- Author, Fernando Duarte
- Role, BBC World Service
Ella Scott e Alyssa Hoy estavam apenas tentando concluir o ensino médio — até que encontraram sua vocação: defender o direito de escolher quais livros ler.
A mãe de Hoy, que é professora, disse a elas em dezembro de 2021 que as autoridades educacionais de Leander, cidade do estado do Texas, estavam proibindo vários livros de instituições acadêmicas, alegando que haviam recebido “reclamações” dos pais.
A conversa levou as duas adolescentes a iniciar um clube de leitura de livros proibidos.
Desde então, muitos mais surgiram nos Estados Unidos em resposta à crescente censura de obras literárias em escolas e bibliotecas públicas.
“Não tínhamos ideia do que estava acontecendo com a proibição e sentimos que algo precisava ser feito para aumentar a conscientização”, disse Scott, de 17 anos, à BBC.
“É definitivamente desconcertante pensar que isso está acontecendo em um lugar como os Estados Unidos, onde temos uma cultura de liberdade.”
O clube do livro de Scott e Hoy começou com um grupo de meninas em sua classe e depois cresceu para incluir alunos da Vandergrift High School, uma escola estadual com 2.709 alunos.
“As pessoas vêm de diferentes classes e origens. É ótimo ouvir as várias conversas que surgem quando falamos sobre um assunto que afeta a todos nós”, acrescenta Hoy, também de 17 anos.
Milhares de livros proibidos
Leander está longe de ser um caso isolado em que as autoridades educacionais restringiram o acesso a obras literárias consideradas polêmicas.
A American Library Association informou em março que os pedidos de retirada de livros de escolas e bibliotecas públicas em 2022 atingiram o maior número desde que os registros começaram, há 20 anos.
Em seu relatório mais recente, cobrindo o ano letivo de 2021-2022 nos EUA, a PEN America, uma ONG com sede em Nova York que rastreia a censura de livros, relatou que mais de 2.500 proibições de livros foram emitidas por distritos escolares em 32 estados.
A PEN America estima que essas decisões afetaram cinco mil escolas e quase quatro milhões de alunos.
O estado do Texas, onde Scott e Hoy moram, teve o maior número de proibições de livros (801), seguido pela Flórida (566) e Pensilvânia (457).
Os números podem aumentar ainda mais nos EUA.
No final de março, a Câmara dos Representantes, liderada pelos republicanos, aprovou uma legislação conhecida como Declaração dos Direitos dos Pais, que, segundo os críticos, daria aos pais o direito de veto sobre os livros no sistema escolar.
O projeto ainda precisa passar pelo Senado, que tem maioria democrata.
“É natural que sempre haja alguém que se sinta desconfortável com determinados tópicos”, diz Scott. “Mas isso não é necessariamente uma razão para remover os livros ou tirar a oportunidade de outros formarem sua própria opinião.”
‘Tentando silenciar a verdade’
A maioria dos pedidos de proibição envolve obras que lidam com identidade racial e sexual.
A PEN America diz que, dos mais de 1.600 títulos que sofreram algum tipo de censura de 2021 a 2022, mais de 80% apresentavam pessoas proeminentes LGBTQ ou não brancas.
Um desses livros foi All Boys Aren’t Blue (Nem todos os garotos são azuis, em tradução livre), de George M. Johnson, um livro de memórias sobre crescer negro e queer, que se tornou o terceiro título mais banido pelas autoridades escolares.
“Toda vez que você escreve um livro em que fala sobre sua verdade, haverá pessoas que querem silenciá-lo”, disse Johnson em uma entrevista em 2022 à rádio pública americana NPR.
O escritor e jornalista, que usa os pronomes neutros, acredita que o currículo ensinado na maioria dos sistemas escolares americanos ainda é fortemente voltado para o adolescente branco, masculino e heterossexual, e que as pessoas que tomam essas decisões têm dificuldade em aceitar a diversidade.
“É como, ‘Oh meu Deus, quão perigoso seria para adolescentes brancos aprenderem sobre outras pessoas na sociedade?'”
Mas a censura também afeta textos básicos que são lidos por estudantes americanos há décadas.
Um exemplo é To Kill a Mockingbird (O Sol é Para Todos, na tradução publicada no Brasil), romance vencedor do Prêmio Pulitzer de Harper Lee publicado em 1960 que explora a injustiça racial nos EUA. Foi banido pelos distritos escolares de Oklahoma e Carolina do Norte em 2021.
Organizações que defendem a liberdade de expressão argumentam que a frequência e o volume de objeções se intensificaram devido à polarização política desencadeada após as disputadas eleições presidenciais de 2016 e 2020 nos EUA.
A PEN America diz que identificou pelo menos 50 grupos que defendem as proibições nos níveis local, estadual e nacional. A maioria, diz a ONG, parece ter se formado em 2021.
“Pais e membros da comunidade desempenham um papel importante na formação do que os alunos aprendem na escola”, disse Suzanne Nossel, diretora executiva da PEN America, em um comunicado.
“Mas isso vai muito além das expressões orgânicas de preocupação ou da troca normal entre pais e educadores em um ambiente escolar saudável”.
Além disso, as regras sobre quem pode questionar um determinado livro variam em cada distrito escolar.
Alguns até permitem que pessoas que não são pais de alunos expressem suas preocupações.
Confrontando as autoridades
Scott e Hoy querem que suas vozes sejam ouvidas neste debate.
Um dos livros discutidos recentemente em sua reunião de clube é outro título frequentemente banido, Out of the Darkness (Fora da escuridão, em tradução livre), de Ashley Hope Perez, um romance centrado na história de amor entre um adolescente mexicano-americano e um adolescente afro-americano na década de 1930 no Texas.
“É tão estranho que em uma sociedade tão individualista como a dos Estados Unidos haja pessoas tentando eliminar histórias que mostram diferentes individualidades”, diz Hoy.
“Isso cria um tipo de pessoa ‘ideal’ que você deveria ser. É assustador crescer em tempos assim.”
As adolescentes do Texas fazem parte de um movimento de base que está fazendo mais do que desafiar as proibições de livros lendo-os.
No Missouri, dois estudantes levaram o distrito escolar de Wentzville ao tribunal no ano passado por uma decisão de remover oito livros considerados “obscenos”, incluindo O Olho Mais Azul de Toni Morrison, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura de 1993.
Sete títulos foram devolvidos voluntariamente às bibliotecas escolares pelas autoridades educacionais.
Outro caso que ganhou as manchetes nos EUA foi um protesto de longa data de estudantes do ensino médio na Pensilvânia em 2021 sobre a decisão de restringir o acesso a mais de 300 livros, filmes e artigos ligados principalmente a autores negros e latinos.
Campanhas para facilitar o acesso a obras específicas também fazem parte desse movimento.
Na Flórida, o ativista e poeta Adam Tritt criou a Fundação 451, que compra livros proibidos e os distribui em locais públicos como cafeterias e sorveterias.
“Distribuímos quase 3.000 desses livros para crianças e jovens, e meu sonho é arrecadar mais fundos para fazer o mesmo em todo o país”, disse Tritt, de 58 anos, à BBC.
Tritt, professor de inglês de uma escola secundária na cidade de Palm Bay, iniciou a campanha em maio do ano passado após receber uma mensagem das autoridades locais de educação solicitando a retirada de dois livros de sua turma (O Caçador de Pipas, de Khaled Hosseini e Matadouro Cinco, de Kurt Vonnegut) porque as obras foram consideradas “pornográficas” e “anti-cristãs” .
“Sinais de alarme dispararam na minha cabeça e eu soube imediatamente que uma ação era necessária.”
Tritt diz que sua campanha provoca dois tipos de reações: por um lado, agradecimentos dos jovens, alguns da comunidade LGBTQ , e de seus pais. Do outro, raiva de pessoas que se opõem à iniciativa.
“Eles me insultam e me acusam de pedofilia. Muitas vezes recebo ameaças de morte”, acrescenta o professor.
Ele diz que é importante aumentar a conscientização para uma causa que, ironicamente, a maioria dos americanos apoia em princípio.
Pesquisas nacionais mostram que a maioria das pessoas de todas as convicções políticas se opõe às proibições.
O problema, acredita Tritt, é que essa maioria não está envolvida no debate.
“Por isso é importante ver os jovens protestando. Eles podem ainda ser jovens demais para votar e mudar a lei, mas já estão lutando.”
Isso é música para os ouvidos das estudantes do Texas Ella Scott e Alyssa Hoy e seu clube de livros proibidos.
“Estamos assumindo uma posição em um debate que achamos que está acontecendo principalmente nas reuniões do conselho escolar e sendo criado por pais que não querem que seus filhos leiam determinado livro”, diz Scott.
“Tudo bem se sentir desconfortável e não ler um livro. Mas tirar isso de todo mundo não é justo”, acrescenta Hoy.
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