Verão de 2010. A chuva golpeava as janelas. O mar violento batia no casco de aço do navio no meio da noite, e o barulho do vento era ensurdecedor.
O navio porta-contêineres Kota Kado, com 230 metros de comprimento, havia encalhado próximo ao porto de Hong Kong. A tripulação havia sido retirada, mas seu mestre de salvamento, o capitão Nick Sloane, permanecia na ponte da embarcação com seu colete salva-vidas, preparado para o pior. Ele observava a força do tufão que agora, na escuridão, assolava o navio acidentado.
Sloane havia se refugiado com apenas outros cinco membros da equipe de salvamento. Dias antes, eles haviam chegado ao Mar do Sul da China para resgatar o Kota Kado.
Quando a previsão do tempo mostrou que tufões atingiriam o navio encalhado, Sloane tomou a decisão de permanecer a bordo durante a noite com uma equipe reduzida. Ele queria sentir como o navio resistiria à tormenta, para entender onde foi mais atingido. Esta informação serviria para saber que medidas ele tomaria em seguida.
Mas a margem de erro era muito pequena. “Nós quase perdemos o navio naquela noite”, ele conta.
Os navios de carga existentes no mundo transportam cerca de 90% do comércio do planeta, mas nem sempre chegam ao seu destino sem incidentes. Segundo o relatório Safety and Shipping Review, da companhia de seguros Allianz, 27 navios de carga foram perdidos em grandes incidentes em 2021 — e 357, na última década.
Os navios pegam fogo. Eles se chocam contra rochedos, recifes e bancos de areia. Têm problemas mecânicos. Mas nem sempre afundam. Sempre que há uma chance de resgatar um navio grande, seus donos quase sempre aproveitam, uma vez que estes navios podem valer centenas de milhões de dólares.
Os responsáveis pelo resgate de navios já presenciaram eventos extraordinários no mar. Eles foram ao auxílio, por exemplo, do enorme navio porta-contêineres Ever Given, quando ele encalhou e bloqueou o canal de Suez em 2021, prejudicando toda a cadeia global de suprimentos.
Mas quando um navio que pesa dezenas ou centenas de milhares de toneladas fica preso em algum lugar, como você o libera?
O resgate de um navio perdido
Sloane agora é diretor do grupo Resolve Marine. Ele estava voltando para casa de uma partida da Copa do Mundo da África do Sul, em 2010, quando seu telefone tocou. Foi ali que ele soube que o Kota Kado estava com problemas. E voou para Hong Kong no dia seguinte.
A caminho do porto, o Kota Kado havia se chocado com um recife que fez um buraco na lateral do navio. Dois porões de carga começaram a encher de água, e a embarcação começou a afundar até atingir um banco de sedimentos a cerca de 46 km a sudoeste do seu destino.
A proa do Kota Kado encalhou no leito marinho e ficou presa. E, quanto mais a água invadia o navio, mais o peso fazia com que ele afundasse.
Sloane recorda que muita gente não acreditava que o Kota Kado pudesse ser resgatado: “Vários técnicos disseram: ‘OK, o navio está totalmente perdido, preparem-se para remover os destroços”. Mas ele achou que ainda havia uma chance.
“O navio continuou afundando, e a proa afundava de meio metro a um metro, literalmente todos os dias”, ele conta.
“Era arriscado.”
Sloane e seus colegas elaboraram um plano para reduzir a massa do navio e bombear o máximo de água possível de dentro dele. Para isso, eram necessárias balsas equipadas com grandes guindastes.
Por sorte, é assim que as cargas costumam ser descarregadas em Hong Kong, de forma que muitas dessas balsas estavam disponíveis, e seus operadores já estavam acostumados a retirar contêineres dos navios e transportá-los para o porto.
Sloane queria remover o máximo de carga possível. No fim das contas, as balsas tiraram mais de 1,2 mil contêineres.
Este tipo de operação é difícil e demorada, especialmente porque a proa do Kota Kado estava debaixo d’água. Além disso, os contêineres mais leves tendem a ser empilhados no topo, para ajudar a abaixar o centro de gravidade e manter o navio estável. Mas isso também significa que leva mais tempo para atingir os contêineres pesados, cuja remoção realmente faz a diferença.
Depois vieram os snorkels (tubos subaquáticos) gigantes.
Para retirar a água do navio, Sloane e sua equipe depositaram grandes bombas embaixo d’água, no fundo de um dos compartimentos de carga. Eles também removeram as escotilhas do convés superior e soldaram enormes tubos retangulares (snorkels) sobre elas, antes de colocá-las de volta no lugar.
Os snorkels agora estavam suspensos até o bojo do navio. Por fim, uma equipe de mergulhadores conectou as bombas submersas a dois conjuntos de mangueiras estendidos verticalmente por meio dos snorkels.
Sloane relembra que as bombas trabalharam a todo vapor para evitar que a água inundasse a sala de máquinas, que abriga os equipamentos mais caros e sensíveis.
Depois de remover enormes volumes de água do porão, a equipe de salvamento finalmente conseguiu encher alguns dos tanques de lastro do navio com ar, para que ele flutuasse novamente.
Sloane explica que, se eles tivessem tentado fazer isso antes, os tanques poderiam ter rompido.
“Quando você desce a mais de 10 metros de profundidade, é preciso ter muito cuidado com a quantidade de pressão que você introduz.”
Depois de toda essa operação complicada — e apesar de não apenas um, mas dois tufões (e o segundo foi bastante forte) —, o Kota Kado foi resgatado e acabou sendo rebocado até um estaleiro para reparos. Ele ainda navega hoje, mas com outro nome.
A força da natureza
Quando os navios acabam em lugares para os quais não foram projetados, como quando ficam encalhados na lama ou são lançados contra os rochedos, as forças da natureza podem parti-los ao meio. É por isso que as fortes tempestades representaram uma ameaça tão grande para o Kota Kado.
“Como um grampo de papel, quanto mais você dobra, uma hora ele acaba se partindo”, afirma Rosalind Blazejczyk, arquiteta naval e sócia-gerente da empresa Solis Marine Consultants.
Ela explica como é problemático quando um navio encalhado é erguido ou girado por ondas sucessivas, que podem bater nele por horas durante um swell (quando se forma uma ondulação contínua) ou na maré alta, empurrando uma ponta do navio para cima e lançando-a novamente para baixo.
Inesperadamente, o aço parece não ser tão forte nestas situações. Sloane conta que sua equipe às vezes solda enormes vigas ao convés do navio, simplesmente para evitar seu rompimento.
Blazejczyk diz que os especialistas em salvamento, como ela própria, geralmente usam modelos tridimensionais computadorizados do navio que estão tentando salvar, com o objetivo de avaliar melhor os efeitos das forças que estão agindo sobre ele.
“Algumas companhias de navegação possuem serviços de emergência que têm um modelo do navio criado e pronto para uso”, explica.
As equipes de salvamento colocam sensores por todo o casco para determinar como ele se move e flexiona durante a operação. Os dados destes sensores alimentam automaticamente o modelo que, por sua vez, indica quando uma parte específica do navio pode estar em risco de rachar.
A equipe de salvamento também pode utilizar lasers, programados sobre um navio acidentado, para monitorar seu movimento de forma bastante detalhada.
Os reboques que tentam puxar os navios para liberá-los também exercem forças significativas — mas, geralmente, estão longe de ser suficientes para liberar um navio encalhado por conta própria, diz Blazejczyk. Isso porque os reboques enfrentam a chamada força de reação do solo.
Blazejczyk lembra de um navio encalhado que, segundo seus cálculos, a equipe de resgate precisaria de 200 reboques para liberar — uma perspectiva impossível. Em vez disso, as equipes muitas vezes precisam reduzir um pouco o peso das embarcações ou limpar os sedimentos que as prenderam antes que se movam.
‘Colocar ordem no caos’
Às vezes, a pressão para fazer esse trabalho o mais rápido possível é enorme. Quando o Ever Given — um dos maiores navios porta-contêineres do mundo — ficou preso no Canal de Suez, em 23 de março de 2021, ele ficou atravessado em diagonal na hidrovia, bloqueando todo o tráfego.
Foram necessários seis dias para liberá-lo e, durante este período, mais de 200 outros navios foram impedidos de passar, gerando uma fila de embarcações com mais de 100 km de comprimento, esperando para completar a travessia.
Quando um encalhe se torna um bloqueio, a tendência é que ele ganhe muito mais importância. O diretor-gerente da empresa holandesa Multraship, Leendert Muller, relembra o encalhe do navio porta-contêineres CSCL Júpiter em 2017, na saída do porto de Antuérpia, na Bélgica — o segundo maior porto da Europa, atrás apenas de Roterdã, na Holanda.
“Quando o comércio começa a parar ali, ele para também em outros portos da Europa, porque é toda uma cadeia comercial”, explica Muller.
As equipes de resgate que foram ao auxílio do Ever Given, da Boskalis e da sua subsidiária SMIT Salvage, conheciam bem os altos riscos.
“Tentamos colocar ordem no caos”, afirma Richard Janssen, diretor-gerente da SMIT.
Neste caso, a Autoridade do Canal de Suez usou uma draga e escavadoras para remover um enorme volume de lama e areia que estava sob o navio — ao todo, 30 mil metros cúbicos.
O interesse do público pelo incidente foi tão grande que as pessoas começaram a compartilhar brincadeiras e memes sobre o Ever Given nas redes sociais. Muitos brincavam com a draga aparentemente minúscula fotografada retirando a areia em volta da enorme proa do navio. O veículo pertencia à Autoridade do Canal de Suez, não à Boskalis, nem à SMIT.
“A escavadora parecia engraçada porque é relativamente pequena em comparação com o tamanho do navio, mas, na verdade, ela fez um trabalho relativamente bom”, afirma Janssen.
Ele explica que a remoção de parte do barro daquela área ajudou a garantir que o Ever Given tivesse espaço suficiente para oscilar livremente durante a operação de flutuação.
E a dragagem também é uma operação complexa. É mais fácil retirar a areia, segundo Janssen, enquanto a lama pode ser mais resistente.
Em março, outro navio de propriedade da companhia Evergreen atolou na lama na Baía de Chesapeake, no litoral nordeste dos Estados Unidos. A SMIT foi novamente chamada para resgatar o Ever Forward, junto com a empresa local Donjon Marine.
Os esforços iniciais para rebocar o navio até liberá-lo não foram bem-sucedidos, de forma que a equipe de resgate começou a retirar os contêineres um a um.
Ao todo, 510 contêineres de 40 pés foram retirados — embora, curiosamente, esta seja apenas uma fração da carga do navio, que pode transportar milhares destes contêineres.
A combinação da remoção da carga, dragagem e redução dos níveis de água de lastro no interior do navio, entre outras técnicas, acabou conseguindo liberar o Ever Forward um mês depois do encalhe.
Os riscos causados pelo fogo
Os cenários de encalhe são pesadelos para a navegação, mas os incêndios estão entre os maiores perigos em alto mar. Mesmo com toda a água ao seu redor, pode ser difícil apagar o fogo no meio do oceano. Os navios transportam combustível e, às vezes, carga explosiva ou altamente inflamável — por isso, os riscos são imensos.
Nos últimos anos, navios que transportavam automóveis estiveram particularmente vulneráveis a incêndios, pois problemas de funcionamento ou curtos-circuitos geraram chamas a bordo. Por isso, as baterias de íons de lítio (especialmente as dos veículos elétricos) são consideradas agora um risco cada vez maior para os navios de carga, segundo as companhias de seguro.
Em 2018, o gigantesco porta-contêineres Maersk Honam, com 353 metros de comprimento, pegou fogo no Mar Arábico, a caminho do Canal de Suez. Tragicamente, cinco marinheiros perderam a vida no incidente. Mas 22 tripulantes sobreviveram — e o navio também foi recuperado, graças aos esforços da SMIT Salvage.
“Foi um incêndio muito forte na parte frontal do navio e, é claro, você avalia: ‘Como esse incêndio vai evoluir ao longo do tempo?'”, explica Richard Janssen.
Manter o fogo controlado na frente do navio evitou danos à sala de máquinas e às acomodações na parte de trás. Foi o maior incêndio que a SMIT já precisou combater em alto mar, segundo Janssen.
O fogo queimou a bordo por um mês, mas a equipe de resgate conseguiu controlá-lo e acabou por extingui-lo depois de rebocar o navio para um porto em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos.
Posteriormente, em um estaleiro, toda a proa do Honam foi removida, e uma nova proa foi instalada para que pudesse voltar a navegar com um novo nome, Maersk Halifax, pouco mais de um ano após o incêndio.
Rosalind Blazejczyk afirma que uma das dificuldades para combater um incêndio em um navio é o fato de que, embora a água seja essencial para controlar o fogo, você não quer encher completamente os porões da embarcação para que não fique instável ou simplesmente afunde.
Além disso, o fogo pode danificar os recipientes de combustível a bordo, causar explosões e descarregar imensas quantidades de contaminantes no mar.
O óleo combustível e a água poluída que ficam no mar após os incêndios nos navios precisam ser recuperados e tratados, segundo o capitão John Simpson, colega de Blazejczyk na Solis.
“Os custos podem atingir a casa dos milhões”, acrescenta.
Os acidentes podem ficar mais sérios?
Leendert Muller afirma que a tecnologia de navegação avançou nos últimos anos, o que significa que as colisões e encalhes de navios devem ficar menos comuns, em média, ao longo do tempo. Mas a desvantagem é que os navios porta-contêineres ficaram significativamente maiores e mais difíceis de manejar nos últimos 10 ou 20 anos.
Hoje, a capacidade de transporte de contêineres dos maiores navios do mundo é 15 vezes maior que no final dos anos 1960.
O maior porta-contêineres do mundo — o Ever ACE — possui capacidade de 23.992 TEUs (unidades equivalentes a contêineres de 20 pés) e tem 399 metros de comprimento, enquanto o Encounter Bay, que entrou em serviço em 1969, tinha 227 metros de comprimento e podia transportar 1.578 TEUs.
Com o aumento do tamanho, o impacto dos encalhes também está crescendo, observa Muller. E, de acordo com Nick Sloane, está ficando mais difícil salvar os navios maiores de incêndios ou quando eles atingem bancos de areia e lama.
A preocupação é que as equipes de resgate enfrentem cada vez mais obstáculos que podem ser simplesmente grandes demais para superar.
E ninguém sabe quais seriam os impactos para as cadeias globais de fornecimento se os navios continuarem tendo problemas em canais de alto tráfego ou na saída de portos importantes.
“Ao longo de Hong Kong, você conseguiu colocar as balsas ao redor (do navio). Na Baía de Chesapeake, conseguiram colocar as balsas”, relembra Sloane, se referindo ao Kota Kado e ao Ever Forward.
Mas ele adverte que existe o risco de que, algum dia, um dos grandes porta-contêineres venha a encalhar em um local que seja muito mais difícil de acessar desta maneira durante uma operação de resgate.
“Vai ser um desafio”, afirma ele.
“Acho que vai acontecer.”
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