- Author, Marianna Spring
- Role, Correspondente de mídia social e desinformação da BBC
- Twitter, @mariannaspring
Nos primeiros dias da guerra entre Israel e o grupo militante palestino Hamas, dois meninos, ambos de quatro anos, foram mortos.
Um era israelense, outro palestino. Mas muitos posts nas redes sociais não demonstravam luto pelas mortes — em vez disso, tentavam negar que elas tivessem ocorrido.
Omer Siman-Tov e Omar Bilal al-Banna viviam a cerca de 23 km de distância um do outro, o primeiro, em Israel; o segundo, em Gaza.
Eles nunca se conheceram, mas ambos adoravam brincar ao ar livre com os irmãos.
Tanto de um lado quanto do outro, familiares, amigos e testemunhas que localizei contam uma história trágica.
O israelense Omer Siman-Tov foi morto quando o Hamas atacou a sua casa no kibutz Nir Oz, em 7 de outubro.
Já o palestino Omar Bilal al-Banna foi morto quatro dias depois, em decorrência de um ataque aéreo israelense em Zeitoun, a leste da cidade de Gaza.
A forma como as mortes dos meninos foram negadas pelos usuários das redes sociais expõe as dimensões da batalha de informação que ocorre em paralelo ao atual conflito.
Temos visto tentativas descaradas de minimizar ou negar a violência cometida contra crianças.
Essas falsas alegações chocaram familiares e amigos que lamentam a perda dos seus entes queridos — e de pessoas que testemunharam o que aconteceu.
‘Não é um bebê de verdade, é um boneco’
“A vela da minha vida” é como a mãe de Omar Bilal al-Banna, Yasmeen, descreve seus filhos no Instagram.
Dois fotógrafos me colocaram em contato com ela e comparei seus perfis nas redes sociais com os detalhes de que dispunha para confirmar sua identidade como mãe de Omar.
Omar estava brincando ao ar livre com seu irmão mais velho, Majd, quando foi morto. Vi imagens em que Majd confirma isso.
No vídeo, Majd descreve como o ataque atingiu a casa do vizinho e, na sequência, como os escombros caíram sobre Omar. Majd também ficou ferido. Ele aparece na gravação com sua perna enfaixada e parece estar em estado de choque.
A primeira postagem que vi sobre a morte de Omar foi de uma conta pró-israelense no X (anteriormente conhecido como Twitter). Ela incluía um vídeo mostrando um homem de camisa polo cinza segurando o corpo de uma criança pequena, enrolado em um cobertor ou pano branco. Mais tarde, eu descobriria que essa criança era Omar.
O usuário que compartilhou o clipe escreveu: “O Hamas está desesperado!”, para logo depois acrescentar que o grupo extremista — classificado como organização terrorista por Israel, Reino Unido e outras potências ocidentais — tinha “divulgado um vídeo mostrando um bebê palestino morto”.
Segundo o autor da postagem, isso “expõe o quão duro trabalha o braço de propaganda mentirosa e caluniosa do Hamas e dos palestinos”.
Em seguida, sugeriu que as contas do Hamas compartilharam e excluíram o vídeo porque ele não era real.
Segundo o X, o post contendo o vídeo e alegações falsas foi visto 3,8 milhões de vezes.
As alegações foram então amplificadas por um post do governo de Israel na mesma rede social.
Ela incluía o mesmo vídeo da criança no cobertor branco — e depois uma foto da mesma gravação, circulando o rosto dela.
Na legenda, estava escrito: “O Hamas acidentalmente postou um vídeo de um boneco (sim, um boneco) sugerindo que ele fazia parte das vítimas causadas por um ataque das Forças de Defesa de Israel”.
Nas horas que se seguiram, outras contas oficiais do governo israelense no X — incluindo perfis pertencentes às embaixadas de Israel na França e na Áustria — repostaram o conteúdo.
Em pouco tempo, o post viralizou, e as informações passaram a ser compartilhadas por contas pró-Israel e anti-Hamas baseadas em Israel, bem como por várias outras que pareciam estar baseadas na Índia.
As postagens repetiam a alegação falsa de que a criança era um boneco. Eu assisti à gravação mais longa, e fica claro que se trata de uma pessoa real.
Rastreei, então, a procedência do vídeo original, o que me levou ao perfil de um fotógrafo palestino, Moamen El Halabi, no Instagram.
Foi ele quem filmou o homem de camisa cinza segurando Omar.
Liguei, então, para El Halabi.
Também fiz contato com outro fotojornalista, Mohammed Abed — que trabalha para a agência de notícias AFP — que estava lá na mesma hora.
Ele tirou uma fotografia do mesmo homem segurando o que parece ser a mesma criança, embrulhada no cobertor branco. A imagem podia ser acessada pelo banco de dados da agência Getty Images que tem, entre seus principais clientes, veículos de comunicação ao redor do mundo, como a BBC.
A legenda que acompanha a foto de Abed descreve a cena “fora do necrotério do Hospital Al-Shifa, na cidade de Gaza”.
A data é de 12 de outubro de 2023 — mesmo dia em que o clipe foi compartilhado no Instagram por Moamen El Halabi.
Outras organizações de verificação de fatos, como a Alt News, também rastrearam a origem das fotos e vídeos originais.
Ambos os fotojornalistas me forneceram mais detalhes para corroborar que o vídeo e a foto foram feitos no hospital Al-Shifa, fora do necrotério.
Os detalhes incluíam informações sobre a situação do hospital naquele dia e o homem de camisa cinza, que era parente de Omar.
Os dois me disseram, categoricamente, que a criança retratada não era um boneco, mas um menino de verdade — Omar Bilal al-Banna.
Eles também compartilharam comigo imagens adicionais, que comparei com o vídeo original de Moamen El Halabi para verificar a identidade da criança.
Desde que conversamos, Mohammed Abed postou uma história no Instagram com a foto que tirou. Ele escreveu na legenda: “Esta foto [não é] um boneco, é [uma] que tirei no hospital Al-Shifa e é a pura verdade”.
Parece que parte do que fez as pessoas pensarem que o que viram era um boneco, e não uma criança, foi a cor da pele de Omar na fotografia. Mas Abed disse que fotografou várias crianças mortas em ataques em Gaza e que a cor da pele de Omar era semelhante à delas.
A mãe de Omar, Yasmeen, confirmou que o seu filho foi morto num ataque aéreo israelense, acrescentando que as mentiras sobre a “matança de crianças e pessoas inocentes são falsas”.
“Eles não têm o direito de dizer que ele é um boneco”, disse ela.
“Eles [o governo israelense] estão mentindo e se esquivando de seus crimes e massacres”, acrescentou ela.
Um porta-voz da embaixada de Israel no Reino Unido não comentou diretamente estas publicações nas redes sociais ou as circunstâncias da morte de Omar. Ele disse que “é muito importante analisar os casos de desinformação”, mas também acusou a BBC de espalhar desinformação.
O X não respondeu aos pedidos de comentários da BBC.
‘Ator pago’
“Omer era apenas um anjo. Ele era tão, tão lindo, fofo e puro. Ele era muito próximo de suas irmãs. Elas sempre brincavam juntas e eram muito gentis com ele”, me contou Mor Lacob, amiga da família Siman-Tov.
Ela enviou aos Siman-Tovs mensagens no WhatsApp na ensolarada manhã do sábado 7 de outubro, quando homens armados do Hamas romperam a cerca entre Gaza e Israel e atacaram o kibutz onde a família vivia.
Segundo Mor, eles lhe confirmaram que haviam conseguido entrar no abrigo, mas essa foi a última vez que ela teve notícias deles.
Outras mensagens enviadas aos amigos não foram lidas.
Mor descobriu mais tarde que Tamar e Yonatan, os pais de Omer, foram mortos a tiros. Seus três filhos — Omer e suas irmãs mais velhas, Shachar e Arbel — foram mortos quando sua casa foi incendiada. Suas mortes viraram notícia nos principais meios de comunicação.
A imagem foi compartilhada pela conta do governo israelense no X, que escreveu: “uma família inteira exterminada pelos terroristas do Hamas. Não há palavras. Que a sua memória seja uma bênção”.
O post também foi compartilhado pelo ex-primeiro-ministro de Israel, Naftali Bennett.
Mas quando li os comentários — embora muitos falavam do terrível choque e ofereciam apoio — outros me surpreenderam.
Várias contas que apoiavam o Hamas alegaram que Omer era um “ator pago” porque o Hamas “não matava crianças”.
Outras disseram que se tratava de “propaganda judaica no seu melhor”, declarando que nem Omer, nem suas irmãs haviam sido mortos.
Um usuário escreveu “não há evidências” de que eles estavam mortos e pediu para “parar com a mentira”.
Ao analisar várias outras postagens e vídeos mostrando a família Siman-Tov em diferentes redes sociais, encontrei dezenas de comentários semelhantes.
Alguns sugeriam que ele e suas irmãs tinham sido “atores de crise”” — pessoas pagas para representar uma tragédia.
Verifiquei os perfis por trás dos comentários. Muitos deles pareciam ser pessoas reais baseadas em países diferentes. Vários apoiavam o Hamas e alguns pareciam estar baseados na Cisjordânia ocupada.
Estas não eram contas com muitos seguidores. No entanto, o efeito cumulativo das suas publicações pareceu reforçar narrativas que viralizaram nos meios de comunicação social tentando sugerir que o Hamas não tinha matado ou atacado nenhuma criança, apesar das provas generalizadas de tal violência.
Outros comentários falsos que descobri sugeriam que os assassinatos tinham sido reais, mas que os homens armados do Hamas não tinham sido responsáveis por eles.
Um usuário escreveu: “Acho que foi o próprio governo de Israel” quem matou essas crianças e os israelenses estavam “tentando culpar o Hamas”.
Falando comigo de sua casa em Sydney, na Austrália, Mor Lacob disse que os comentários nas redes sociais lhe causaram angústia em um momento em que ela estava de luto por seus amigos.
“Só quero que o mundo se lembre e saiba o que aconteceu. Lidar com a morte deles já é bastante difícil, e todos esses comentários tornam tudo ainda pior”.
“Como posso reagir a isso? Preciso provar que eles morreram? Por que cinco túmulos precisaram ser preenchidos com seus belos corpos?”
Ela descreveu esse tipo de desinformação online como “má e cruel”.
Quando lhe contei como crianças palestinas, como Omar, também tiveram as suas mortes negadas e questionadas nas redes sociais, ela ficou novamente desapontada.
“Meu coração está com cada [pessoa] inocente que foi assassinada e morta por causa das ações do Hamas”, disse ela. “Não é justo.”
Fonte: BBC
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