• Dalia Ventura
  • BBC News Mundo

Crédito, Cortesia do Museu Van Gogh, Amsterdã

Legenda da foto,

Vincent van Gogh aos 19 anos

“Sempre acho as fotografias abomináveis e não gosto de tê-las ao meu redor, especialmente das pessoas que conheço e amo”, escreveu certa vez Vincent van Gogh à sua irmã Wil.

“As fotos se desvanecem muito antes de nós, enquanto os retratos pintados são algo que se sente, que fazemos com amor ou respeito pelo ser humano sendo retratado”, completou.

Mas, no fim da vida, Van Gogh mudou de opinião: “Ah, que obras poderíamos fazer com a fotografia e a pintura!”, afirmou.

Seu desdém inicial pelo o que era, na época, um recente avanço tecnológico talvez explique por que abrimos esta reportagem mostrando a única fotografia conhecida do genial pintor holandês do século 19.

Mas seu rosto é familiar para nós por ter sido um dos artistas que mais pintaram autorretratos (35, ao todo) —ainda que, para ele, fosse um desafio, como confessou ao seu irmão Theo: “É difícil conhecer-se a si mesmo, mas também não é fácil pintar [seu próprio retrato]”.

“Entre os grandes predecessores de Vincent, somente seu compatriota Rembrandt pintou mais autorretratos que ele (40), mas isso durante uma carreira quatro vezes mais longa”, relata à BBC News Mundo (serviço de notícias em espanhol da BBC) Martin Bailey, autor do livro Van Gogh’s Finale: Auvers and the Artist’s Rise to Fame (O fim de van Gogh: Auvers e a ascensão do artista para a fama, em tradução livre), que não tem edição brasileira.

Auvers é uma pequena cidade ao norte da França, onde Van Gogh passou seus últimos dois meses de vida.

É por isso que muitos de nós temos uma imagem tão clara deste homem de olhos claros e barba ruiva, que reconheceríamos sem titubear em meio a uma multidão. Ou será que não?

Este é Van Gogh

“O que mais me surpreendeu foi como eles são distintos”, afirma Karen Serres, doutora em artes e curadora que, pela primeira vez na história, reuniu 16 autorretratos do pintor na galeria do Instituto de Arte Courtauld, em Londres.

“Foi muito interessante porque eu havia visto as obras separadamente e pensei que, ao reuni-las, encontraria uma mesma pessoa olhando para mim em todas as paredes. Mas são tão diferentes… parecem mais membros de uma mesma família”, afirma.

“Foi simplesmente reconfortante, pois me fez lembrar que ele era um artista incrivelmente variado e não fazia sempre a mesma coisa.”

Estas duas obras a seguir são uma amostra da sua versatilidade.

Crédito, Museu van Gogh, Amsterdã

Legenda da foto,

‘Autorretrato com chapéu de feltro’ (1886-1887) — Museu van Gogh, em Amsterdã, na Holanda

Crédito, Museu van Gogh, Amsterdã

Legenda da foto,

‘Autorretrato com chapéu de feltro cinza’ (setembro/outubro de 1887) — Museu van Gogh

O mais incrível é que apenas um ano separa as duas obras.

Van Gogh só decidiu dedicar-se à arte com 27 anos, depois de trabalhar como marchand em Haia e Londres, como professor de escola na Inglaterra, livreiro em Dordrecht e pastor na Bélgica.

Quando finalmente encontrou sua vocação, embora tivesse alguma formação, ele foi se desenvolvendo como pintor a partir da observação, da prática e da busca por sua forma de expressão. Foi esta busca que, em parte, produziu retratos tão distintos entre si.

“O primeiro retrato é tão bonito e encanta pelo pouco de azul na tela, já que o azul contra a barba ruiva é um contraste de cores realmente interessante”, destaca Serres.

“Já o segundo é o que seus amigos chamavam de ‘o rosto fogoso de van Gogh’ e foi pintado depois de suas experiências com o pontilhismo. Os pontos foram convertidos em pinceladas, que parecem irradiar do centro do rosto.”

Crédito, Museu van Gogh, Amsterdã

Legenda da foto,

‘Autorretrato como pintor’ (dezembro de 1887/fevereiro de 1888) — Museu van Gogh

Autorretrato Como Pintor, provavelmente o último que finalizou durante sua estadia de dois anos em Paris, “mostra seu progresso assombroso”, destaca Bailey.

O artista escreveu que estava procurando “uma semelhança mais profunda que a do fotógrafo”. A esposa do seu irmão Theo elogiou o quadro como sendo o autorretrato “mais parecido com ele”.

Razões e revelações

Van Gogh pintou seus 35 autorretratos conhecidos em seus últimos três anos e meio de vida.

Neles, pode-se vê-lo com ou sem chapéu; com ou sem barba; com cabelo curto, raspado ou despenteado; com bochechas profundas (ele teve 10 dentes arrancados em Antuérpia, na Bélgica, o que fez com que parecesse ter mais de 30 anos, sua idade na época) ou com sua dentadura postiça de borracha vulcanizada; com roupas de pintor ou com traje formal…

Será que estes retratos fornecem alguma indicação do seu bem-estar, sua autoimagem ou seu estado psicológico?

Crédito, Instituto de Artes de Detroit

Legenda da foto,

‘Autorretrato com chapéu de palha’ (agosto/setembro de 1887) — Instituto de Artes de Detroit, nos Estados Unidos

“Acredito que é quase inevitável pensar no seu suicídio e na sua luta contra a doença mental quando admiramos suas obras”, afirma Serres. “Desde sua morte, tudo se tornou uma coisa só: sua vida e sua arte.”

“Mas exatamente uma das coisas que queríamos fazer era mostrar que ele usava os autorretratos por muitas razões diferentes. A introspecção era uma pequena parte delas, que aparece somente no final”, segundo a curadora.

Assim como em algumas ocasiões ele pintava autorretratos para testar diversas abordagens técnicas, como contrastes de cores ou pinceladas, em outras ele o fazia por falta de modelos, pois não tinha dinheiro para pagá-los e “parecia ter uma aversão generalizada a pintar amigos próximos e familiares”, de acordo com Bailey.

“Sem modelos, a forma mais simples de desenvolvimento como retratista é pintar a si mesmo, o que só exige o uso de um espelho”, destaca Bailey, que é especialista em Van Gogh e escritor da publicação The Art Newspaper.

O próprio Van Gogh escreveu para Theo em 1989: “Estou trabalhando em dois retratos de mim mesmo neste momento, na falta de outro modelo, porque está mais do que na hora de fazer algum trabalho sobre figuras”.

“De fato, ele só pintava quando se sentia bem ou quando tentava usar a pintura para sentir-se melhor”, afirma Serres.

“Em suas cartas, disse certa vez: ‘Se eu me recuperar, será graças à minha arte’.”

“Para mim, parece muito corajoso e ambicioso que ele simplesmente seguisse adiante sem remoer sua dor.”

Crédito, Museu Van Gogh, Amsterdam

Legenda da foto,

Autorretratos (1887) — Museu van Gogh

Bailey acrescenta que “a maioria dos seus autorretratos foram pintados antes da doença se manifestar”.

E, exceto por alguns poucos, “os demais autorretratos não a representam, e acredito ser muito arriscado tirar conclusões sobre o seu estado mental a partir deles”.

“Ele certamente aparece muito sério nos seus autorretratos, mas é algo que geralmente acontece, já que é preciso ficar olhando para o espelho e, a menos que você se obrigue a dar um sorriso forçado, como fazemos às vezes hoje em dia, você está concentrado e tentando capturar seus traços”, observa Bailey.

O especialista também lembra que pintar leva muito tempo: “Você não consegue ficar sorrindo por três horas!”

Por isso, ao vermos um autorretrato com feições tristes, nunca saberemos se Van Gogh estava assim quando começou a pintar ou se ficou triste no final — o que é maravilhoso, não porque nos permite ver sua tristeza, mas porque ele pintou algo repleto de expressão.

Se há algo que os rostos de Van Gogh revelam é o seu desenvolvimento estilístico, mas é difícil concluir algo mais sobre sua personalidade ou até sua aparência, “exceto pela cor da sua barba”, conforme destaca Bailey.

Mas há um porém…

Karen Serres confessa que, embora “quiséssemos, com a exposição, desafiar um pouco esse nosso instinto de procurar nas suas obras o que sabemos da sua vida, é claro que não é possível evitar completamente o assunto”.

A primeira grande crise de saúde mental de Van Gogh ocorreu em 23 de dezembro de 1888, quando ele cortou grande parte da sua orelha esquerda, após uma discussão com seu amigo e colega artista Paul Gauguin.

Crédito, The Courtauld

Legenda da foto,

‘Autorretrato com a orelha cortada’ (1889) — Instituto de Arte Courtauld, em Londres (Samuel Courtauld Trust)

“O Autorretrato com a orelha cortada é muito interessante porque foi deliberadamente pintado três semanas depois da mutilação, de forma que é uma clara reflexão do seu estado mental”, afirma Bailey.

Apesar da frágil saúde do pintor, o Autorretrato com a Orelha Cortada é uma imagem composta com muito cuidado e certamente não é o trabalho impulsivo de um “louco”.

E está repleto de incógnitas, segundo o especialista.

“Por que ele o pintou? Qual é a sua mensagem?”

“Pode ser interpretado como uma determinação otimista de voltar a pintar e desafiar seus problemas, como um pedido de ajuda ou ambos. Nunca saberemos o que estava na sua mente, mas, como toda obra de arte, ele apresenta questões interessantes.”

A internação e o fim

Após uma série de recaídas, em 8 de maio de 1889, Van Gogh deu entrada voluntariamente no hospício de Saint-Paul-de-Mausole, localizado em um antigo monastério perto de Saint-Rémy, na França. Ele permaneceu lá por um ano e, durante este período, sua saúde mental apresentou flutuações significativas.

Durante sua estada, Van Gogh pintou dois autorretratos com apenas uma semana de diferença: o primeiro, quando ainda estava em meio à grave crise de saúde mental que havia sofrido em meados de julho; e o segundo, enquanto se recuperava. Estes retratos nunca haviam sido expostos lado a lado até a exposição no Instituto de Arte Courtauld.

“Ver estas obras juntas é uma experiência incrivelmente comovente, a encarnação da resiliência e da coragem de Van Gogh frente às adversidades pessoais”, ressalta Serres.

“Elas mostram o que a pintura significou para ele e para sua recuperação, e como ele foi capaz de criar, nas circunstâncias mais difíceis, obras que continuam sendo incrivelmente poderosas, mais de um século depois.”

Crédito, Nasjonal Galleriet

Legenda da foto,

Autorretrato (final de agosto de 1889) — Museu Nacional de Arte, Arquitetura e Desenho de Oslo, na Noruega

Crédito, Galeria Nacional de Arte, Washington DC

Legenda da foto,

Autorretrato (setembro de 1889) — Galeria Nacional de Arte, Washington DC, Estados Unidos

O primeiro quadro “é um autorretrato muito perturbador e parece mostrar alguém com problemas de saúde mental”, explica Bailey.

Mas Van Gogh, “em pouco mais de uma semana, conseguiu passar desta obra tão dolorosa e diferente do que ele normalmente fazia (pois ele usou a espátula para raspar a pintura) para a [pintura] otimista de alguns dias depois”, observa Serres.

“Para mim, o fato de no segundo quadro ele ter se retratado com a paleta — algo que fez em apenas três dos seus 35 autorretratos — é como se estivesse recuperando seu senso de identidade. É uma espécie de reafirmação: ele até aparece com seu maravilhoso blusão azul de pintor”, completa.

E Bailey concorda: “Este autorretrato era uma mensagem para seu médico, para seus companheiros de hospício, para o seu irmão Theo e, o mais importante, para si mesmo: depois de sair de outra crise, ele estava totalmente decidido a seguir sua vocação como artista”.

E assim o fez, com grande esforço. Mas sua recuperação durou pouco.

Menos de um ano depois, Vincent van Gogh deu um tiro no próprio peito em meio a um campo de trigo, regressou cambaleando para o seu quarto no hotel Auberge Ravoux, em Auvers, e morreu em 29 de julho de 1890.

Seu legado só foi amplamente reconhecido após a sua morte.

Crédito, Getty Images

Legenda da foto,

‘A Cadeira de Van Gogh com Cachimbo’ é o 16º autorretrato da exposição do Instituto de Arte Courtauld — uma vez que é ele, só que saiu por um momento, deixando seu cachimbo e saquinho de tabaco no assento (Vincent van Gogh, 1888, National Gallery, Londres)

Já assistiu aos nossos novos vídeos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!