• Igor Zahir
  • Do Recife para a BBC News Brasil

Crédito, Arquivo Pessoal

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Com a orelha deformada por causa dos maus tratos, Rufus apresenta dificuldades de audição, falhas na visão, catarata e outros males da idade

Rufus é um cachorro idoso que conseguiu ser adotado, após passar anos traumatizantes em um local que abrigava centenas de cães em condições insalubres. Mas a maioria não tem esse final feliz.

Quando o empresário Luchino Marchi, de 44 anos, entrou no evento mensal do Parque de Exposições do Cordeiro, no Recife, pela sétima vez seguida em busca de um cachorro para adotar, não imaginava que ia encontrar um ser tão especial quanto Rufus, que já havia passado duas vezes pela experiência de ser doado e depois devolvido para o lar temporário onde ficava com outros animais resgatados.

Luchino, que mora sozinho e teve cachorros a vida inteira com a família, nunca havia sido “pai de pet” de forma efetiva, do tipo que limpa as necessidades, leva para o passeio e para veterinário.

Ao se divorciar, sentiu falta de um cão para dividir a rotina, mas ainda não conhecia o cenário cada vez mais crescente de bichinhos à espera de um lar.

Ao adotar Rufus, passou a cuidar de um pet muito amedrontado e traumatizado, que ainda é desconfiado e não interage com pessoas diferentes das que convive no dia a dia.

Não é agressivo, mas tem receio até de passear, não gosta de bola nem de outros brinquedos que as pessoas estão acostumadas a usar com os animais de estimação.

Com a orelha deformada por causa dos maus tratos, Rufus apresenta dificuldades de audição, falhas na visão, catarata e outros males da idade.

Apesar disso, o cachorro tem a vida que seus irmãos sonhariam: muito conforto no apartamento onde mora com o tutor, banhos no pet shop, looks sincronizados com os de Luchino (seja na praia, nas festas de rua ou passeios), e todo ano, no dia 7 de agosto, ganha uma festinha temática de aniversário, por ter sido a data em que foi adotado pelo empresário em 2019.

“Temos uma relação muito bonita. Fico imaginando como vai ser no dia em que ele se for — por ser idoso — e não gosto nem de pensar muito nisso”, diz Luchino, que até tatuou o rosto do cachorro no antebraço.

“Rufus já seria lembrado até o fim dos meus dias, mas agora ficou gravado”, declarou o tutor sobre fazer o desenho.

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Diferentemente de abrigos como o da foto, os ‘acumuladores’ criam animais em casa comuns e condições insalubres

A história com final feliz, no entanto, está longe da realidade de outros animais.

Rufus, que até hoje tem sequelas e traumas, veio de um local que ficou conhecido como Casa da Avenida Norte, no bairro da Encruzilhada, no Recife.

Em 2015, o dono de um imóvel descobriu que as duas inquilinas estavam criando mais de 130 cães em condições insalubres.

Entre outros problemas, os animais estavam, literalmente, se matando ao brigar, devido à fome.

Com denúncias e ordem de despejo, entraram em ação o Ministério Público de Pernambuco (MPPE), a Secretaria-Executiva dos Direitos dos Animais (Seda), a Secretaria de Saúde do Recife e o Centro de Vigilância Animal (CVA), além de projetos sociais, ONGs e ativistas.

Com grande mobilização, eles foram castrados, vacinados e vermifugados, sendo que parte foi doada através de projetos de adoção, e outra parte, a dos cachorros mais traumatizados e de difícil convívio, foi ficando em hotéis e lares temporários de protetores independentes – como são chamados aqueles que não possuem ONGs registradas em cartório, e são maioria dentro da causa animal.

Quanto às duas mulheres, ainda foram autorizadas a levar mais de 10 animais sem castrar, e o problema voltou à tona: cerca de dois anos depois, foi descoberto que elas estavam, novamente, acumulando animais em um imóvel no mesmo bairro da Encruzilhada, sob condições precárias de higiene. Dessa vez eram cães e gatos.

Os ativistas denunciaram através do poder público, de emissoras de TV locais, e toda a comoção se repetiu, inclusive porque uma das inquilinas, já idosa com problemas de saúde, foi encontrada morta no chão tempos depois, com os animais ao redor dela.

Após o falecimento, os defensores se mobilizaram para tentar ajudar os animais, mas muitos cães sumiram de forma inexplicável.

A advogada e jornalista Laura Atanasio, que acompanhou de perto o caso da Casa da Avenida Norte e entrou para a causa animal naquela época, destaca que a experiência das duas mulheres deixou marcas incuráveis nos cachorros.

“Todos eles são muito assustados e traumatizados, como é o caso de Rufus, que saiu de lá. Eles nem permitem que a gente pegue nos braços, e muitos urinam ou defecam de tanto medo se alguém pegar no colo. É importante dizer que existem aqueles defensores que acumulam cães e gatos por consequências de abandonos, mas fazem de tudo para não faltar nada para eles, principalmente amor e carinho.”

“Mas esses são acumuladores do bem. E tem os acumuladores do mal, como o caso dessas mulheres, que além de criar um número muito maior do que o espaço permite, o faz em condições insalubres e ainda maltratam de forma agressiva os animais”, esclarece Laura, cofundadora do projeto SOS Amigo dos Animais, que trabalha com resgates, cuidados e adoções de animais abandonados na Região Metropolitana do Recife.

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Protetores muitas vezes comprometem a própria saúde para cuidar dos animais

A advogada ressalta ainda que os problemas de acúmulos dos cães são bastante comuns em Pernambuco porque muitas pessoas, principalmente as que têm condições financeiras mais humildes, se esforçam para ajudar os animais, sem contar com apoio.

“Elas dão o melhor de si, passam necessidade para não deixar faltar nada para os bichos, mas quando outras pessoas veem que tem aquele determinado protetor animal em um lugar, acaba sempre ‘descarregando’ mais um na conta”, afirma.

“E cada vez mais esses protetores estão com suas casas repletas de cães e gatos, sem ninguém ajudar. O que não se leva em consideração é a saúde mental desses defensores, que ficam prestes a enlouquecer de tanto estresse, com uma carga tão pesada. Muitos perdem o controle ou se afastam para não perder a vida própria e a saúde mental”.

Um exemplo disso é Pollyanna Barros, defensora à frente do projeto Cats Recife, que cuida de mais de 38 gatos em estados graves de saúde, e cuja mãe, Auristela de Barros e Silva, de 73 anos, cuida de mais de 35 cães dentro de sua própria casa – com graves riscos da estrutura despencar.

Pollyanna costuma pedir ajuda financeira aos seguidores nas redes sociais para arcar com as despesas, e são comuns os posts que ela faz à beira do desespero causado pela situação.

‘Abrigos podem ser uma porta para o inferno’

Com envolvimento histórico na causa em Pernambuco, Goretti Queiroz alerta para os riscos de manter abrigos sem estruturas, na tentativa de ajudar.

“Se o espaço não tem como separar os animais e oferecer uma qualidade de vida melhor do que ele teria na rua, não faz sentido porque eles vão brigar até se matar de forma violenta, sem falar no risco de um transmitir doenças para os outros”, disse a protetora.

“Tentamos defender o conceito de cães comunitários, onde os animais que vivem em determinados bairros são amparados pela população com uma casinha, comida e medicamentos. E os cães adotados por empresas, com direito a crachá e tudo, naquelas maiores. A ideia de o protetor querer colocar os cães no abrigo é compreensível pela boa intenção, mas muitas vezes o abrigo, que deveria ser um paraíso para ele ao tirar o animal da rua, pode se tornar uma porta para o inferno”.

Somando mais de 50 mil castrações em 15 anos de ativismo, Goretti defende a esterilização em massa desses animais.

“Toda semana arrecadamos dinheiro para fazer o que chamamos de mutirões, que são aquelas castrações de vários cães e gatos no mesmo dia. Não podemos esperar eles serem doados para isso, tem que castrar para depois doar.”

Laura acrescenta que a castração pediátrica dos animais, antes de atingirem a maturidade sexual, é fundamental tanto para o combate ao abandono de filhotes nas ruas, quanto para a prevenção e controle de muitas doenças degenerativas.

“É uma medida que em outros locais funciona muito, mas em Pernambuco as pessoas não concordam. Recife é atrasado em termos de castração. Fizeram um hospital veterinário público que não tem médicos ou equipamentos suficientes.”

Ambas concordam, ainda, que o problema de não ter dados disponíveis para formar uma estatística sobre abandono dificulta o trabalho dos protetores.

“Como não temos uma pesquisa oficial feita pelas prefeituras, seria interessante se aqueles agentes de saúde ou vigilantes que fazem visitas domiciliares perguntassem nas casas quantos animais têm, e naquela determinada rua quantos vivem soltos. Assim, anotando isso, chegaríamos num número aproximado para planejar as castrações de todos e atender com serviços veterinários os que ficam nas ruas”, explica Goretti.

“Realizo um trabalho voluntário com um projeto de abandono de gatos em um ponto de zona nobre de Recife. Estamos contabilizando, há quase um ano, quantos estão sendo largados para morrer, e são centenas”, diz Laura.

“E quando pedimos audiência para resolver isso, o poder público diz com todas as letras que não pode fazer muita coisa a respeito”.

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Rufus teve sorte de ganhar uma família

Problema nacional

Enquanto na capital as defensoras ouvidas pela reportagem reclamam do descaso do poder público, no interior do Estado o problema é ainda maior. A ONG Amigos dos Animais, de Taquaritinga do Norte, é um exemplo do que acontece no Agreste de Pernambuco.

Em três anos, mais de 600 animais foram atendidos: muitos morreram, outros foram doados, e hoje a ONG atende mais de 250 gatos e cachorros, sendo que estes ficam em um abrigo improvisado em um galpão lotado, que se depara com o problema citado anteriormente: por falta de estrutura, muitos se matam com violência.

“O ideal seria um espaço construído para isso, e é cada vez mais urgente, mas faltam os recursos, porque muito mal conseguimos manter os animais com comida e medicamento”, diz a tesoureira e cofundadora da ONG, Maria Sandra da Conceição.

“O principal problema aqui é que está fora de controle pelo descaso das pessoas: em uma semana, enquanto salvamos ou castramos um animal, já tem outras na rua no cio com mais de 20 cães atrás delas”, completa a defensora.

O problema, infelizmente, está longe de ser caso isolado em Pernambuco. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que no Brasil existem mais de 30 milhões de animais abandonados, sendo cerca de 10 milhões de gatos e 20 milhões de cães.

Já um estudo realizado pelo Instituto Pet Brasil diz que o número de animais em situação de vulnerabilidade aumentou de 3,9 milhões em 2018 para 8,8 milhões em 2020. Além das estatísticas crescerem, os dados de adoção não acompanham.

O caso de acumuladores, como definiu Laura sobre a Casa da Avenida Norte, em Recife, se repete em outras partes do país: na última sexta-feira (21/10), após denúncia de vizinhos, as autoridades sanitárias de Valparaíso, em Goiás, recolheram 240 gatos e 120 cachorros de uma acumuladora da região.

Entre eles estavam várias gatas prenhes, outras recém-paridas com filhotes desnutridos e doentes. Todos foram encaminhados para o Centro de Controle de Zoonoses local e os defensores animais se mobilizaram para ajudar.

Vale destacar que não é apenas falta de medidas públicas. Teoricamente, muito já foi feito. Várias cidades reservam verbas após decretos municipais determinarem criação de abrigos decentes. Já há lugares com a disciplina de Direitos dos Animais nas escolas públicas, a fim de educar os jovens para o problema desde cedo.

Existem as leis que proíbem fogos de artifício com barulho – que causam muitas mortes e fugas dos animais assustados. O abandono ou maltrato é crime previsto na Lei de Crimes Ambientais, desde 1998. Mas, na prática, o problema dos animais de rua parece longe de acabar.