Crédito, Getty Images

Legenda da foto,

Terremoto em Lisboa (1755), pintura de João Glama (1708-1792)

“Nunca se viu uma manhã mais bonita do que a de 1º de novembro”, escreveu o reverendo Charles Davy em 1755, um dos muitos estrangeiros que viviam em Lisboa.

“Era uma metrópole, a capital de um império colonial mundial que se estendia da África (com Angola, Moçambique e Cabo Verde), passava pela Ásia (com Goa e Macau), e, claro, à América Latina (com o Brasil)”, disse Vic Echegoyen , autor do romance histórico Ressuscitar.

“Portugal era um reino muito, muito rico graças às riquezas dessas colônias”, acrescentou o escritor em conversa com BBC Reel.

“Lisboa era uma visão muito atraente para os visitantes de primeira viagem”, disse Edward Paice, autor de A Ira de Deus – A Incrível História do Terremoto que Devastou Lisboa em 1755 (Record/2010), à BBC Witness.

“Havia mosteiros grandiosos e palácios de grande escala. Sua arquitetura foi fortemente influenciada pelo Oriente e também pela arquitetura islâmica.”

“O sol estava brilhando em todo o seu esplendor”, continuou o reverendo Davy.

“Toda a face do céu estava perfeitamente serena e clara; e não havia o menor sinal de alerta daquele evento que se aproximava, que fez desta cidade, outrora florescente, opulenta e populosa, uma cena do maior horror e desolação.”

Foi um dos desastres naturais mais mortais que o mundo já viu.

Dezenas de milhares de pessoas morreram. Lisboa foi destruída, mas das cinzas surgiu algo incrível: uma nova forma de pensar e uma nova ciência.

O horror

Crédito, Getty Images

Legenda da foto,

Praça do Comércio antes do terremoto de 1755, representada em azulejos na embaixada da Itália, século 18

Era o Dia de Todos os Santos, e às 9h30 da manhã muitos dos devotos moradores da cidade estavam nas igrejas.

De repente começou a ser ouvido o que várias testemunhas oculares, incluindo o reverendo Davy, acreditavam ser o barulho de muitas carruagens.

“Logo vi que tinha me equivocado, pois descobri que era devido a algum tipo de ruído estranho e assustador embaixo da terra, como o estrondo distante e oco de um trovão.”

O abalo era um megaterremoto sentido em grande parte da Europa Ocidental e na costa noroeste da África.

“Ainda é um dos maiores terremotos já registrados. Houve três tremores no total e o segundo foi sem dúvida o maior. Posteriormente, foi avaliado entre 8,5 e 9 na escala Richter”, disse Paice.

Os sobreviventes do primeiro tremor procuraram segurança numa enorme praça aberta junto ao rio Tejo, incluindo o Sr. Braddick, um comerciante inglês.

“Ali encontrei uma prodigiosa reunião de pessoas de ambos os sexos e de todas as classes e condições, entre as quais observei alguns dos principais cônegos da igreja patriarcal em suas vestes roxas e avermelhadas, vários padres que haviam fugido do altar em suas sagradas vestimentas em meio à missa festiva, senhoras seminuas e outras sem sapatos… todas de joelhos com os terrores da morte no semblante, gritando sem cessar ‘misericórdia, meu Deus!’.”

“No meio da devoção, veio o segundo grande abalo e completou a ruína daqueles prédios que já haviam sido gravemente destruídos.”

Mais horror estava por vir: o terremoto desencadeou um tsunami no Atlântico que então subiu o rio.

Crédito, Getty Images

Legenda da foto,

O terremoto foi seguido por um maremoto y um incêndio. As réplicas foram sentidas por muitas semanas depois

“Ele veio espumando, rugindo e correu em direção à margem com tanta energia que imediatamente corremos para salvar nossas vidas, o mais rápido que podíamos”, escreveu o reverendo Davy.

“Você pode pensar que este evento sombrio termina aqui, mas que nada, os horrores de 1º de novembro são suficientes para preencher um volume.”

“Assim que escureceu, toda a cidade parecia brilhar, com uma luz tão forte que dava para ler. Pode-se dizer, sem exagero, que houve incêndios em pelo menos cem lugares ao mesmo tempo e continuou como isso por seis dias, sem interrupção.”

Para a celebração religiosa, todas as velas das igrejas e catedrais haviam sido acesas, que quando caíam multiplicavam suas chamas.

“Não há palavras para expressar o horror”, escreveu outra testemunha. “Tal situação não é fácil de imaginar para quem não a sentiu, nem de descrever para quem a sentiu.”

“Deus permita que você nunca tenha uma ideia precisa disso, porque isso só pode ser obtido através da experiência.”

Uma nova forma de pensar

A notícia do desastre numa cidade tão importante como Lisboa espalhou-se rapidamente.

“Foi a primeira catástrofe global da mídia que atraiu a atenção de todas as gazetas, jornais e viajantes em toda a Europa”, disse Echegoyen.

E soou mais do que um alarme.

As réplicas do terremoto agitaram o pensamento da época.

Crédito, Getty Images

Legenda da foto,

Grande procissão ao auto de fé dos condenados pela Inquisição de Lisboa, século 18

A Igreja e seus seguidores procuravam culpados pela tragédia.

“Depois do terremoto que destruiu três quartos de Lisboa, o meio mais eficaz que os sábios do país inventaram para evitar uma ruína total foi a celebração de um soberbo auto de fé [ritual de penitência pública], tendo a Universidade de Coimbra decidido que o espetáculo de algumas pessoas sendo queimadas em fogo lento com toda a solenidade é um segredo infalível para evitar tremores de terra “, escreveria Voltaire em seu polêmico conto filosófico Cândido (1759).

Enquanto a Inquisição cuidava de seus negócios, as grandes mentes da época, muitas das quais estavam começando a ver o mundo de uma nova maneira e que agora associamos ao Iluminismo, intensificaram suas reflexões.

Immanuel Kant publicou três textos separados sobre o desastre, tornando-se um dos primeiros pensadores a tentar explicar os terremotos por causas naturais, e não sobrenaturais.

E Voltaire e Jean-Jacques Rousseau tiveram uma famosa troca de ideias.

A catástrofe havia desafiado o otimismo do Iluminismo articulado pelo polímata alemão Gottfried Leibniz e pelo poeta inglês Alexander Pope.

Eles propuseram resolveram o problema histórico sobre o que é o mal afirmando que a bondade de Deus havia assegurado toda a Criação e, dessa forma, qualquer aparência do mal era apenas isso: uma aparência, o produto da incapacidade dos humanos de compreender sua função dentro do todo.

“A filosofia predominante era que vivíamos no melhor de todos os mundos possíveis, que mesmo nesses desastres havia providência divina. Deus estava elaborando algum plano e não cabia a nós questionar”, explicou Paice.

“Voltaire já criticava a interpretação teológica da natureza, e muitas de suas obras ironizavam a ideia de que Deus de alguma forma governava todos os assuntos humanos”, disse o historiador André Canhoto Costa à BBC Reel.

Poucas semanas depois do terremoto, Voltaire, no seu “Poema sobre o Desastre de Lisboa” desferiu o primeiro ataque naquele que viria a ser um dos maiores debates filosóficos da história.

Segundo Paice, o filósofo questionou um Deus que podia ver algo bom em um evento “tão horrível como o que aconteceu”.

Legenda da foto,

Imagem de ex-voto retrata o resgate de um menino de três anos e Nossa Senhora da Estrela

“Você diria vendo aquela multidão de vítimas?: ‘Deus se vingou; a morte deles é o preço pelos seus crimes’.

Que crime, que falha cometeram aquelas crianças, esmagadas e ensanguentadas no ventre da mãe?

Terá Lisboa, que já não existe, mais vícios do que Londres, do que Paris, afundadas nas delícias?

Lisboa está em pedaços e dança-se em Paris”

Linhas do Poema sobre o Desastre de Lisboa de Voltaire

Justificar sofrimento

O terremoto que destruiu Lisboa abalou mais do que o chão para Voltaire: minou o esforço de justificar o sofrimento com referência a algum bem maior, abrindo a possibilidade de que algum sofrimento imerecido pudesse ser atribuído a Deus.

Rousseau rejeitou a ideia e respondeu com uma longa carta em que argumentava, entre outras coisas, que a fonte do sofrimento do povo lisboeta não era Deus, mas suas próprias ações: a forma como construíram a cidade e as motivações sociais dos moradores.

Crédito, Getty Images

Legenda da foto,

A gótica Igreja do Carmo guarda as marcas do terremoto de 1755

Ele argumentou que uma ocorrência terrestre, moralmente neutra, era vivenciada como um desastre, devido à suscetibilidade autocriada que o modo de habitar aquele lugar produzia.

“A natureza não construiu ali 20 mil casas de seis a sete andares, (…) se os habitantes desta grande cidade vivessem mais dispersos, com maior igualdade e modéstia, os danos causados ​​pelo terremoto teriam sido menores ou talvez inexistentes”, escreveu Rousseau.

Ele ainda argumenta que mesmo depois do perigo revelado pelo tremor inicial, as pessoas se recusaram a tomar as medidas necessárias.

“Quantos infelizes pereceram porque um queria resgatar suas roupas, outros seus papéis, outros seu dinheiro?”, perguntou Rousseau, insinuando que isso refletia seus valores, mostrando que preferiam manter sua posição social a suas vidas.

E assim, à medida que o debate avançava, a ciência emergia como uma maneira melhor de explicar o mundo e a maneira como ele funcionava.

“A reforma protestante já tinha ocorrido, mas de alguma forma manteve intacta a linha entre o homem e a natureza. O terremoto contribuiu para um corte mais violento”, destacou Costa.

“O terremoto de Lisboa desencadeou toda uma série de eventos, como quando você joga uma pedra em um lago e as ondulações ficam mais amplas e fortes e afetam tudo ao seu redor”, disse Echegoyen.

“A era do pensamento livre, de questionar o poder onipotente da Igreja e dos reis já estava tomando forma, mas acredito que nesse dia a humanidade começou a despertar e que nessa data realmente nasceu a era moderna.”

Uma nova ciência

“Agora o evento é considerado um marco importante nos campos científico e filosófico”, disse Paice.

Legenda da foto,

Retrato do Marquês de Pombal

“Foi o terremoto mais pesquisado da história. Temos um enorme banco de relatos em primeira mão do evento e a partir deles os cientistas começaram a analisar o que havia acontecido sem mencionar Deus.”

“Pode-se dizer que 1° de novembro de 1755 é a data de nascimento da sismologia, que hoje é estudada com base nesse acontecimento”, disse Maria João Marques, do Centro do Terremoto de Lisboa, à BBC Reel.

E é ao Marquês de Pombal que muitos atribuem o nascimento desta nova escola de Ciências.

Ele era o braço-direito do rei e foi encarregado da reconstrução da cidade de Lisboa.

“Ele enviou questionários para cada paróquia para perguntar coisas coisas como: por quanto tempo a terra tremeu? Quão forte? Que danos causou? Quantas pessoas morreram? Você notou algum sinal estranho antes do terremoto?”, disse Echegoyen.

“Com sua equipe, eles coletaram e analisaram as respostas, compilando uma espécie de livreto de todas as partidas em todos os lugares, até que começou a surgir um padrão que se tornou a base da ciência sismológica como a conhecemos hoje.”

A reconstrução de Lisboa foi impulsionada pela ciência.

Tentando minimizar as mortes em catástrofes futuras, apoiando os esforços de retirada de pessoas e combate a incêndios, o Marquês de Pombal fez com que as ruas estreitas e sinuosas fossem substituídas por avenidas largas, e que os espaços fossem amplos e ventilados.

Além disso, métodos inovadores de engenharia foram utilizados, com estruturas flexíveis de madeira nas paredes dos prédios para que elas “tremessem, mas não caíssem ” .

Para testar esta e outras medidas contra terremotos, tropas marchavam ao redor de prédios para simular tremores, levando ao nascimento da engenharia sísmica.

Já assistiu aos nossos novos vídeos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!