- Author, André Biernath
- Role, Da BBC News Brasil em Londres
- Twitter, @andre_biernath
Layla Hassan tomou um susto quando percebeu que sua filha Laiza da Silva ganhou 20 quilos em apenas um ano.
À época, a menina tinha 6 anos — e a junção do histórico familiar com as observações do dia a dia da família acionaram um sinal de alerta na mãe.
“Entre meus parentes, todo mundo tem problema de sobrepeso, diabetes, colesterol… Isso é algo que sempre me preocupou”, relata Layla, que mora na cidade de Matinhos, no litoral paranaense.
“Também passei a observar que a Laiza não conseguia acompanhar os amiguinhos na escola. Ela corria um pouco e já ficava cansada. Ela sempre precisava deixar os exercícios e as brincadeiras, não tinha a mesma rapidez dos colegas… Em casa, preferia ficar no tablet, deitada”, relata a mãe.
“E ganhar 20 quilos em apenas um ano é muita coisa para uma criança pequena“, constata ela.
Hoje, Laiza está prestes a completar nove anos, e a vida da família passou por uma grande transformação. Alguns hábitos antigos saíram de cena e foram substituídos por outros.
“Não fizemos nada radical. Percebemos que não adiantava proibir algumas coisas, porque isso gerava uma vontade ainda maior nela”, diz Layla.
Um exemplo disso foi o refrigerante: a família passou a restringir o consumo e comprar versões zero açúcar. “Hoje em dia, ela criou um hábito novo e até estranha quando vai na casa de alguém que oferece uma bebida açucarada.”
Laiza também começou a praticar mais atividade física e realiza aulas de treinamento funcional duas vezes por semana.
O resultado da transformação apareceu rapidamente na balança. Desde que a família mudou o estilo de vida, a menina perdeu seis quilos e agora está conseguindo manter o peso — algo considerado positivo, uma vez que ela está em fase de crescimento.
“Fico feliz por vê-la correr e estar mais ativa”, comemora a mãe.
“Claro que, como pais, nós temos muito a melhorar ainda e nos cobramos bastante sobre isso. Muitas vezes, chegamos do trabalho cansados e, pela facilidade, compramos um lanche ou uma pizza”, admite a mãe.
“Os pais devem observar os filhos e não esperar que eles engordem muito para só aí procurar ajuda médica”, sugere ela.
A história de Laiza está longe de ser única no Brasil e no mundo. As taxas de excesso de peso e obesidade entre os menores de idade crescem numa velocidade que impressiona os especialistas.
E um estudo publicado em abril no The Lancet Regional Health – Americas conseguiu capturar como esse fenômeno ganha terreno em nosso país.
Nele, pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), da Universidade Federal da Bahia (UFBA), da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz), da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e da Universidade College London, no Reino Unido, avaliaram uma enorme quantidade de dados provenientes de três registros públicos: o Cadastro Único do Governo Federal, o Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos e o Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional.
A partir desses registros, eles conseguiram compilar informações de 5,7 milhões de crianças brasileiras de 3 a 10 anos, que nasceram entre 2001 e 2014.
“Esse é um número sem precedentes”, destaca o pesquisador Gustavo Velásquez Meléndez, professor titular da Escola de Enfermagem da UFMG e um dos autores da pesquisa.
Em resumo, o levantamento traz duas conclusões principais. A primeira é que as crianças brasileiras estão mais altas: aquelas que nasceram entre 2008 e 2014 têm 1 centímetro a mais, em média, em relação ao grupo que veio ao mundo entre 2001 e 2007.
Mas o dado que chama a atenção vem na sequência: uma parcela cada vez maior desse público está acima do peso.
Ao analisar o Índice de Massa Corporal (IMC), os autores descobriram que 30% dos meninos e 26,6% das meninas que nasceram entre 2008 e 2014 estão com excesso de peso ou obesidade.
Vale lembrar aqui que o IMC é uma conta matemática que considera o peso (em quilos) dividido pela altura (em metros) elevada ao quadrado. O resultado dessa equação indica se o indivíduo está abaixo, dentro ou acima do peso.
Anteriormente, entre aqueles que são de 2001 a 2007, essas taxas de sobrepeso estavam em 26,8% e 23,9%, respectivamente.
Em outras palavras, os índices recém-publicados revelam que um em cada três meninos e uma em cada quatro meninas estão longe dos parâmetros considerados saudáveis para as idades deles.
Inquéritos realizados no final dos anos 1980 e 1990 sugeriam que o sobrepeso infantil afetava ao redor de 5% das crianças brasileiras da época.
“A grandeza desses números chama a atenção, ainda mais por estarmos falando de uma população de baixa renda”, analisa Meléndez.
Os bancos de dados usados na investigação têm um enfoque maior nos mais pobres, que são candidatos a programas como o Bolsa Família.
“A obesidade pode se tornar um problema ainda maior num contexto de desigualdade social, em que os mais afetados não terão acesso aos recursos necessários para lidar com a condição, como uma dieta saudável ou tratamentos adequados”, complementa ele.
“Esse artigo publicado no The Lancet representa a junção de dados que já foram observados em outros trabalhos feitos no Brasil e no mundo nos últimos 30 anos, e reforçam a tendência de aumento da obesidade”, comenta o pediatra e nutrólogo Mauro Fisberg, coordenador do coordenador do Centro de Excelência em Nutrição e Dificuldades Alimentares do Instituto Pensi, em São Paulo.
“Esse aumento do excesso de peso ocorre numa idade cada vez mais precoce, de forma intensa e prolongada”, diz o especialista, que não esteve envolvido no estudo citado acima.
Mas o que explica essa explosão dos quilos extras entre os mais jovens?
Um problema pra lá de complexo
Por muitos anos, a obesidade foi erroneamente vista como algo simplesmente comportamental, como se o indivíduo engordasse por culpa própria, apenas por comer demais ou fazer pouco exercício. Felizmente, essa noção caiu por terra.
“De forma pragmática, o excesso de peso está ligado a um descompasso na equação entre consumo calórico e gasto energético”, raciocina Meléndez.
“Mas hoje sabemos que essa equação simples está inserida num contexto muito complexo, que envolve o indivíduo, a família, o ambiente, a economia e a política”, lembra o especialista.
Ou seja: a pessoa (ou a criança, no caso) não ganha peso porque quer ou por ser “descuidada”. Em primeiro lugar, há fatores genéticos, endocrinológicos e neuronais que contribuem para isso. Segundo, toda a forma como a sociedade está organizada nos dias atuais facilita o acúmulo de gordura no corpo.
“O crescimento do sobrepeso e da obesidade tem muito a ver com os hábitos de vida. Nas últimas décadas, nós tivemos um acesso facilitado a alimentos que são, ao mesmo tempo, muito baratos e muito calóricos. Eles não possuem um controle de qualidade ou informações claras no rótulo”, analisa a endocrinologista pediátrica Julienne Angela Ramires de Carvalho, do Hospital Pequeno Príncipe, no Paraná.
“Falamos aqui dos alimentos ultraprocessados, ricos em gordura, açúcar e sal. Para piorar, eles são muito palatáveis, então é fácil que as crianças gostem e se habituem a comê-los.”
A médica, que também é professora do Departamento de Pediatria da Universidade Federal do Paraná, ainda destaca que esses produtos são fáceis de preparar — o que facilita a vida de pais e mães que trabalham o dia inteiro e não têm muito tempo para planejar uma refeição.
“A praticidade é um fator determinante para as escolhas alimentares”, constata ela.
Em paralelo às mudanças na alimentação, os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil também destacam o avanço do sedentarismo, a partir da substituição paulatina de brincadeiras ativas — como o futebol ou o pega-pega na rua, por exemplo — por atividades passivas — caso dos jogos de videogame e dos vídeos postados na internet.
Os pesquisadores apontam que essa “troca” também está relacionada à insegurança, pois pais e responsáveis têm medo de deixar os filhos brincando fora de casa, e mais recentemente à pandemia de covid-19, que demandou um isolamento social para todas as faixas etárias por um tempo prolongado.
Complicações antecipadas
Engana-se quem pensa que as consequências dos quilos extras, como o desenvolvimento de doenças crônicas, infarto, AVC e câncer, só apareçam após a quinta ou sexta década de vida. Alguns efeitos já podem ser observados na própria infância, apontam os médicos.
“Em crianças com excesso de peso, há uma alta frequência de pressão alta, resistência à insulina e gordura no fígado”, lista a endocrinologista pediátrica Cristiane Kochi, da Sociedade Brasileira de Pediatria.
Um levantamento com 104 jovens realizado pelo Instituto do Coração (InCor), na capital paulista, revelou que 57% tinham valores indesejáveis de colesterol total e 55,4% estavam com o triglicérides acima dos limites.
“Esses desvios [nos valores de colesterol e triglicérides] estiveram relacionados à presença de obesidade e sobrepeso”, pontuam os autores do estudo.
Já um outro trabalho feito na Universidade Federal de São Paulo avaliou 220 crianças e adolescentes de 5 a 14 anos e detectou resistência à insulina em 33,2% deles. Um dos fatores que favoreciam o desenvolvimento dessa condição, que pode evoluir para diabetes, era o aumento da circunferência abdominal.
A Federação Mundial de Obesidade estima que, em 2020, 1,2 milhão de crianças brasileiras tinham pressão alta e 535 mil apresentavam altas taxas de açúcar no sangue por causa do excesso de peso.
O acúmulo de gordura também pode representar uma sobrecarga para os ossos e as articulações — e não raro os mais jovens apresentam dores nessas partes do corpo.
“Também chama atenção questões relacionadas à autoestima e ao risco de desenvolver quadros psicossociais. Vemos que esses indivíduos com sobrepeso nessa faixa etária sofrem mais com ansiedade e depressão”, acrescenta Kochi, que publicou pesquisas sobre esses temas pela Santa Casa de São Paulo.
Para completar, os médicos destacam que crianças com sobrepeso tendem a manter medidas acima do considerado saudável na adolescência e na vida adulta — o que abre alas para as mais diversas consequências à saúde, como doenças cardíacas e câncer.
“Essas crianças ficam expostas a uma incidência precoce de doenças crônicas e mortalidade”, resume o pesquisador Wolney Lisboa Conde, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).
“Com isso, quero dizer que as doenças que apareceriam aos 65 ou 70 anos já acometem esses indivíduos quando eles estão com 45 ou 50 anos”, detalha ele.
Mas, diante de um cenário tão grave, será que existem maneiras de lidar com o excesso de peso logo na infância?
O melhor caminho é a prevenção
Os médicos e pesquisadores ouvidos pela BBC News Brasil são unânimes em afirmar que é necessário pensar em estratégias preventivas e educativas capazes de conter o avanço da obesidade entre os jovens.
“E isso precisa envolver necessariamente toda a família. Não é a criança que faz as compras do mês ou que prepara as refeições. Os pais precisam ser educados por meio de campanhas de conscientização”, sugere Carvalho.
Kochi lembra que o Brasil possui diretrizes de dieta e atividade física que são referências no mundo inteiro, como o Guia Alimentar para a População Brasileira e o Guia de Atividade Física para População Brasileira, produzidos a pedido do Ministério da Saúde.
Na visão dela, esses documentos podem ser utilizados na prática e chegar às pessoas de uma maneira simples e didática.
Por meio dessas e de outras publicações, os pais podem aprender como preparar refeições fáceis e práticas para os filhos com ingredientes que sejam saudáveis e nutritivos, como legumes e verduras.
E toda a família pode mudar hábitos e adotar um estilo de vida mais ativo — priorizando as atividades que mexem o corpo em vez daquelas que envolvem ficar deitado ou sentado por longas horas.
“Precisamos explicar o que é o comer saudável e a importância de desenvolvermos cidades mais sustentáveis e seguras, com equipamentos públicos que estimulem o exercício”, pondera Kochi.
“Também precisamos cobrar por melhorias nos rótulos dos alimentos, para que todos possam entender o que há naquele produto, e fazer a regulação de propagandas voltadas para o público infantil de alimentos de baixíssima qualidade, ricos em açúcar e gordura”, defende Carvalho.
Os especialistas acrescentam que a prevenção da obesidade infantil começa antes mesmo do nascimento: as mulheres precisam ser acompanhadas e orientadas a manter um peso adequado durante a gestação, pois isso vai impactar na saúde do filho nos primeiros anos (e até pelo resto da vida dele).
“Depois, o aleitamento materno é outro ponto de atenção. Crianças que não foram amamentadas têm um risco maior de desenvolver excesso de peso”, destaca Kocchi.
“Portanto, o aleitamento materno exclusivo até o sexto mês de vida da criança é considerado um fator protetor contra a obesidade”, complementa ela.
E quando a criança já está acima do peso?
Em meio a essa discussão, não podemos ignorar o fato de que um terço dos meninos e um quarto das meninas do Brasil já pesam mais do que deviam — e, portanto, precisam receber algum tipo de cuidado.
Para elas, as mudanças de hábito citadas nos parágrafos anteriores — adotar uma alimentação equilibrada, reforçar a prática de exercícios físicos, etc. — são o primeiro passo fundamental.
Mas algumas vezes, essas estratégias sozinhas já não são mais suficientes.
“Os profissionais de saúde precisam ficar mais atentos para fazer o diagnóstico precoce e alertar as famílias”, sugere Meléndez.
“Mas não existe uma fórmula de tratamento única, que podemos indicar para todas as crianças”, constata Fisberg.
“Nós sabemos que, em muitos desses casos, fazer apenas a orientação de mudança de estilo de vida não é algo que vai resolver. Nas situações mais graves, pode ser necessário fazer tratamentos mais intensos, com medicações ou cirurgias”, resume o médico.
Geralmente, para crianças com sobrepeso que já apresentam doenças crônicas, os profissionais de saúde prescrevem remédios que controlam alguns desses indicadores, como a pressão arterial e o colesterol.
Já as medicações específicas contra a obesidade (como liraglutida e semaglutida, por exemplo) estão liberadas com prescrição de um especialista a partir dos 12 anos de idade. As cirurgias bariátricas, quando indicadas, também podem acontecer já na adolescência se necessário.
E aqui é importante que o planejamento alimentar seja feito com cuidado, com o auxílio de profissionais especializados no assunto. Isso porque estamos falando de indivíduos em fase de crescimento — e é preciso pensar no aporte adequado de calorias, vitaminas, minerais e outros elementos essenciais nessa fase da vida.
Ou seja, a estratégia nutricional precisa ter um balanço fino em prol do comer saudável, capaz de promover o desenvolvimento do corpo, sem exageros que gerem o acúmulo de gordura.
Lisboa Conde destaca a necessidade de reorganizar todo o sistema de saúde brasileiro, de modo que ele seja capaz de lidar com essa demanda crescente de casos de obesidade infantil — ainda mais diante da constatação de que o problema ganha relevância entre as camadas mais pobres da população, como visto no estudo publicado no The Lancet.
“E isso é um desafio para qualquer país. Mas o Brasil tem condições de criar esse programa, porque tem um serviço público de saúde bem estruturado e uma tradição em estratégias de acompanhamento e educação da população”, pontua o especialista.
“Precisamos ter protocolos claros sobre como fazer o manejo do ganho de peso nas crianças”, acredita ele.
Afinal, um problema tão complexo e multifacetado quanto esse não terá uma única solução. É preciso agir em várias frentes de saúde individuais e coletivas para prevenir o sobrepeso sempre que possível — e oferecer tratamento àqueles que precisam.
Isso é algo que, de um jeito ou de outro, precisará ser encarado de frente: o Atlas da Federação Mundial de Obesidade lançado neste ano aponta que, se nada for feito, 20 milhões de crianças brasileiras terão sobrepeso em 2035. Isso representará 50% da população infantil do país num futuro nem tão distante assim.
Fonte: BBC
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