Após conquistar os dois últimos títulos mundiais nos 400m (classe T47) no atletismo paralímpico, Fernanda Yara da Silva chega à Paralimpíada de Paris com grandes expectativas de conquistar a tão sonhada medalha de ouro – um marco inédito em sua carreira.
Aos 39 anos, a atleta considera este o melhor momento de sua carreira que já soma 24 anos no esporte. Ela competirá nos 400m, sua principal prova, no dia 30 de agosto, e depois, 100m e 200m (3 e 7 de setembro).
Em entrevista à BBC News Brasil direto de Troyes, cidade francesa onde a parte da delegação brasileira estava treinando antes das competições, Fernanda compartilhou detalhes sobre como chegou ao universo paralímpico, maternidade, e suas origens familiares. Confira abaixo.
O início no esporte
Fernanda começou a correr aos 14 anos. Nos Jogos escolares, em Petrolina, Pernambuco, a adolescente percebeu que tinha um tino para o atletismo.
“Não era incomum ouvir piadas, ou comentários como ‘nossa, mas você perdeu para a menina que só tem um braço.’ Teve muita gente que duvidou do que eu sou capaz. Já fui muito ridicularizada, mas para mim, isso traz motivação.”
Fernanda tem má-formação congênita no braço esquerdo, abaixo do cotovelo. Na época, sem conhecer o universo paralímpico, ela competia em eventos de atletismo ‘convencional’.
“No meu primeiro ano, participei de uma competição em Recife. Vi ali uma oportunidade de viajar, conhecer outros lugares, enquanto competia. Eu era uma menina do interior e nunca tinha viajado antes, então aquilo abriu um novo mundo para mim. Foi assim que comecei a me apaixonar pelo esporte.”
Fernanda corria distâncias de 400 metros até 10.000 metros, e buscava nas provas de rua uma forma de ajudar a família.
“Quando eu ganhava uma prova que tinha prêmio em dinheiro, metade ficava com a minha mãe e a outra metade eu guardava para conseguir viajar para a próxima prova.”
A quinta de sete irmãos, Fernanda era a primeira esportista da família.
“Minha mãe não me incentivava quando comecei, porque ela via o quão triste eu ficava quando não tinha dinheiro para ir para alguma competição. Nós sempre fomos muito humildes. Não tínhamos televisão e já moramos em casa de barro. Cheguei a pedir esmolas, porque éramos muitos e a comida acabava rápido. Minha mãe trabalhava na roça para cuidar de nós.”
Fernanda também foi a primeira da minha família a concluir o segundo grau e é a primeira a cursar uma faculdade.
“Estou fazendo Serviço Social, mas com o tempo curto por conta dos treinos, tenho dificuldade em fazer os estágios, que são presenciais, o que complica bastante. Hoje, graças a Deus, temos uma condição melhor, proporcionada pelo esporte, e consigo ajudar minha família. Só não trago eles para as competições porque é muita gente”, brinca.
Sete anos depois da sua estreia nos jogos escolares, aos 21, Fernanda, já mais experiente, teve seu primeiro contato com o esporte paralímpico em uma competição em Minas Gerais.
“Assistir as atletas Jennifer Martins e Rosinha dos Santos, e ver que elas participavam de competições internacionais, me inspirou muito. Quando vi que era possível, entrei na equipe delas no ano seguinte, 2008.”
‘Minha vida sem o esporte não faz sentido’
Fernanda teve poucos meses para se preparar para sua estreia na classe T47, a nomenclatura para atletas com limitações num dos membros superiores, com perda de funcionalidade ao nível do ombro, cotovelo e pulso.
A chegada na China, conta a atleta, foi ‘como um sonho’.
“Embora eu estivesse focada na competição, tudo era muito novo para mim, e confesso que fiquei um pouco deslumbrada pela cidade, que era linda. Até então, só tinha viajado pelo Brasil. Sempre tive um sonho de conhecer a China, talvez por assistir muitos filmes estrangeiros e me interessar pela cultura. Era algo que nem imaginava ser possível. E mesmo deslumbrada, fiz as melhores marcas da minha vida até então.”
Muitos quilômetros foram corridos, entre treinos de às vezes dois períodos no dia, para que Fernanda chegasse como bi campeã mundial nos Jogos de Paris.
Para alcançar a forma que tem hoje, conta, foram necessários sacrifícios.
“O dinheiro sempre foi apertado. Comecei a receber patrocínio em 2019, e só foi por um ano. Agora, em 2023, voltei a receber da Caixa, mas antes disso, sobrevivi com a Bolsa Atleta estadual e com muitas dificuldades. Já desisti várias vezes, mas sempre percebo que minha vida sem o esporte não faz sentido.”
Recentemente, Fernanda passou a receber a Bolsa Pódio, uma categoria do programa Bolsa Atleta oferecida a atletas com chances de disputar finais e medalhas olímpicas e paralímpicas. Os valores variam entre R$5 mil e R$15 mil.
Outro desafio é estar longe da família. Há 8 anos, Fernanda realizou um sonho fora do esporte: deu à luz Lorena, sua única filha.
Por conta da rotina totalmente voltada aos treinos, Lorena fica Recife com o pai e a mãe dele, enquanto Fernanda mora em São Paulo.
“Eles preferem ficar lá, onde ela pode brincar na rua, perto da família. Em São Paulo, ela teria menos companhia e ficaria mais restrita em relação às atividades que poderia fazer enquanto eu treino.”
“Minha rotina é intensa, não costumo sair para nada. Alguns dias, treino em dois períodos, e ainda tenho sessões de fisioterapia, massagem, terapia… Quando chego em casa, janto e converso com minha filha até ela dormir.”
Fernanda reflete que manter sua vida à distância, apesar de difícil, é um sacrifício que faz também por Lorena.
“Tudo que faço é pensando nela. Sei que a presença de uma mãe é muito importante para uma criança, mas de que adianta eu estar com ela se estivermos passando fome? Prefiro dar tudo a ela hoje para que ela não tenha a vida que eu tive.”
“Estou perseguindo um sonho para que, no futuro, quando ela disser: ‘Mamãe, não consigo isso’, eu possa dizer que sim, com persistência, é possível. Tenho 24 anos de carreira, e olha onde eu estou hoje. Foi muito tempo para chegar aqui.”
‘Sou como o vinho, quanto mais velho, melhor’
Enquanto a prova de 400m dura menos de um minuto, a preparação acontece durante anos, e envolve várias pessoas.
“A equipe que está por trás é muito grande. Quando eu ganho uma medalha, não estou ganhando sozinha; é resultado de um trabalho coletivo e de muitas renúncias para chegar lá.”
Na sua equipe de ‘bastidores’, Fernanda, como outros atletas, conta com técnicos, fisioterapeutas, fisiologistas, massoterapeutas e psicólogos.
“Sem os psicólogos, acho que a gente acabaria surtando, porque a pressão é enorme. Só quem está no topo sofre essa pressão, pois quer continuar lá. Conversar mais com meu terapeuta foi uma virada de chave para mim.”
Se a mente não estiver bem, defende Fernanda, você não faz nada.
“Um exemplo é minha competição de 2019 no Pan-Americano. Eu tinha o treino, mas não o mental, e acabei perdendo a medalha de ouro porque fiquei abalada e não executei bem minha corrida. Desde então, trabalhei para fortalecer minha mente.”
Para ela, o que mudou em relação às outras Paralimpíadas, nas quais saiu sem medalhas, foi principalmente sua vontade de vencer. “O desejo de deixar minha marca só cresceu. Eu quero muito essa medalha, e sei que posso conseguir. “
Nesta edição, o Brasil tem a maior delegação de sua história, e tenta bater a marca de 72 medalhas (resultado conquistado no Rio 2016 e Tóquio 2021).
É também a edição com mais mulheres atletas – Fernanda está em um grupo de 117 participantes.
Enquanto em algumas modalidades a aposentadoria chega cedo, Fernanda vê a idade como apenas mais um dos vários números relacionados à sua carreira.
“Não importa se você é jovem ou velho; se está no esporte, ainda tem lenha para queimar. O sonho não tem idade. O pessoal aqui me chama de mãe, e é isso, eu sou como o vinho, quanto mais velho, melhor “, brinca.
Para os brasileiros fãs de esporte, Fernanda deixa um recado: “Gostaria que as pessoas viessem torcer por nós e olhassem com carinho para os atletas paralímpicos. Cada deficiência ali representa uma história a ser contada.”
Fonte: BBC
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