- Por Alessandra Bonomolo e William McLennan
- BBC News
O rádio fervilhava de estática enquanto um dos superiates mais caros do mundo entrou pela névoa na baía de San Diego, nos Estados Unidos.
Na popa, a bandeira americana tremulava sobre a suntuosa piscina de mosaico do Amadea.
O iate de US$ 325 milhões (cerca de R$ 1,7 bilhão) havia passado a maior parte do tempo visitando portos pitorescos do Mediterrâneo. Agora, sob o controle das autoridades americanas, ele se dirigia a um cais de concreto cinza em um porto de uso industrial.
É o troféu mais luxuoso ostentado pela força-tarefa que, nas palavras do presidente americano, Joe Biden, foi formada para confiscar os “ganhos ilícitos” de oligarcas russos.
A BBC teve acesso exclusivo aos bastidores do confisco desse superiate.
A busca
Enquanto os mísseis caíam sobre a Ucrânia nos primeiros dias da guerra, o procurador americano Andrew Adams estava no seu escritório em Nova York com uma relação de bilionários ligados ao Kremlin e seus bens de luxo.
Mas parecia que o tempo estava se esgotando. Em um mapa digital do tráfego marítimo, ele podia ver superiates ligados a oligarcas em uma corrida em busca de segurança, navegando para países onde, segundo ele suspeitava, seus proprietários acreditavam estar livres de sanções.
Entre os opulentos alvos flutuantes, destacava-se um “superiate”.
O Amadea tem aproximadamente o comprimento de um campo de futebol, com um heliporto na proa e uma piscina de 10 metros na popa. O seu interior inclui uma academia de ginástica, salão de beleza, cinema e adega. Existem cabines de luxo para 16 convidados e acomodações para 36 tripulantes, que atendiam todas as necessidades dos hóspedes.
À distância, o iate parece a ponta de um iceberg. Linhas limpas e elegantes, além de uma fachada branca e brilhante, parecem projetar uma imagem de pureza cristalina.
As despesas com a simples manutenção do Amadea são imensas. O custo anual é estimado em 25 milhões de libras (cerca de R$ 157 milhões) ou mais. Mas quem é seu dono? E de onde veio o dinheiro para bancar essa ostentação toda, traduzida nos pisos de mármore e convés de madeira de teca?
Investigadores americanos afirmam que o proprietário do iate é o bilionário e senador no Parlamento russo Suleiman Kerimov – que nega ser dono da embarcação.
Ele tem 56 anos de idade e é um dos homens mais ricos da Rússia, segundo a revista Forbes, que estima o patrimônio dele e da sua família em US$ 12,4 bilhões (cerca de R$ 66,3 bilhões). Ele fez fortuna após a queda da União Soviética, comprando grandes participações em empresas russas, incluindo os maiores produtores de gás e ouro do país.
Os Estados Unidos impuseram sanções a Kerimov em 2018. O Reino Unido acompanhou as medidas em março, assim como a União Europeia, que afirmou que ele havia implementado ou apoiado políticas que prejudicam a independência, a estabilidade e a segurança da Ucrânia.
A lista de membros da elite russa proibidos de gastar sua fortuna em países ocidentais vinha crescendo desde 2014, quando os governos tentaram isolar o presidente russo Vladimir Putin após a anexação da Crimeia. E, quando os tanques russos invadiram a Ucrânia em fevereiro, veio um novo escrutínio das atividades de oligarcas.
“Estamos nos associando aos aliados europeus para encontrar e confiscar os seus iates, apartamentos de luxo e aviões privados”, anunciou o presidente Biden em 1° de março.
Adams – procurador do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, um homem magro de olhos azuis – foi nomeado chefe de uma nova força-tarefa, denominada KleptoCapture, dedicada a executar as sanções americanas. Ele planejou usar sua experiência no combate ao crime organizado para fazer cumprir o compromisso do presidente.
Com táticas desenvolvidas na luta contra a Máfia, a força-tarefa – que inclui agentes e analistas do FBI e do Serviço Secreto dos Estados Unidos – pretende identificar alvos de alto escalão, encontrar provas de descumprimento de leis e então “confiscar ativos da forma mais rápida e agressiva possível”, segundo ele.
Mas, duas semanas depois do início da invasão na Ucrânia, Adams conseguiu ver o Amadea “tentando fugir de águas onde normalmente poderíamos confiscá-lo”.
“A coisa ficou mais crítica quando ele desligou seu monitor de localização, seu transponder”, ele conta. “Basicamente, o navio tentou navegar no escuro.”
A fuga
Em 12 de março, o Amadea saiu da ilha de Antígua, no Caribe, e atravessou, cinco dias depois, o Canal do Panamá, parando rapidamente no México antes de se aventurar pelo Oceano Pacífico, em 25 de março.
Depois de mais de 15 dias no mar, ele chegou a Fiji. O iate estava programado para partir para as Filipinas em 48 horas, mas os EUA acreditavam que seu verdadeiro destino fosse Vladivostok, um porto russo perto da fronteira com a China e a Coreia do Norte.
Adams conta que, enquanto o Amadea navegava pelo Pacífico, os investigadores americanos procuravam evidências de violação das sanções que pudesse ser usada como “gancho” para confiscar o iate.
O objetivo era provar que Kerimov era o dono da embarcação e que foram usados dólares americanos na sua compra, abastecimento ou manutenção.
Rastrear o verdadeiro dono de um superiate exige mais que uma busca no Google, segundo Adams. “Pode ser extremamente difícil desvendar quem é o dono desses navios.”
A propriedade muitas vezes é escondida por trás de empresas de fachada e fundos, registrados em países onde a informação é “rigidamente controlada e não é algo a que os Estados Unidos possam sempre ter fácil acesso”, afirma.
Mas a guerra da Rússia gerou um “boom de informações” compartilhadas por países estrangeiros, incluindo aqueles que “historicamente eram considerados pouco transparentes” – locais onde é difícil investigar a propriedade das empresas, segundo Adams.
Foram necessárias várias investigações em um período curto. Adams conta que membros da força-tarefa entrevistaram fontes que conheciam as finanças do navio e examinaram extratos bancários e registros de empresas.
“Conseguimos obter as informações, em parte, porque houve uma enorme onda de apoio à Ucrânia e a estes esforços”, afirma Adams.
Os documentos judiciais americanos indicam que os investigadores descobriram provas que demonstram, segundo eles, que Kerimov era o dono do navio desde agosto de 2021 – três anos depois de ele sofrer as primeiras sanções do Tesouro americano.
“Descobrimos que Kerimov é o dono da embarcação e que ele detinha valores substanciais em dólares americanos que financiaram o navio ao longo dos anos, violando as sanções dos Estados Unidos”, afirma Adams.
Quando o iate atracou em Fiji, as autoridades locais buscaram o Amadea e encontraram registros de transações financeiras remontando a quatro meses antes. Horas depois, com mais esta informação, os agentes do FBI pediram a um juiz americano a ordem de confisco do navio.
O FBI relacionou suas razões para acreditar que Kerimov era o “verdadeiro dono e beneficiário” do iate, apesar de vários detalhes terem sido censurados em uma cópia publicada pelo governo americano.
Representantes de Kerimov negaram que ele fosse dono do Amadea.
Uma semana depois que o navio chegou ao arquipélago no Pacífico, um advogado local interveio em nome de uma companhia formalmente registrada como proprietária do superiate.
A ação levou a uma disputa judicial que durou sete semanas, já que os recursos contra a ordem de confisco chegaram até a Suprema Corte de Fiji.
O advogado argumentou que não havia provas de que a aquisição do iate tivesse sido feita com rendimentos de atividade criminosa e afirmou que, na verdade, ele pertencia a outro oligarca bilionário russo.
O ‘outro dono’
Eduard Khuadainatov é o antigo CEO da gigante estatal russa do petróleo Rosneft. A União Europeia impôs sanções a ele em junho, afirmando que Khuadainatov agora era dono de uma das maiores empresas petrolíferas privadas da Rússia. Ele não sofre sanções dos Estados Unidos.
O advogado afirmou ao tribunal de Fiji que havia “provas inquestionáveis” de que Khuadainatov era o dono do Amadea. Ele também é o proprietário declarado de um iate de US$ 700 milhões (cerca de R$ 3,75 bilhões) ligado a Putin, que foi confiscado pelas autoridades italianas. Mas os Estados Unidos afirmam que ele é um “laranja”, usado para ocultar a identidade dos verdadeiros proprietários.
Adams disse ser “totalmente improvável um empresário de nível médio possuir vários iates de meio bilhão de dólares”. Khuadainatov não respondeu aos pedidos de comentários feitos pela BBC.
Agentes do FBI voaram para Fiji enquanto o Amadea estava atracado nas águas azul-turquesa do arquipélago no início de maio.
Sob o sol escaldante, uma fila de homens em ternos escuros abordou o navio enquanto membros da tripulação vestidos de camisas polo brancas aguardavam no convés.
Os agentes descobriram que “parecia um iate de luxo que esteve em uma corrida em alta velocidade através do Pacífico”, segundo Adams. Ele havia “enfrentado muitas dificuldades”.
No seu interior, eles encontraram mobiliário ornamentado, incluindo candelabros, ornamentos dourados e obras de arte de alto valor.
A força-tarefa ainda está calculando o valor total dos objetos de luxo e a autenticidade das peças mais relevantes ainda está sob investigação.
Entre eles, um item notável se destaca: um objeto que parece um raro ovo Fabergé. Apenas algumas dezenas deles foram produzidos para a família imperial russa e eles se tornaram símbolos de poder e opulência.
“Talvez seja um ovo Fabergé real, talvez não”, afirma Adams. “O tempo dirá.”
Depois de cerca de dois meses atracado ao lado de contêineres, a justiça de Fiji permitiu que os EUA confiscassem o navio. O confisco virou um espetáculo internacional.
Após a decisão em junho, o chefe de polícia da ilha posou para fotografias no convés com autoridades da Embaixada americana, com a bandeira dos Estados Unidos tremulando sobre sua cabeça.
O navio, que navegava com as cores das ilhas Cayman, agora estaria sob a bandeira americana.
Mas, antes que o iate pudesse partir para os Estados Unidos, Adams decidiu substituir a tripulação. “Precisávamos de uma tripulação na qual pudéssemos confiar”, ele conta.
Após três semanas de viagem, o Amadea chegou aos EUA. Ele entrou na baía de San Diego, na Califórnia, no dia 27 de junho. Foi um momento de orgulho para a força-tarefa, mas era “apenas o começo de um processo aqui nos Estados Unidos”, afirma Adams. “Não é o fim.”
Para os Estados Unidos, o objetivo é vender o barco. “Para fornecer fundos para a Ucrânia”, segundo Adams. Mas, primeiro, é preciso convencer um tribunal de que Kerimov é o verdadeiro dono do iate e que foram violadas sanções para pagar pelo navio.
Para preparar o caso, os investigadores estão analisando “terabytes de dados”, incluindo registros bancários e inúmeras comunicações eletrônicas, enquanto linguistas especializados no idioma russo pesquisam documentos financeiros.
Não é o único superiate capturado na rede da força-tarefa. Dias antes da chegada do Amadea a Fiji, agentes do FBI e a polícia espanhola confiscaram o navio Tango, de US$ 90 milhões (cerca de R$ 481 milhões), de propriedade do bilionário Viktor Vekselberg, que também sofreu sanções.
O Tango segue atracado em Mallorca, na Espanha, mas Adams espera que ele também possa ser vendido para ajudar na reconstrução da Ucrânia.
Na Europa, especialistas em segurança vêm seguindo atentamente a saga do Tango e do Amadea. Eles revelam uma diferença importante entre os métodos de execução legal nos dois lados do Atlântico.
Diversos superiates ligados a oligarcas estão sendo retidos nos Estados Unidos e um no Reino Unido, mas os navios foram congelados e não confiscados.
“Em princípio, se você simplesmente congela um bem, ele irá retornar para o proprietário em algum momento. Se ele for confiscado, eles o perdem para sempre”, afirma Tom Keatinge, diretor do Centro de Estudos sobre Segurança e Crimes Financeiros do Royal United Services Institute de Londres.
Enquanto os Estados Unidos têm leis antigas para combater o não-cumprimento de sanções e confiscar ativos, Keatinge afirma que as autoridades de Londres e de Bruxelas, na Bélgica (sede da União Europeia), estão “tentando elaborar mecanismos legais” que permitam confiscar ativos que foram inicialmente congelados.
Desde a invasão da Ucrânia pela Rússia, o Reino Unido impôs sanções a pelo menos 1,2 mil pessoas, incluindo mais de 120 oligarcas, com patrimônio líquido somado estimado em mais de 130 bilhões de libras (cerca de R$ 815 bilhões). Mas as ações tomadas concentraram-se no congelamento de bens.
Em março, o então ministro dos Transportes do Reino Unido, Grant Shapps, filmou um vídeo caseiro ao lado de um iate chamado Phi, avaliado em 38 milhões de libras (cerca de R$ 238 milhões), no dia em que o navio foi retido em Londres pela Agência Nacional do Crime.
Ele afirmou que a medida havia “transformado um ícone do poder e riqueza da Rússia em um aviso claro e absoluto para Putin e seus amigos”.
Para a detenção do Phi, no entanto, o Reino Unido fez uso de uma lei com escopo mais amplo que as usadas pelos seus aliados estrangeiros.
O dono do navio, Sergei Naumenko, não está em nenhuma lista de sanções. E, ainda assim, segundo a lei britânica, os navios podem ser detidos simplesmente por serem de propriedade ou operados por alguém ligado à Rússia.
O capitão do iate, Guy Booth, afirmou que Naumenko “certamente não é um oligarca, nem um amigo pessoal próximo de Vladimir Putin, como se afirmou. Se este fosse o navio de um oligarca, ele seria quatro vezes maior”.
Booth afirma que a operação pareceu “encenada” para ter publicidade, acrescentando que Shapps parecia estar “posando como um grande caçador que havia acabado de atirar em um leão”.
O Departamento de Transporte britânico afirma que mantém firmemente sua decisão de deter o Phi, acrescentando que o Reino Unido “continuará a agir dentro dos seus poderes constituídos para acelerar a pressão econômica sobre a Rússia e tornar a vida mais difícil para as elites russas”.
Booth permanece otimista e acredita que “um dia, acabaremos saindo do Tâmisa”.
Enquanto os governos ocidentais lutam para confiscar bens congelados, Adams espera que outros países sigam sua abordagem “agressiva” sobre os confiscos.
“Queremos que seja o mais difícil possível para as pessoas se beneficiarem da corrupção na Rússia e, ao mesmo tempo, viverem com luxo fabuloso no Ocidente”, afirma ele.
No ano anterior à invasão, o Amadea passou a maior parte do tempo na Europa. Ele ancorou no litoral de Mônaco, em Marselha (na França) e em Montenegro, segundo estudos do provedor de dados e análises Spire Global para a BBC.
Hoje, ele está ancorado ao lado de um movimentado terminal de carga ocupado por enormes navios cargueiros enferrujados, usados para o transporte de carros. Perto do ancoradouro fica um parque público e habitantes locais vêm compartilhando fotos do seu novo e glamouroso vizinho nas redes sociais.
“Eles deviam abrir o navio para os sem-teto da região”, comentou uma pessoa. Já outra disse: “Espero que eles o vendam para ajudar os refugiados ucranianos”.
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