no primeiro lugar”. Ele recomenda que se escolha sempre as cadeiras mais distantes e menos favorecidas.
“Para que, quando vier o que te convidou, te diga: ‘amigo, sobe mais para cima’. Então terás honra diante dos que estiverem contigo à mesa”, diz ele.
“Porquanto qualquer que a si mesmo se exaltar será humilhado, e aquele que a si mesmo se humilhar será exaltado”, sentencia.
“Essa questão da humilhação e da exaltação é uma coisa que de fato aparece em todo o contexto bíblico. É recorrente. Está nos evangelhos de Lucas e de Mateus, em outras passagens do Novo Testamento como em Tiago e em Pedro, e em uma série de passagens do Antigo Testamento, como em Provérbios e em Isaías”, comenta o historiador, filósofo e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
“Essa temática é uma advertência pra que os homens não se exaltem, reconheçam seu estado, sua condição finita”, observa ele.
“Está muito associada à religiosidade judaica porque ela de alguma forma representa esse processo de saída de um povo em busca da terra prometida. Esse grupo é chamado o tempo todo a reconhecer que há um único Deus, portanto só cabe a Ele a exaltação. Aos oprimidos resta reconhecer o estado de humilhação, um estado que de alguma forma será recompensado em algum momento.”
Distorções contemporâneas
Essa é a chave que, graças a interpretações literais e uma boa dose de deturpação teológica, chega à sensação de empoderamento vivenciada por muitos a partir do versículo.
“É curioso como a frase foi distorcida na narrativa política de boa parte da comunidade evangélica. Nas escrituras, a esperança da humilhação dos poderosos e opressores e da exaltação dos humildes é uma expectativa futura, que acontecerá apenas no fim da história, com a consumação plena do Reino de Deus”, analisa o teólogo e escritor evangélico Gutierres Fernandes Siqueira, membro da Assembleia de Deus e autor de, entre outros, Quem Tem Medo dos Evangélicos? – Religião e Democracia no Brasil de Hoje.
“Não é um lema de empoderamento político para a era presente. É uma esperança que só pode ser concretizada pelo próprio Cristo”, completa ele, em sua explicação.
Siqueira ressalta, contudo, que o domínio histórico do catolicismo acabou deixando evangélicos acuados, vendo-se “como parte marginalizada da sociedade”. “Na primeira metade do século 20, especialmente em pequenas cidades, ainda era comum padres usarem o poder político para perseguirem pastores e igrejas nascentes”, recorda.
“Os evangélicos, como um grupo minoritário, abraçavam uma postura de aversão à política como ‘coisa do Diabo’. A imprensa chama-os de ‘seita’ e os políticos não os viam como ativo eleitoral”, relata.
“Próprio desse passado de perseguição e dificuldade, os evangélicos nutrem ainda hoje dois sentimentos comuns: ressentimento e empolgação com o poder que hoje possuem. É nesse contexto que fazem a leitura da frase de Jesus como ‘reversão de quadro’ ou ‘agora é a nossa vez’.”
Em um caldo teológico-sociocultural que, diga-se, mescla doses de pobreza, baixa escolaridade e pitadas fortes de teologia da prosperidade — aquela ideia de que Deus dará riqueza aos mais fiéis.
“Com muitas exceções, o segmento evangélico brasileiro é majoritariamente um segmento de pessoas muito pobres, excluídas do sistema. Quando uma dessas pessoas abre a Bíblia e se depara com uma mensagem como esta, que faz parte da ética de Jesus, ela se reconhece automaticamente”, ressalta Moraes.
Aí vem o empoderamento. O fiel pode estar passando fome, pode ser alvo de preconceitos étnicos ou mesmo pela própria religiosidade. “E aí se depara com essa fala na boca de Jesus, e se identifica, olha para aquilo e pensa: quer dizer que essa injustiça toda que eu estou sofrendo aqui ela não ficará impune?”, reflete Moraes.
“Há alguém olhando por mim, há uma promessa de Jesus dizendo que a minha humilhação há de ser recompensada e a exaltação dos homens ao meu redor aqui haverá de ser punida.”
Fundamentalismo e fé
Esse raciocínio, lembra o professor, automaticamente “entra como uma promessa que motiva, que alimenta a fé”.
“Nesse sentido, saber que há uma Providência, com p maiúsculo, cuidando de tudo e de alguma forma pesando tudo, avaliando as minhas ações e não deixando impunes as humilhações… Essa pessoa quando se depara com um versículo como esse se identifica”, pontua.
O grande problema é o fundamentalismo. “Há uma apropriação de maneira isolada dessa frase, esquecendo o contexto maior, esquecendo que Jesus estava falando dentro de um contexto histórico, político e social”, alerta Moraes.
“Aí o risco é transformar aquilo num mantra, e simplesmente começar a reproduzir um jargão como se a frase valesse para toda e qualquer situação.”
“Mas, sim, é uma expressão que de fato gera um empoderamento. Mas gera um empoderamento a partir de uma promessa de que Deus está vendo tudo e aquele que é humilde há de ser exaltado”, diz o professor.
“E aquele que é exaltado aqui, que prefere pompa e circunstância, sendo uma pessoa injusta há de ser humilhado. Tudo isso mostra um cenário de juízo: a ideia de que há um Deus julgador e que, então, as injustiças aqui não ficarão impunes.”
Conforme diz o teólogo, as pessoas “se sentem megaconfortadas” com essa ideia.
Especialistas, entretanto, ressaltam que a promessa de que os humilhados serão exaltados não deve ser entendida como uma revolução “neste mundo”.
“Não é uma inversão de classes em que o rico se tornará pobre e o pobre se tornará rico”, afirma o frei Marcelo Toyansk Guimarães, especialista em assessoria bíblica pela Escola Superior de Teologia e assessor da Comissão Justiça e Paz da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (seção Sul 1).
A tal recompensa divina seria na vida eterna. “A religiosidade cristã tem essa dinâmica: a perspectiva da salvação”, comenta o religioso.
Mas ele vê uma evolução teológica em correntes evangélicas que se baseiam nesse versículo para fundamentar a teologia da prosperidade. “Aquela ideia de austeridade, de trabalhar bastante e usufruir pouco… Isso vai construindo uma teologia”, comenta.
“A palavra exaltado é muito forte. Quando cresce o neopentecostalismo nos grupos evangélicos nas periferias, o objetivo de se tornar mais abastado, ainda que isso não aconteça de forma tão concreta, cria a tendência de se colocar a fé como algo que vai tirar as pessoas dessa situação”, analisa ele. “Todavia é um empoderamento muito frágil, pois trabalha com o otimismo, mas muitas vezes desconectado das situações históricas.”
Mensagem clara
Toda essa noção ampliada acabou ressignificando a passagem original, cuja mensagem é extremamente direta e profundamente cristã. “O sentido teológico é relativamente simples: o caminho da grandeza é a auto-humilhação diante de Deus e diante dos homens. É a inversão de autoridade presente no Reino de Deus: os grandes são abatidos, enquanto os pequenos são exaltados”, ressalta o teólogo Siqueira. “É uma advertência contra o orgulho e o poder. A grandeza está no serviço, na doação; e não nos títulos e nas glórias humanas. Porém, essa realidade de reversão só acontecerá no fim da história.”
Para o vaticanista Filipe Domingues, doutor em ciências sociais pela Pontifícia Universidade Gregoriana e vice-diretor do Lay Centre, em Roma, é importante lembrar que a mensagem de que “deus vai ao encontro daquele que é humilhado pela sociedade” está presente na religião desde o judaismo.
“O cristianismo reforça isso porque Jesus vai pessoalmente ao encontro da mulher adúltera, do leproso, das crianças… Ele sempre coloca os humilhados em primeiro lugar. Esta é a mensagem política e social”, frisa ele.
E não é à toa que essa mensagem de salvação ecoa por boa parte da Bíblia. São histórias vividas e textos escritos em um cenário de dominação. “As primeiras comunidades cristãs eram pobres e viviam em um contexto de dominação imperialista. A perseguição do Império Romano contra os primeiros cristãos lembrava a opressão babilônica contra a nação de Israel”, comenta Siqueira.
“A frase de Jesus, que ressoa a tradição hebraica, é relembrada no texto de Mateus como a manifestação da esperança de uma reversão do quadro de opressão que a comunidade vivia.”
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