- Ángel Bermúdez (@angelbermudez)
- BBC News Mundo
O objetivo era voltar ao passado — desfazer mais de 100 anos de história.
No início de dezembro, as manchetes da imprensa de todo o mundo traziam uma notícia bastante incomum. As autoridades alemãs haviam detido cerca de 25 pessoas suspeitas de preparar um golpe de Estado no país. Os planos incluíam até a tomada armada do Parlamento alemão, o Bundestag.
A maior parte das pessoas detidas era de simpatizantes de um movimento de extrema-direita conhecido como Reichsbürger (“Cidadãos do Reich”), que não reconhece a existência da República Federal da Alemanha.
Sua intenção era derrubá-la para instaurar no país um novo regime, inspirado no chamado Império Alemão, ou Segundo Reich — constituído em 1871 e que desapareceu em 1918, com a derrota alemã na Primeira Guerra Mundial.
A existência do grupo Reichsbürger era conhecida há anos, mas não causava preocupações. Na verdade, era motivo de piadas no país.
Seus membros eram considerados lunáticos, devido a suas atitudes como não querer pagar impostos ao governo federal, emitir documentos de identidade ou carteiras de motorista próprias (sem nenhuma validade legal) e imprimir sua própria moeda.
Mas a opinião pública ficou surpresa ao descobrir que, entre suas fileiras, não havia apenas pessoas à margem da sociedade, mas também médicos, cantores de ópera, chefs de cozinha, um aristocrata pouco conhecido, uma juíza que é ex-parlamentar e um ex-comandante militar que ajudou a fundar o Comando das Forças Especiais da Alemanha. Ele esteve à frente de batalhões de tanques de combate do país entre 1998 e 2000.
O grupo armazenava ainda armas e explosivos. As autoridades não têm mais dúvidas sobre a seriedade dos planos do grupo de reverter a ordem constitucional.
Mas o que foi o Segundo Reich? E por que ele consegue trazer saudades para essas pessoas, a ponto de que elas fiquem dispostas a cometer atos extremos para restaurá-lo?
Nação pujante e ambiciosa
O Segundo Reich, ou Império Alemão, surgiu em 1871, depois de três breves guerras bem sucedidas travadas em um período de sete anos, contra a Dinamarca, a Áustria e a França.
Acredita-se que ele tenha sido criado pelo então primeiro-ministro da Prússia, Otto von Bismarck, que liderou os demais Estados alemães para criar uma nação unificada. Bismarck tornou-se chanceler do novo país e seu primeiro imperador foi o rei da Prússia, Guilherme 1°.
“Foram 39 Estados alemães que se uniram pela primeira vez em um novo tipo de sistema altamente federalizado, dominado pelo reino da Prússia. Era uma monarquia semiconstitucional encabeçada pelo kaiser, ou imperador alemão”, explica James Retallack, professor de história da Europa e da Alemanha da Universidade de Toronto, no Canadá.
Politicamente, era um regime híbrido que combinava elementos democráticos com rasgos mais autoritários.
“Havia um Reichstag [Parlamento] eleito democraticamente, pelo voto dos homens com mais de 25 anos. Mas também havia muitas características não democráticas, pois o governo não era formado segundo a vontade das pessoas, mas sim designado diretamente pelo imperador, e era mais ou menos independente do Parlamento”, explica Retallack à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.
Em termos econômicos, houve momentos de auge e depressão. Mas, durante o Segundo Reich, ocorreu um importante processo de crescimento.
Grandes e poderosas corporações se formaram, e a industrialização do país cresceu de forma acelerada. Em 1870, por exemplo, a Alemanha produzia a metade do aço fabricado no Reino Unido. Em 1914, a produção alemã já era o dobro da britânica.
Da mesma forma, entre 1895 e 1907, o número de trabalhadores alemães na fabricação de máquinas duplicou. Em 1913, 63% das exportações alemãs eram de produtos acabados e a Alemanha dominava todos os principais mercados da Europa continental, com exceção da França.
Por isso, antes do início da Primeira Guerra Mundial, a Alemanha já era a segunda potência industrial do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos.
“A economia alemã havia superado a britânica antes da Primeira Guerra Mundial”, explica Retallack.
“Durante o Segundo Reich, houve muitos progressos econômicos, tecnológicos e científicos. Os cientistas alemães vinham ganhando uma quantidade desproporcional de prêmios Nobel.”
Do ponto de vista social, o Segundo Reich presenciou, por iniciativa de Bismarck, as primeiras políticas próprias de um Estado de bem-estar, com seguros contra acidentes, auxílio-doença e aposentadoria por idade. Posteriormente, o chanceler que o sucedeu, Leo von Caprivi, proibiu o trabalho aos domingos e o trabalho infantil.
Imbuído no espírito militarista prussiano, o Império Alemão também formou um exército poderoso e começou a desenvolver uma forte marinha, capaz de disputar o controle dos mares com o Império Britânico.
As sombras do Império
Mas esses notáveis avanços nem sempre tinham as melhores intenções.
A constituição do Império Alemão foi idealizada com o objetivo de tornar o chanceler e o imperador as figuras mais poderosas. E, de fato, o voto universal foi estabelecido porque Bismarck acreditava que a população rural sempre favoreceria as forças conservadoras a que pertencia.
“Bismarck sabia que não poderia constituir um novo Estado-nação sem o povo. Por isso, contra a sua vontade, ele formou um parlamento [o Reichstag] que seria eleito diretamente pelo voto universal masculino”, segundo a historiadora anglo-alemã Katja Hoyer, autora do livro Blood and Iron: The Rise and Fall of the German Empire 1871-1918 (“Sangue e ferro: ascensão e queda do Império Alemão 1871-1918”, em tradução livre), em um artigo para a revista BBC History Extra em 2021.
Mas o primeiro chanceler não previu as mudanças demográficas que seu país enfrentaria. Com o passar do tempo, a população alemã, cada vez mais urbana e assalariada, começaria a favorecer o Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD, na sigla em alemão) e o Partido do Centro, que o chanceler considerava “inimigos do Império”.
Precisamente para tentar refrear estas forças de centro e de esquerda, Bismarck decidiu criar na Alemanha essas primeiras políticas próprias de um Estado de bem-estar social.
“É claro que ninguém [nem Bismarck, nem Caprivi] criou essas políticas devido a um reformismo benevolente”, escreveu Hoyer.
“Mudanças sísmicas da percepção de como funcionava a política haviam levado a uma situação em que as elites não podiam ignorar a vontade do povo.”
James Retallack destaca que Bismarck enfrentou o desafio político da esquerda com uma política de “chicote e cenoura” — as políticas de proteção social eram a cenoura, enquanto as leis antissocialistas eram o chicote.
“De alguma forma, o chicote era mais pesado e importante”, segundo ele. “A lei antissocialista ficou em vigor por 12 anos [1878-1890] e suas medidas eram draconianas. Elas levaram o partido social-democrata a operar nas sombras, seus líderes foram perseguidos e muitas associações e sindicatos foram extintos.”
“Publicações foram proibidas e, em algumas localidades, era quase uma lei marcial. Por isso, a classe trabalhadora e o movimento social-democrata sofreram mais com a lei antissocialista do que ganharam com a legislação do Estado de bem-estar”, destaca o professor.
Já a política econômica, embora trouxesse crescimento e aumento da riqueza do país, estava orientada a favorecer os interesses da aristocracia, dos latifundiários e dos grandes empresários.
No campo diplomático e militar, com a saída do poder de Bismarck — ocorrida em 1890, após a ascensão do novo e ambicioso kaiser Guilherme 2° —, a Alemanha cometeu uma série de erros que a deixaram isolada no cenário internacional.
Durante seu mandato, Bismarck elaborou uma série de acordos que procuravam manter o equilíbrio e evitar uma possível aproximação entre a França e a Rússia, uma aliança que era considerada uma ameaça.
Mas, nas décadas que se seguiram, o Segundo Reich não só descuidou desses delicados equilíbrios, mas também desencadeou uma série de ações desafiadoras do status quo, incluindo a organização de uma marinha poderosa para rivalizar com o Reino Unido.
Esta política acabou favorecendo a formação de uma aliança entre a Rússia e a França e, ao mesmo tempo, contribuiu para que a elas se somasse o Império Britânico. A Alemanha ficou em clara desvantagem e seu único aliado de peso era o Império Austro-Húngaro.
Além disso, as tentativas do Império Alemão de ganhar importância global foram rejeitadas pelas demais potências estabelecidas, que frequentemente consideravam que os alemães estavam se intrometendo nas suas áreas de influência, especialmente na Ásia e na África.
Saudades do Império?
O Segundo Reich chegou ao final com a derrota alemã na Primeira Guerra Mundial, mas o fracasso militar não foi o único responsável pelo seu desaparecimento.
“O país combateu em uma guerra total, na qual cada elemento da sociedade — de todas as classes — foi afetado de uma forma ou de outra, seja pelas mortes no campo de batalha ou pela fome extrema”, destaca Retallack.
“Este foi principalmente o resultado da derrota militar, mas também da insatisfação ante um Estado incapaz de alimentar sua população ou tratá-la de forma justa”, acrescenta ele.
“Por isso, entre 1916 e 1918, ocorreram diversas greves, inicialmente para reivindicar melhores salários e alimentos, mas que logo começaram a exigir um sistema de governo mais democrático. Assim, em 9 de novembro de 1918, veio a revolução e o kaiser Guilherme 2° foi obrigado a abdicar.”
Mas, então, por que existem alemães que têm saudades do Segundo Reich?
Katja Hoyer acredita que o principal atrativo daquele período para seus simpatizantes é ter sido uma época dominada por uma série de valores conservadores.
“As pessoas olham para aquela época como se fossem os ‘velhos e bons tempos’, que antecederam tudo o que deu errado para a Alemanha no século 20”, explica ela.
“Acredito que, para eles, o atrativo é a forma mais tradicional de governar o país. Eles imaginam que, se a Alemanha tivesse novamente um kaiser, o país voltaria a ter uma série de valores mais tradicionais. Ou seja, é uma forma de rejeitar os valores modernos presentes na forma em que a Alemanha se transformou recentemente”, explica Hoyer.
Já Retallack afirma que o sentimento de saudade depende um pouco da classe social de cada indivíduo.
“Muitos membros da classe trabalhadora, que constitui 60% ou 70% da população, provavelmente não olhariam com muita saudade para o período do Império Alemão”, segundo ele.
“Para os membros da classe média e da classe alta, existe um certo sentimento sobre a chamada belle époque [o nome francês às vezes utilizado para referir-se ao período anterior a 1914]. Mas isso ocorre porque se olha em retrospectiva, com lentes cor-de-rosa”, conclui Retallack.
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