- Matheus Magenta
- Da BBC News Brasil em Londres
Os termos “corrupção”, “corrupto”, “corrupta” e “bandido” ou “corrupto de estimação” dominaram a briga política brasileira nos últimos anos.
Entre vazamentos, acusações, denúncias, condenações, absolvições e anulações de sentenças, especialmente no âmbito da Operação Lava Jato, esse tema foi fundamental para a vitória de Jair Bolsonaro em 2018.
Mas a história parece um pouco diferente para 2022. Institutos de pesquisa apontam que a corrupção que dominou a política desde a Operação Lava Jato, que levou a quase 360 condenações e garantiu a recuperação de quase R$ 17 bilhões aos cofres públicos, deve ter agora bem menos importância entre os eleitores.
Mas o que afinal é ser corrupto? Quais são as causas e como se previne? O conceito de “jeitinho brasileiro” e a expressão “rouba, mas faz” atestam que a cultura brasileira é corrupta? Por que um país tem mais corrupção que outro? A corrupção do dia a dia é a base da corrupção dos poderosos? Vale tudo, inclusive burlar as leis, pelo objetivo de acabar com os corruptos no poder?
Não há respostas fáceis para essas questões comuns no debate político brasileiro.
Para alguns especialistas, a corrupção do dia a dia surge da desigualdade econômica e da falta de confiança entre as pessoas. Outros falam em outras explicações, como cultura corrupta, sistema político-eleitoral falho, impunidade e excesso de burocracia.
Por isso, a BBC News Brasil explica abaixo as origens da corrupção e o que de fato ela significa na teoria e na prática. Em seguida, mergulha nas causas e nos impactos amplamente negativos. Depois, mostra como se mede a corrupção e como é possível combatê-la. E por fim, apresenta como a Operação Lava Jato levou o tema ao centro do debate político e como acusações de corrupção se tornaram uma poderosa arma política no Brasil.
As origens da corrupção
“A corrupção é tão antiga quanto a história humana”, afirma uma dupla de pesquisadores e professores da Universidade de Glasgow, o indiano Asit Biswas e a mexicana Cecilia Tortajada, em artigo sobre o tema.
Segundo eles, há registros de corrupção durante a primeira dinastia do Egito Antigo, há quase 5 mil anos, na China Antiga e na Grécia Antiga.
O historiador grego Heródoto, por exemplo, escreveu que a poderosa família Alcmeônidas subornou sacerdotisas do oráculo de Delfos por volta de 1.400 a.C. para o obter apoio político de Esparta para governar Atenas, em troca da reforma do templo de Apolo com pedras de mármore. “Como funcionou, Aristóteles ressaltou que até mesmo os deuses podem ser subornados”, escrevem Biswas e Tortajada.
A palavra corrupção deriva do termo (e seus derivados) em latim corruptione, que significa putrefação, decomposição e adulteração, explica a historiadora e professora brasileira Adriana Romeiro (UFMG) no livro Corrupção e Poder no Brasil: Uma História, Séculos 15 a 18.
A conotação mais política do termo corrupção, explica a pesquisadora, remonta à Grécia Antiga, quando se falava na perversão de um regime político em relação a um modelo ideal, como a tirania enquanto degeneração da monarquia.
Nos últimos cinco séculos, duas grandes acepções estiveram em voga: uma física, ligada à degradação material, e outra metafórica, aplicada a questões morais, judiciais, religiosas e de costumes. “Uma das representações mais comuns do processo de corrupção era aquela que descrevia o corpo místico da República tomado pela enfermidade, corroído até as entranhas por governantes tirânicos que sugavam as forças dos vassalos.”
No Brasil, já se falava no período colonial das causas e das consequências dessa corrupção, principalmente ligada ao contrabando. Em geral, isso passava por “amor excessivo às riquezas”, ambição e avareza, “vícios privados que maculavam o governo político, levando os vassalos à pobreza”. E qual era a forma dessa corrupção?
“Nem sempre tais práticas assumiam uma feição estritamente econômica, envolvendo algum tipo de vantagem material, mas, ao contrário, podiam se referir a questões morais e religiosas, como a heresia, a falta de caridade para com os pobres, o uso de violência contra os governados, entre outras”, conta Romeiro.
A pesquisadora faz ressalvas, no entanto, para os riscos de se avaliar práticas legais e aceitas de séculos anteriores a partir de leis, padrões da burocracia liberal e valores morais atuais. Como, por exemplo, o clientelismo, que consiste em trocas de favores, privilégios e apoios, que era amplamente praticado no Brasil nos últimos séculos, mas que só seria criminalizado no país no século 20.
“A generalização da corrupção nos negócios coloniais, em praticamente todas as esferas da administração colonial, indica que não se tratava de um mero desvio ou uma aberração, mas, sim, de um componente essencial do seu funcionamento”, afirma Romeiro.
O jeitinho brasileiro
Essa visão está ligada também ao famoso jeitinho brasileiro, que costuma ser bastante associado à corrupção do dia a dia mais praticada e tolerada. Segundo a pesquisadora Fernanda Duarte, o tal jeitinho envolve quebrar regras de forma consciente (e simpática) em busca de soluções rápidas para problemas imprevistos ou diante do excesso de burocracia ou formalidade. E para muitos ele faz parte (ou é a essência) da identidade nacional.
Em Brasil: Uma Biografia, as historiadoras Heloísa Starling (UFMG) e Lilia Schwarcz (USP) lembram que a corrupção não é algo exclusivo do Brasil e sempre existiu, mas, aqui, ela “costuma ser associada à própria identidade do brasileiro, como se esse fosse um destino inevitável; quase uma questão endêmica”.
Starling e Schwarcz explicam que, segundo essa visão, “o Brasil seria forçosa e definitivamente corrupto devido a certas práticas e comportamentos — o ‘jeitinho’, a malandragem, o político ladrão — que, desde sempre presentes na nossa história, fazem parte de um suposto caráter do brasileiro, o que formaria uma espécie de ‘cultura de corrupção'”.
Mas Starling e Schwarcz consideram essa visão preconceituosa e prejudicial ao combate da corrupção, por naturalizar esse comportamento e por “desvalorizar as atitudes e os movimentos de opinião pública que expressam a revolta dos brasileiros contra essa prática”.
O que é corrupção e quais são suas causas?
Em artigo sobre o tema, o pesquisador e cientista político brasileiro Luiz Fernando Miranda explica que o conceito de corrupção é tão amplo que chega quase ao ponto de haver uma definição para cada especialista no tema.
A partir da análise das definições apresentadas por teóricos ao longo de décadas, Miranda apresenta seu próprio conceito: “o pagamento ilegal (financeiro ou não) para a obtenção, aceleração ou para que haja ausência de um serviço feito por um funcionário público ou privado. A motivação da corrupção pode ser pessoal ou política tanto para quem corrompe quanto para quem é corrompido”.
Essa prática ocorre, segundo o pesquisador, da seguinte forma: “um sujeito A (com motivação pessoal ou política) que deseje corromper o sujeito B (com motivação pessoal ou política) oferece um serviço ou presente ou propina e obtém em contrapartida um serviço (ou sua ausência)”.
Miranda ressalta que há pelo menos três tipos de corrupção: 1. a grande corrupção (exemplo: funcionário público recebe propina para direcionar licitação para determinada empresa); 2. a corrupção burocrática ou pequena corrupção (exemplo: dono de restaurante oferece refeições a um fiscal em troca da não fiscalização do seu estabelecimento); 3. a corrupção legislativa (exemplo: parlamentar recebe doações, propinas ou presentes para votar a favor de um lei que beneficia aquele que lhe entregou algo.
Mas quais são as causas de todas essas práticas?
Para o cientista político e professor americano Eric Uslaner, da Universidade de Maryland (EUA), um dos maiores especialistas no assunto, as raízes da corrupção estão na desigualdade econômica e na falta de confiança entre as pessoas de grupos sociais diferentes. Num ciclo vicioso, ambas são alimentadas pela corrupção, e “por isso que é tão difícil de erradicá-la”, escreve no livro Corruption, Inequality, and the Rule of Law (Corrupção, Desigualdade e Estado de Direito, em tradução livre).
Uslaner ressalta o papel das instituições nesse ciclo, mas diz que “elas não são autônomas, então mudanças em estruturas políticas sozinhas não são o bastante para reduzir desigualdade ou corrupção”.
Com base em dados de pesquisas ao redor do mundo, Uslaner afasta outras hipóteses tradicionais, como fatores culturais de países que supostamente toleram mais a corrupção.
“Sociedades desenvolvem ‘cultura de corrupção’ porque elas estão aprisionadas em ciclos viciosos de alta desigualdade, baixa confiança entre pessoas de grupos diferentes e corrupção elevada. (…) Nessas ‘culturas de corrupção’, as pessoas pagam porque não há outra saída. Elas estão presas na armadilha da desigualdade e dificilmente estão felizes com isso. Onde a corrupção de alto nível corre desenfreada, as mesmas pessoas que em tese seriam ‘tolerantes’ com condutas ilegais se ofendem com as táticas ilícitas que os poderosos usam para enriquecer.”
Segundo o pesquisador, “enquanto a pequena corrupção ajuda um número grande de pessoas a enfrentar os corrompidos setores público e privado, nos quais serviços cotidianos são raramente oferecidos com regularidade, a grande corrupção enriquece poucas pessoas”. Em geral, países com mais corrupção dos poderosos enfrentam também bastante corrupção cotidiana.
Para Uslaner, porém, a pequena corrupção (como a propina para o agente na blitz da Lei Seca ou furar fila ou não devolver o troco errado) gera pessimismo, mas não afeta muito a confiança das pessoas umas nas outras porque essas atitudes não geram grandes desigualdades sociais. Ou seja, não mudam a percepção geral de que os recursos públicos não estão sendo distribuídos pelos governantes de forma menos justa.
Além disso, afirma o pesquisador, reduzir a prática de pequena corrupção na sociedade como um todo é obviamente um objetivo válido, mas isso não vai sanar a questão da grande corrupção entre os poderosos.
Por outro lado, escreve Uslaner, a grande corrupção praticada pela elite política e econômica tem dois efeitos: abala a confiança entre os cidadãos e gera desigualdade (com autoridades e empresários enriquecendo ilegalmente).
“Quando as pessoas veem a corrupção enraizada na distribuição desigual de riqueza e justiça, é provável que se tornem cínicas em relação ao mundo ao seu redor. Esse cinismo levará a uma maior lealdade ao seu próprio grupo, a acreditar que os grupos externos (incluindo os ricos) não são confiáveis, e levará também a uma maior disposição de fazer o que for necessário para sobreviver em um mundo corrupto. Essas percepções de desigualdade se alimentam de si mesmas — e as pessoas sentem que estão presas em um mundo corrupto onde os ricos ficam mais ricos e os pobres dependem de seus benfeitores”, afirma ele.
Por outro lado, por vezes a corrupção é tão presente que às vezes pessoas envolvidas nessas práticas alegam que estavam “apenas seguindo as regras do jogo”. Ou seja, segundo essa visão, uma empresa perderá dinheiro caso não se envolva em negócios escusos porque essas práticas continuarão acontecendo e quem não paga propinas, por exemplo, sai perdendo em disputas por contratos públicos.
Há quem defenda também que a corrupção, em países com burocracia excessiva e outros problemas, serve como uma espécie de óleo que azeita as engrenagens públicas.
Na visão de estudiosos como o cientista político americano Samuel Huntington, por exemplo, a corrupção pode ter algum lado positivo ao facilitar processos burocráticos ou até permitir o aquecimento da economia, com empresas ganhando contratos, gerando emprego e renda. Outro exemplo dessa visão passa por alguns negócios informais, sem registro com órgãos públicos, que teriam funcionamento garantido graças a práticas como conivência ou pagamento de propina a fiscais ou agentes de segurança.
Estudos recentes, porém limitados, têm reforçado essa associação de corrupção e progresso, mas ainda é consenso entre especialistas no tema de que os efeitos da corrupção são extremamente nocivos para a sociedade como um todo.
Além disso, a corrupção é tão presente nas disputas políticas que alguns nomes acabam se apropriando das acusações para tentar se beneficiar de alguma forma. É o caso do “rouba, mas faz”, lema surgido em torno da trajetória do político Adhemar de Barros, que governou São Paulo nos anos 1960.
Em sua dissertação de mestrado sobre o tema, a jornalista e historiadora Luiza Cotta conta que “Adhemar ganhou rapidamente fama como um político empreendedor que não primava pela honestidade em relação aos cofres públicos”. O slogan “rouba, mas faz” acabou se tornando bandeira desavergonhada de seus apoiadores fiéis, mesmo que o político sempre tenha negado a prática de crimes.
Desde então a expressão se tornou popular na política nacional, em geral para defender políticos sob o argumento de que “todos roubam, mas pelo menos esse faz alguma coisa pelo povo”.
Quão corrupto é o Brasil em relação a outros países, e como se mede isso?
Há enormes obstáculos para se calcular tanto a dimensão da corrupção nas sociedades quanto o tamanho dela em dinheiro. Um estudo da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), por exemplo, apontou em 2010 que o custo médio anual da corrupção no Brasil chegava a até 2,3% do PIB (soma de todas as riquezas produzidas no país). Ou seja, cerca de R$ 172 bilhões em valores de 2020, o equivalente a cinco anos de Bolsa Família, programa que beneficiou quase 15 milhões de famílias brasileiras naquele ano.
Mas a grande maioria dos especialistas nessa área refuta esses cálculos porque a corrupção, por natureza, é um crime que se mantém nas sombras. Por isso, não se tem ideia dos valores envolvidos na corrupção praticada que ainda não foi descoberta.
Além disso, quanto mais alta a posição ocupada pela pessoa acusada desse tipo de prática, menores são as chances de ela que deixe rastros óbvios dos crimes cometidos. Isso não é exclusividade brasileira. Segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, encontrar provas diretas de propina, especialmente quando há políticos e empresários poderosos envolvidos, é um “desafio global”.
Apesar dos obstáculos, há diversas iniciativas que tentam medir o tamanho da corrupção ao redor do mundo. Uma mais famosas é o Índice de Percepção da Corrupção, da ONG Transparência Internacional, que agrega fontes de dados como entrevistas com especialistas e executivos de grandes empresas privadas sobre o nível de corrupção no setor público.
Segundo a entidade, “o Brasil permanece estagnado em um patamar ruim”. Em 2020, o país melhorou sua nota de percepção — de 35 para 38 pontos — mas essa oscilação aconteceu dentro da margem de erro da pesquisa. Quanto mais baixo o número, pior.
O índice brasileiro está abaixo da média do grupo Brics, que inclui Brasil, China, Índia, Rússia e África do Sul (39), da média regional para a América Latina e o Caribe (41) e mundial (43) e ainda mais distante da média dos países do G20 (54) e da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE (64).
No total, o Brasil ocupava em 2020 a 94ª posição nesse ranking da Transparência Internacional com 180 países — atrás de Colômbia, Turquia e China, e empatado com Etiópia, Cazaquistão, Peru, Sérvia, Sri Lanka, Suriname e Tanzânia.
“Em 2020, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que a corrupção era um problema do passado. Ele estava errado. A corrupção continua a ser um problema sistêmico no Brasil, que contamina a democracia e impede o desenvolvimento sustentável e socialmente justo do país. Não é através de soluções populistas e autoritárias que se constrói um país íntegro. É através de leis, instituições e, principalmente, uma cidadania livre, consciente e ativa na luta por seus direitos”, afirmou a Transparência Internacional em relatório sobre o país.
Em outubro de 2020, a Transparência publicou uma atualização de um relatório chamado Brasil: retrocessos nos marcos jurídicos e institucionais anticorrupção, em que listava altos e baixos da trajetória brasileira. Entre os destaques positivos estavam a forte mobilização da sociedade pelo combate à corrupção e a adoção do método de transferência bancária Pix, que aumentava a capacidade de rastrear a movimentação de dinheiro.
Do lado negativo, a entidade apontou medidas do governo Bolsonaro que, segundo a entidade, levaram a uma “perda grave de independência da Procuradoria-Geral da República e (a um) aumento da ingerência política sobre órgãos como a Polícia Federal e o sistema brasileiro de inteligência”.
Para a OCDE, no governo Bolsonaro houve um recuo no combate à corrupção com o fim “surpreendente da Lava Jato”, o uso da lei contra abuso de autoridade e dificuldades no compartilhamento de informações de órgãos financeiros para investigações.
O governo federal não fez nenhum comentário sobre o relatório da Transparência Internacional nem sobre as críticas da OCDE. Em outubro de 2020, Bolsonaro disse em tom irônico que tinha acabado com a Lava Jato porque não havia mais corrupção no governo. “Eu sei que isso não é virtude, é obrigação.”
O combate à corrupção e o impacto da Lava Jato
Para o pesquisador Eric Uslaner, o ponto-chave para reduzir a corrupção passa por fazer com que as pessoas dependam menos dela, principalmente com a redução da armadilha da desigualdade social. “A pequena corrupção não é um fim em si mesma. Ela serve para manter no poder líderes que assaltam os cofres públicos e se tornam ricos (com seus comparsas). (…) Uma vez que as pessoas acham uma forma de serem bem-sucedidas na vida sem depender de líderes corruptos, elas tendem a rejeitar mais as condutas ilegais na vida pública.”
A Transparência Internacional lista cinco medidas contra o problema: fim da impunidade, reformas administrativas e financeiras com fortalecimento de órgãos de controle, aumento da transparência e do acesso à informação pública, empoderamento dos cidadãos e fechamento das brechas que permitem o envio para o exterior de dinheiro obtido de forma ilícita.
Para Susan Rose-Ackerman, da Universidade Yale (EUA), a punição de pessoas corruptas é importante, mas ela não basta para reduzir a corrupção. “A questão não é só identificar as ‘maçãs podres’ e aumentar o tempo de prisão dos envolvidos em corrupção. Não que isso não deva ocorrer, mas o problema sistêmico da corrupção não será resolvido só colocando o pessoal na cadeia”, afirmou ela em entrevista à revista Época em 2016.
No caso brasileiro, a pesquisadora americana tem defendido medidas como redução do número de partidos (o que reduziria as negociações por vezes ilegais por apoio no Congresso), aprimoramento do sistema de financiamento de campanhas eleitorais, aumento do controle de bancos contra lavagem de dinheiro, maior transparência, regulação da atividade de lobistas no Executivo e no Legislativo e menor liberdade de funcionários públicos em decisões sobre recursos públicos (como licitações).
Em Brasil: Uma Biografia, Heloísa Starling e Lilia Schwarcz afirmam que “enfrentar a corrupção exige controle público, transparência das ações dos governantes e um processo de formação — no sentido do aprendizado — de uma cultura republicana que seja exercitada cotidianamente pelo brasileiro comum em sua relação com o país”.
Mas esse processo não está livre de efeitos colaterais. “Cresceu no Brasil a reação pública contra atos de corrupção, e se tornou mais visível o fato de que esses atos têm sido um elemento constante na cena política nacional. Evidentemente há riscos. O entendimento da política brasileira como um campo regido pela corrupção pode enfraquecer os mecanismos de participação pública e levar descrença ao funcionamento das instituições democráticas”, escrevem Starling e Schwarcz.
Isso, aliás, foi o que muitos pesquisadores dizem ter acontecido durante a Operação Lava Jato, maior investigação contra esquemas de corrupção da história do país, que atingiu centenas de políticos de dezenas de partidos em 11 países, além de executivos de grandes empreiteiras.
Segundo o cientista político Jairo Nicolau, a corrupção se tornou tema prioritário da agenda antipetista nas eleições brasileiras desde que as denúncias do escândalo do mensalão apareceram em 2005, mas o impacto da Lava Jato — deflagrada em 2014 — na política foi muito maior.
Para se ter uma ideia do impacto da Lava Jato na percepção coletiva e no antipetismo, o instituto Datafolha apontou que em dezembro de 2012 apenas 4% dos eleitores consideravam a corrupção o principal problema do país e outros 40%, a saúde. Em março de 2016, às vésperas do impeachment de Dilma Rousseff (PT), a corrupção liderava o ranking de problemas nacionais com 37%, e a saúde figurava com 17%. A corrupção só voltaria a liderar sozinha como principal problema nacional em abril de 2018, mês em que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi preso.
Em seu livro sobre a eleição de 2018 O Brasil Dobrou à Direita, Nicolau descreve o passo a passo de como, segundo ele, a Lava Jato influenciou o resultado do pleito.
“1) a Lava Jato investigou, denunciou e prendeu parte expressiva da elite política brasileira; 2) a corrupção passou a ser vista como algo endêmico, aumentando a rejeição a partidos tradicionais; 3) os eleitores buscaram uma alternativa de um político que não estivesse envolvido em nenhuma das denúncias dos últimos anos e ao mesmo tempo expressasse uma quebra com o padrão de ação da elite política tradicional; 4) entre os nomes apresentados em 2018, o único que preenchia esses critérios era Bolsonaro.”
Pesquisas do instituto Ideia Big Data sugerem que o segmento da classe média cujo foco principal é o combate à corrupção soma algo em torno de 10% do eleitorado brasileiro. E sete anos depois do início da operação, os dois principais candidatos à Presidência em 2022 ainda são ligados à Lava Jato e ao tema da corrupção.:
– O atual presidente Jair Bolsonaro, como político que mais mobilizou os eleitores em duas décadas com as bandeiras de antipetismo e combate à corrupção (impulsionado pela Lava Jato). Depois da eleição de 2018, os lavajatistas se afastaram do presidente, que adotou diversas medidas consideradas contrárias ao combate à corrupção, como a nomeação de um procurador-geral da República crítico à Lava Jato, Augusto Aras, a troca no comando de órgãos de investigação contra Bolsonaro, seu governo e seus familiares e a supressão da transparência em casos com suspeita de corrupção no governo.
– Lula, que foi o principal político a ser condenado e preso na operação, além de impedido de concorrer em 2018. No entanto, suas condenações foram anuladas pelo STF por ilegalidades nos processos julgados pelo então juiz federal Sergio Moro e apresentados pela força-tarefa liderada pelo procurador Deltan Dallagnol. Atualmente, Lula lidera as pesquisas de intenção de voto para a eleição presidencial em 2022, e uma parte de seu discurso tem sido a perseguição judicial que diz ter sofrido.
Acusações de corrupção como arma contra adversários políticos
As palavras “corrupto” ou “corrupção” são frequentes no debate político brasileiro — aparecem mais de mil vezes em discursos no plenário da Câmara dos Deputados em 2021, por exemplo. E parte das vezes a primeira aparece na forma da expressão “corrupto de estimação”, que é uma variação da expressão “político de estimação”, usada geralmente para acusar eleitores de apoiarem políticos de forma apaixonada e acrítica, ignorando falhas ou denúncias, por exemplo.
No caso de “corrupto de estimação”, a expressão geralmente é usada de três formas: para criticar eleitores de Lula (em razão das investigações da Lava Jato), para criticar eleitores de Bolsonaro (por irem às ruas contra o PT, mas não adotarem o mesmo rigor contra o governo atual) e, por fim, para criticar ambos e se apresentar como isento ou terceira via, sem ter corrupto de estimação de esquerda ou de direita.
O componente moral da corrupção também se tornou chave no debate político, e tem sido abordado por líderes de instituições religiosas, principalmente evangélicas (tanto protestantes históricas quanto pentecostais e neopentecostais).
O antropólogo Marcos Otavio Bezerra, da Universidade Federal Fluminense (UFF) e a socióloga Gabriela da Silva Moura, do Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet-RJ) realizaram um estudo sobre como o tema do “combate à corrupção” mobiliza fiéis e lideranças em parte dos segmentos evangélicos.
Segundo a dupla, muitos líderes religiosos que atuam na política costumam se apresentar aos eleitores como moralmente virtuosos (honestos) nesse ambiente tido por eles como repleto de vícios e corrupção (entendida aqui como produto da falha moral do indivíduo). Mas o tema obviamente não ficou restrito a esse segmento religioso que representa 30% do eleitorado brasileiro.
O cientista político Jair Nicolau explica, em seu livro sobre a eleição de 2018 O Brasil Dobrou à Direita, que a corrupção era considerada o principal problema para eleitores de educação superior e “em todas as faixas educacionais, os eleitores que consideram a corrupção como o principal problema votaram expressivamente em Bolsonaro”.
No entanto, nos últimos quatro anos, algo aconteceu.
Segundo Mauricio Moura, presidente do instituto Ideia Big Data, que faz pesquisas de opinião e análise quantitativa e qualitativa sobre assuntos relacionados ao governo, apesar de Bolsonaro ter sido eleito com grande expectativa de combater a corrupção, o tema já não influencia tanto na sua popularidade atualmente como durante a eleição de 2018.
Moura diz que isso se dá não porque o eleitorado brasileiro deixou de se preocupar com a corrupção, mas, sim, porque o segmento do eleitorado que dá importância ao assunto já havia abandonado Bolsonaro no começo de 2020, quando o ex-juiz Sergio Moro deixou o Ministério da Justiça acusando o presidente de interferir em investigações.
Pesquisas do instituto Ideia Big Data sugerem que o segmento da classe média cujo foco principal é o combate à corrupção soma algo em torno de 10% do eleitorado brasileiro.
Mas as acusações de corrupção podem não ser tão determinantes como eram antigamente. Em janeiro de 2022, o instituto Ipespe perguntou aos eleitores o que os faria mudar de voto. Apenas 17% disseram que fariam isso caso surgissem denúncias de corrupção contra o candidato em que pretendem votar.
Denúncias infundadas contra adversários para fins políticos são chamadas de lawfare. Essa mistura de duas palavras em inglês (law, que significa lei, e warfare, que representa guerra ou conflito armado) é o nome dado a uma espécie de mau uso de leis e procedimentos jurídicos para perseguição política de adversários.
Por exemplo, a divulgação na mídia de nomes de políticos no contexto da investigação, segundo estudiosos, os submetia ao escárnio público e à presunção de culpa pela sociedade antes mesmo da investigação estar concluída ou da sentença judicial. Somava-se a isso a prática recorrente de vazamento seletivo para jornalistas de trechos de delações feitas por investigados que admitiam seus crimes e acusavam terceiros, geralmente políticos.
Os advogados do ex-presidente Lula afirmam que o petista sofreu práticas de lawfare durante a Lava Jato. Eles traçam um paralelo entre o caso de Lula e o do ex-primeiro-ministro da Itália Silvio Berlusconi, político de direita que foi declarado inelegível até, pelo menos, 2019, com base numa lei semelhante à Ficha Limpa, que impede que condenados ocupem cargos públicos. Berlusconi alegou que teve direitos violados por ser punido de forma “retroativa”, já que a lei foi sancionada em 2012, depois que ele havia sido condenado por fraude fiscal. Mas a Corte Constitucional italiana rejeitou os argumentos do ex-premiê.
“Uma pessoa não pode ser retirada de uma eleição de forma arbitrária. Basicamente é o uso da lei para fins políticos. Retirar um inimigo da vida política. Uma das táticas de lawfare é ocupar o tempo e os recursos do inimigo. Ao se defender, ele não consegue ter tempo para a política. O caso Berlusconi é um caso de lawfare. Mas o caso mais escandaloso do tipo no mundo e na História é o do Lula”, argumentou a advogada Valeska Teixeira Martins, integrante da defesa de Lula, em entrevista à BBC News Brasil em 2017.
Para os advogados Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, e Marcelo Turbay Freiria, que representaram alguns dos investigados pela Lava Jato, a parcialidade do juiz Sergio Moro (que foi confirmada pelo STF) e dos investigadores era uma ameaça grave à democracia brasileira.
“Os últimos seis anos da história política brasileira revelaram a execução de um programa sistemático e organizado de ataque ao exercício da atividade parlamentar, composto pelos seguintes pilares: espetacularização do processo penal; generalização da prisão preventiva e outras medidas constritivas pessoais e patrimoniais; banalização de delações premiadas costuradas contra agentes políticos; manipulação da opinião pública mediante vazamentos de informações seletivas para a imprensa; pressão sobre o Poder Judiciário; financiamento de campanhas para angariar apoio popular; inviabilização jurídica de adversários políticos”, escreveram Castro e Freiria em um dos capítulos de O Livro das Suspeições, publicado em 2020 pelo grupo de advogado Prerrogativas.
Em resposta, os membros da Lava Jato refutam qualquer ilegalidade ou perseguição política. Em seu livro sobre a operação, A Luta Contra a Corrupção: A Lava Jato e o Futuro de um País Marcado pela Impunidade, o coordenador da força-tarefa de procuradores, Deltan Dallagnol, afirma que “a Lava Jato comprovou a existência de uma corrupção generalizada, infiltrada em diversos órgãos públicos como parte de um modo de governar que envolvia vários partidos políticos”.
Dallagnol também rebateu na obra as críticas à operação. “Como todo mundo, os agentes públicos estão sujeitos a erros. Opiniões divergentes devem ser respeitadas e consideradas. No entanto, o que muitas vezes vemos é a repetição de críticas sem qualquer fundamento e equivocadas, ou mesmo a distorção dos fatos. Busca-se com isso inverter os papéis na investigação e colocar a Lava Jato no banco dos réus.”
Em nota pública, Moro afirmou que a Lava Jato foi um marco no combate à corrupção que recuperou aos cofres públicos mais de R$ 4 bilhões pagos somente em subornos (além de outros bilhões de reais desviados) e levou à condenação de duas centenas de pessoas por corrupção e lavagem de dinheiro. “Todos os acusados foram tratados nos processos e julgamentos com o devido respeito, com imparcialidade e sem qualquer animosidade da minha parte, como juiz do caso”.
Os argumentos da defesa de Lula, que apontava uma celeridade maior na tramitação do processo do ex-presidente com o suposto objetivo de impedi-lo de concorrer à eleição presidencial em 2018, foram rebatidos também por associações de juízes.
Então presidente da Associação dos Magistrados do Brasil, Jayme Martins de Oliveira Neto, disse à época que é uma prática comum da defesa dos réus, por meio dos advogados, tentar “desqualificar tribunais e juízes”. “É a primeira vez que vejo algum reclamar da celeridade da Justiça. Normalmente o problema é a morosidade. (…) O processo está seguindo um curso normal, com todo o direito de ampla defesa.”
“Essa alegação de que no Brasil não se está garantindo os direitos de defesa é completamente descabida. O Brasil é pródigo em recursos. O sistema processual penal e civil brasileiro é conhecido porque possibilita uma quantidade incomensurável de recursos”, complementou o então presidente da Associação dos Juízes Federais, Roberto Veloso.
Considerada uma das mais importantes pesquisadoras de corrupção no mundo, inclusive por Moro e Dallagnol, a professora de direito e ciência política Susan Rose-Ackerman, Universidade Yale (EUA) elogiou em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo a decisão do STF de anular as condenações de Lula, entre outros motivos porque não ficou comprovada a relação entre “o apartamento cuja propriedade foi atribuída a ele” e “os desvios na Petrobras e as grandes transferências de riqueza detectadas pelos investigadores”.
Por outro lado, Rose-Ackerman disse que “houve um trabalho sério de investigação, que revelou relações impróprias e corrupção em grande escala, e que não me parece ter sido conduzido com viés político inicialmente. Surgiram dúvidas quando eles se voltaram na direção de Lula, mas isso não enfraquece o excelente trabalho feito antes”. Para ela, “seria uma pena se erros cometidos no caso particular de Lula fossem usados para desqualificar tudo o que foi feito”.
Lula passou 580 dias preso, até ser solto após decisões do Supremo Tribunal Federal que anularam essas e outras condenações. A maioria dos ministros considerou que o então juiz federal Sergio Moro não tinha competência para julgar o ex-presidente (que deveria ser julgado em São Paulo ou no Distrito Federal) e que o magistrado agiu de forma parcial (portanto, ilegal).
As acusações contra o ex-magistrado ganharam peso após o portal de notícias The Intercept Brasil revelar, em julho de 2019, diálogos privados entre Moro e o procurador Deltan Dallagnol, chefe da força-tarefa da Lava Jato, em que o juiz adotava condutas ilegais em parceria com o Ministério Público Federal, como sugerir testemunhas e delatores, dar pistas sobre futuras decisões e aconselhar procuradores.
Segundo a ministra do STF Cármen Lúcia, por exemplo, o então juiz federal Sergio Moro atuou ilegalmente ao autorizar a interceptação de telefones de advogados do ex-presidente e ao determinar a condução coercitiva do petista em 2016, sem primeiro intimá-lo a depor.
Essas decisões que anularam suas condenações permitiram que o petista retomasse seus direitos políticos e disputasse eleições novamente.
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