- Author, Fernanda Paúl
- Role, BBC News Mundo
A invasão da Ucrânia pela Rússia dividiu o mapa geopolítico do mundo.
Como se fosse um jogo de xadrez, as duas forças envolvidas na guerra movem suas peças de maneira cautelosa para reunir o maior apoio possível.
Nessa complexa equação, a América Latina não é exceção e despertou o interesse tanto de Moscou quanto de Kiev.
O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, se reuniu virtualmente com alguns dos líderes da região, incluindo o presidente do Chile, Gabriel Boric, com quem conversou em 21 de março. Os dois discutiram a possibilidade de conseguir “maior consolidação” do apoio dos países latinos a seu país.
Neste esforço, o líder ucraniano falou ao Congresso chileno, naquela que foi sua primeira intervenção perante um parlamento latino-americano.
Em julho de 2022, o único encontro pessoal de Zelensky com um presidente da região foi realizado em Kiev, quando ele conheceu seu colega Alejandro Giammattei, da Guatemala.
Vladimir Putin, por sua vez, continuou estreitando laços com ex-aliados, como Venezuela, Nicarágua e Cuba, além de lançar uma campanha de comunicação a seu favor através da mídia estatal com presença em diferentes países da região.
Apesar desses esforços, a posição da maioria dos países latino-americanos à Rússia ou à Ucrânia tem sido ambíguo, no mínimo. Especialistas em relações internacionais descreveram essa posição como “neutra”, lembrando o longo histórico de “não-alinhamento” em grandes conflitos de poder.
Ainda assim, é preciso reconhecer que houve alguns sinais importantes a favor de Kiev.
Em fevereiro, a maior parte da região votou a favor da resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas que pedia o fim das hostilidades e exigia que a Rússia “retirasse imediata, completa e incondicionalmente suas forças militares do território da Ucrânia”.
Até agora, no entanto, nenhum país latino-americano foi além de declarações diplomáticas.
Exemplo disso é a recusa de alguns países em enviar armas para a Ucrânia, apesar das pressões dos Estados Unidos e da Alemanha. Até o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, se ofereceu para substituir as armas militares dos países latino-americanos (fabricadas na Rússia) por um arsenal americano mais moderno. Mas a proposta não foi bem-sucedida.
“Mesmo que elas acabem como sucata na Colômbia, não entregaremos as armas russas para serem levadas à Ucrânia para prolongar a guerra”, respondeu Gustavo Petro, presidente da Colômbia. “Não estamos de nenhum lado. Somos pela paz”, acrescentou.
Resposta semelhante foi dada por outros presidentes, como o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e seu colega argentino Alberto Fernández, em decisão que foi interpretada por Moscou como um gesto simpático da região para seu país.
Por outro lado, apesar de Zelensky ter pedido à América Latina que introduzisse sanções contra a Rússia, a grande maioria dos países não atendeu ao pedido.
O que está por trás dessa suposta “neutralidade”? E o que está em jogo para os vários países latino-americanos quando se trata de apoiar a Rússia ou a Ucrânia no conflito?
A BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, listou 4 pontos-chave que respondem a essas perguntas.
1. O poder da China
Desde o início da guerra, o relacionamento da Rússia com a China tem sido fundamental para resistir a essa pressão.
Pequim absorveu grande parte das exportações russas de hidrocarbonetos, amenizando assim o impacto das sanções ocidentais na economia do país euro-asiático.
Segundo o governo dos Estados Unidos, Xi Jinping considera agora a possibilidade de enviar armas e munições para a Rússia, algo que o governo chinês nega categoricamente.
Ainda que Xi Jinping se esforce para se posicionar como um facilitador da paz – e não como um forte aliado de Putin -, a verdade é que seus sinais amistosos ao Kremlin colocaram o mundo em alerta, inclusive a América Latina, que atualmente mantém estreitas relações comerciais com os chineses.
Só nos últimos 20 anos – entre 2000 e 2020 – o comércio entre a região e a China aumentou 26 vezes, passando de US$ 12 bilhões para US$ 310 bilhões, segundo dados das Nações Unidas.
Para vários países da América do Sul – como Chile, Peru, Colômbia, Brasil e Argentina -, a China é hoje um parceiro essencial para o qual se dirige grande parte das exportações, como minerais (incluindo cobre) ou alimentos (como soja).
Por isso, os especialistas ouvidos pela BBC News Mundo concordam que a amizade de Xi Jinping com Putin deve ser acompanhada de perto pelas nações latino-americanas.
“Dada a influência que a China tem em termos econômicos na América Latina, e especialmente na América do Sul, eles devem levar em conta essa situação e pensar em como o apoio a um ou outro país pode afetá-los”, diz Margaret Myer, diretora do Departamento de Ásia e América Latina no Centro de Estudos do Diálogo Interamericano.
“Acho que é parte das razões que explicam por que o Brasil não tem criticado fortemente o que está acontecendo com a guerra na Ucrânia”, acrescenta.
Para Pamela Aróstica, diretora da Rede China e América Latina: Abordagens Multidisciplinares (Redcaem), não se pode ignorar que a invasão russa à Ucrânia ocorre em um contexto de guerra comercial entre Estados Unidos e China. “É uma questão muito mais profunda”, diz.
“Eles estão em uma competição para saber quem será a superpotência nos próximos anos. E é por isso que é tão importante para a China ter um bloco oriental. Ela precisa de aliados do calibre de países como a Rússia e regiões inteiras como a América Latina”, diz.
Doutora em Ciência Política, Aróstica acrescenta: “Já passou o tempo das sutilezas, agora é muito mais frontal. Somos amigos ou não? Estão comigo ou não? É por isso que muitos países latino-americanos mantiveram uma atitude ambivalente por medo das consequências”.
Aróstica diz que também é preciso ter em mente a crise econômica que atinge muitos países latino-americanos e o papel da China como fonte de empréstimos.
“Os países precisam avaliar a irritação da China e as implicações que isso pode ter ao querer acessar, por exemplo, um empréstimo.”
Visão semelhante é compartilhada por John Griffiths, chefe de Estudos de Segurança e Defesa da Fundação AthenaLab, um think tank chileno focado em assuntos internacionais, segurança e defesa.
“No campo estratégico, todo país latino-americano deve considerar sua relação com a China para realizar sua política de relações exteriores. E há alguns interesses que têm feito com que várias nações da região não condenem com mais veemência a agressão da Rússia contra a Ucrânia”, afirma.
Embora os laços comerciais diretos entre a Rússia e a América Latina não sejam tão difundidos – representa, por exemplo, apenas 0,6% das exportações da região -, existem alguns países e setores que podem sofrer um impacto maior em caso de rompimento das relações com Moscou.
Manteiga, salmão, queijo e frutas como maçã, banana e pera, que são produzidas em lugares como Paraguai, Chile, Argentina, Equador, Brasil e Colômbia, têm a Rússia como um de seus principais destinos.
Em relação às importações, embora a Rússia também tenha uma baixa participação global no continente, envia alguns produtos estratégicos para a produção. É o caso dos fertilizantes, fundamentais para produtores agrícolas como Argentina e Brasil.
No ano passado, de fato, Putin garantiu ao então presidente brasileiro Jair Bolsonaro (PL) que a Rússia estava “comprometida” em garantir o “fornecimento ininterrupto” de fertilizantes.
O Brasil importa mais de 80% dos fertilizantes que utiliza e a Rússia é o principal fornecedor.
Segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), a Rússia também é um “importante fornecedor de alguns insumos essenciais para a produção de conversores catalíticos e semicondutores”. Portanto, a escassez pode pressionar ainda mais o setor automotivo, setor que já enfrenta restrições de insumos.
Mas, para além do estritamente econômico e comercial, a verdade é que a Rússia também mantém relações políticas de longa data na região que não são fáceis de romper.
Um pequeno mas relevante grupo de países latino-americanos demonstrou simpatia direta e aberta pela posição da Rússia no conflito. A Venezuela é um deles, já que a Rússia é um pilar importante para política e questões militares do país. Cuba, Nicarágua e Bolívia também expressaram seu apoio a Putin em oposição aos Estados Unidos.
Por outro lado, é importante notar que a guerra na Ucrânia coincide com a chegada de uma nova onda de presidentes de esquerda à América Latina, apoiados por coalizões que historicamente têm afinidade com a então União Soviética.
Desde 2018, a presidência do México, Argentina, Bolívia, Peru, Honduras, Chile, Colômbia é ocupada por esses líderes. Já Lula, do PT, assumiu no início deste ano após derrotar Bolsonaro.
“Muitos desses países historicamente estiveram alinhados com a Rússia. Portanto, não é tão fácil para os governos dizerem que são a favor da Ucrânia”, aponta Pamela Aróstica.
Já Luis Beneduzi, especialista em questões latino-americanas da Universidade Ca’ Foscari de Veneza, acredita que “para muitos líderes, estar com a Ucrânia é estar com os Estados Unidos”.
“A história do imperialismo estadunidense é muito importante para pensar na reação desses países que hoje vivem uma mudança progressiva”, acrescenta.
O caso de Gabriel Boric, no Chile, talvez seja uma posição que quebra essa regra, já que desde o início do conflito ele foi enfático em condenar Putin pela invasão. Mas, segundo especialistas consultados pela BBC News Mundo, os demais líderes têm dado fracos sinais de apoio.
Lula, por exemplo, agora se oferece como mediador pela paz. No entanto, segundo analistas internacionais, sua posição pode acabar favorecendo Moscou.
“As tentativas de mediação provavelmente vão favorecer a Rússia. A Ucrânia precisa lutar para libertar seus cidadãos. Moscou pode concordar com um cessar-fogo para ‘congelar’ a linha de frente e manter o controle dos territórios ocupados, enquanto espera ganhar força e confiança suficientes para avançar”, diz Keir Giles, consultor-sênior do Programa Rússia e Eurásia da Chatam House.
Assim, apesar de muitos insistirem em chamar a América Latina de “quintal” dos Estados Unidos, a verdade é que a multiplicidade de posições em relação à invasão russa da Ucrânia mostra que Moscou ainda desperta simpatia no continente.
3. Laços com os Estados Unidos e o Ocidente
Mas não é tão fácil para a América Latina virar as costas para a Ucrânia, fortemente apoiada pelos Estados Unidos e pelo Ocidente.
Existem laços comerciais, políticos e militares profundos e duradouros com esses blocos.
Em termos comerciais, por exemplo, 42% das exportações totais da região (equivalente a 8,5% do PIB regional) vão para os Estados Unidos, superando até a China.
Segundo a Cepal, a União Europeia atrai 9% das exportações, e somente em 2022 aumentou 26% em relação ao ano anterior.
Os principais parceiros comerciais dos Estados Unidos são México, Brasil, Chile, Colômbia e Peru.
O México é especialmente importante nesse cenário porque, ao compartilhar uma fronteira de mais de 3 mil quilômetros com os Estados Unidos, possui um vínculo que vai muito além das relações diplomáticas e oficiais.
Eles não só são parceiros comerciais estratégicos: de acordo com o Departamento de Estado dos EUA, em 2021, o comércio de bens e serviços entre os dois países ultrapassou US$ 720 bilhões, tornando o México o segundo maior parceiro comercial dos Estados Unidos.
Por outro lado, os dois países vizinhos também precisam lidar com questões complexas, como a imigração e a cooperação em matéria de segurança.
Embora o presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, não tenha cedido às pressões da Ucrânia para impor sanções econômicas e políticas à Rússia – e também não quis enviar armas a Kiev -, ele votou a favor da resolução da ONU que pedia à Rússia o fim da hostilidade contra a Ucrânia, em fevereiro.
Desta forma, Obrador tem feito malabarismos para tentar permanecer o mais neutro possível, argumentando que seu país é pela “paz e diálogo”.
Por outro lado, um elemento importante que vários países latino-americanos devem levar em conta ao analisar seu apoio à Ucrânia é a forte relação do ponto de vista militar com o Ocidente.
Essa é a opinião da cientista política e especialista em relações internacionais Paulina Astroza.
“Há uma parte importante dos países latino-americanos que sempre vai acompanhar os Estados Unidos por uma questão de segurança. É o caso da Colômbia ou de muitos países da América Central que dependem militarmente dos Estados Unidos”, diz Astroza.
Uma opinião semelhante é mantida por John Griffiths.
“A Força Aérea do Chile, por exemplo, depende de sua aliança com os Estados Unidos, de sua frota de caças F16. A Marinha do Chile também é muito dependente do Ocidente, e o Exército tem uma frota blindada que é alemã. Peru, Brasil e Colômbia são mais ou menos parecidos. A Colômbia tem uma relação de décadas com os Estados Unidos, e não é porque hoje existe um governo ideologicamente de esquerda que essa relação desapareceu”, diz.
Os especialistas concordam que, apesar dos fortes laços que várias nações latino-americanas têm com países ocidentais, a Ucrânia e os líderes que a apoiam – como Joe Biden – ainda esperam um sinal mais claro de apoio da região.
E essa pressão, acrescentam, só continuará a aumentar enquanto a guerra não acabar.
4. Apoio interno
Há outro elemento importante que os países latino-americanos devem avaliar ao apoiar a Rússia ou a Ucrânia: o que seus próprios cidadãos pensam sobre a guerra.
Neste ponto, é fundamental ter em mente que, para muitos latino-americanos, este é um conflito distante, explica Juan Pablo Toro, membro do Royal United Service Institute (RUSI), instituição sediada no Reino Unido que reúne especialistas em defesa e segurança.
“Dada a crise de segurança na América Latina, as pessoas se perguntam por que dar importância para uma guerra a milhares de quilômetros de distância se não podem sair às ruas por causa do domínio do narcotráfico. Em relação às questões de segurança, a prioridade começa pela interna”, aponta.
Assim, explica, há mais incentivos para adotar uma posição neutra diante do conflito.
“Dizer às pessoas que o que está em jogo aqui é legalidade, soberania e um sistema internacional baseado em regras é muito difícil. Além disso, ninguém sabe o que vai acontecer e, no final das contas, apoiar a Ucrânia é se indispor com um inimigo que também é amigo de China”, diz Toro, que também é diretor-executivo da AthenaLab.
Por outro lado, os governos latino-americanos – muitos deles de esquerda – foram pressionados por suas próprias coalizões políticas.
É o caso de Boric, que chegou ao poder pelas mãos do Partido Comunista Chileno (PC). Durante a invasão russa, em fevereiro de 2022, este partido condenou a Rússia mas também os Estados Unidos e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) pelos seus “desejos expansionistas” que, segundo eles, “aumentaram o perigo de guerra”.
Além disso, o partido se opôs ao discurso do líder ucraniano perante o parlamento chileno, criando um problema interno para Boric.
“A decisão de Boric de apoiar a Ucrânia com tanta força gerou custos e intimidações de sua própria base de apoio”, diz Paz Zárate, advogado chileno especializado em direito internacional público.
“Boric assumiu um compromisso pessoal com os direitos humanos, independentemente do país. Talvez não sinta, como outros presidentes latino-americanos, uma identificação com os tempos soviéticos”, acrescenta.
Mais de um ano após a invasão russa da Ucrânia, analistas de política internacional concordam que a cada dia haverá mais pressão para que os países latino-americanos tomem uma posição definitiva sobre a guerra.
Embora a neutralidade possa ser um bom aliado para muitos países da região, as grandes potências estão ansiosas para exibir seu apoio em um mundo cada vez mais polarizado e, às vezes, ao estilo da Guerra Fria.
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