- Matheus Magenta
- Da BBC News Brasil em Londres
De 1964 a 2022, a palavra “fascista” foi usada 954 vezes em discursos na Câmara dos Deputados, em Brasília. Dessas, 411 vezes (ou 43% das ocorrências) aconteceram apenas nos últimos cinco anos.
O aumento significativo no uso da palavra não é por acaso. Nos últimos anos, “fascista” se tornou um dos adjetivos mais populares e talvez menos compreendidos do debate político brasileiro — e mundial.
Usado na maioria das vezes para desqualificar (ou xingar) adversários políticos, a utilização atual do termo guarda pouca ou nenhuma referência com a ideologia criada na Itália do início do século 20 por Benito Mussolini e que inspiraria outros extremismos — como o nazismo — e serviria de catalisador para o mais sangrento conflito de nossa história, a Segunda Guerra Mundial.
Mas, para além dos xingamentos e insultos, a BBC News Brasil explica nos próximos parágrafos o que de fato é o fascismo e quem são (ou eram) fascistas.
Para isso, é importante entender primeiro as origens desta ideologia e se ela se enquadra à esquerda ou à direita do espectro político. Depois, vamos discutir por que alguns pesquisadores identificam elementos do fascismo em movimentos atuais de extrema direita – e por que alguns consideram que a ideologia ficou no passado.
Por fim, entenderemos como o uso desses termos se transformou num insulto tão usado na briga política do Brasil e de outros países.
As origens do fascismo
A Primeira Guerra Mundial deixou cerca de 20 milhões de mortos, outros 20 milhões de feridos e a Europa destruída.
Mas o sangrento conflito, que durou entre 1914 e 1918, também deixou em ruínas as instituições políticas do mundo, com alternativas ao modo dominante do capitalismo da época surgindo das cinzas da guerra: enquanto na Rússia os bolcheviques implantavam a primeira experiência comunista a partir da revolução de 1917, na Itália, Benito Mussolini, ex-jornalista, ex-socialista e ex-combatente, criava o movimento que ficaria conhecido como fascismo.
O início oficial do fascismo é normalmente situado em 23 de março de 1919, quando Mussolini fundou em Milão o grupo Fasci Italiani di Combattimento, que reunia veteranos da guerra, sindicalistas e jovens intelectuais.
O objetivo principal dos integrantes era combater o socialismo, considerado por eles o oposto do nacionalismo defendido pelos fascistas. O programa de propostas do grupo, no entanto, era repleto de lacunas, contradições e apropriações.
A começar pelo nome, que não era exatamente uma novidade política. Ele se baseava na palavra de origem latina fasces, uma espécie de machado com gravetos amarrados usado na Roma antiga como símbolo de autoridade e unidade do Estado — um de seus significados sugeria que pode ser fácil quebrar um graveto, mas é muito mais difícil quebrar um feixe deles.
Mas o símbolo das fasces já era usado por outros grupos antes de ser adotado por Mussolini, inclusive como emblema de solidariedade entre os militantes de movimentos de esquerda e revolucionários na Europa, por exemplo.
De qualquer forma, Mussolini e seus aliados passaram a atuar como um partido na política italiana, mesmo que suas propostas não fossem muito claras e que, por vezes, não passassem de provocações e atos de violência praticados pelos “camisas-negras”, nome pelo qual ficaram conhecidos os apoiadores fascismo pela cor das vestimentas que usavam.
Para se ter uma ideia, Mussolini foi questionado certa vez pelo jornal italiano Il Mondo sobre quais seriam suas principais propostas políticas. Em resposta, o líder fascista disse: “Nosso programa é quebrar os ossos dos democratas do Il Mondo, e quanto antes, melhor”.
Em um dos primeiros atos do movimento fascista, aliás, amigos de Mussolini invadiram o jornal socialista em que o líder trabalhou, deixando quatro mortos, 39 feridos e equipamentos destruídos.
Com poder crescente, o Partido Fascista é convidado a integrar a coalizão do governo italiano. em 1921. No ano seguinte, em meio ao caos político na Itália, os camisas-negras marcham sobre Roma e Mussolini se apresenta como o único homem capaz de restaurar a ordem. A ofensiva foi bem-sucedida.
Mussolini chega ao poder com apoio da monarquia, de grandes empresários e do Vaticano. E aos poucos desmonta todas as instituições democráticas. Em 1925, ele se torna ditador e assume o controle de todos os poderes do Estado. O regime parlamentar e democrático italiano daria lugar a um Estado totalitário regido pela falta de liberdades individuais, políticas e organizacionais.
O movimento fascista italiano não estava sozinho em sua ascensão. Em 1933, seria a vez do líder nazi-fascista Adolf Hitler chegar ao poder na Alemanha. Ex-estudante de artes e ex-combatente, ele aderiu em 1919 a um partido extremista alemão, no qual ganhou cada vez mais influência com discursos em torno do ressentimento de um país derrotado e humilhado na Primeira Guerra.
Hitler propunha remédios extremistas para os problemas do pós-guerra e culpava abertamente comunistas, judeus, ciganos e minorias religiosas por essas mazelas. Em 1920, ele funda o movimento nazista com bandeiras nacionalistas, antissemitas, anticomunistas e anticapitalistas. Três anos depois, ele tenta um golpe de Estado, mas acaba levado à prisão, onde escreve a obra Minha Luta, na qual destrincha sua ideologia política, bastante inspirada no fascismo italiano.
Em 1932, em meio a um caos político e econômico na Alemanha, os nazistas se tornam o maior partido do Parlamento. No ano seguinte, Hitler se torna chanceler da coalizão de governo e, como Mussolini, desmonta as instituições democráticas e se torna ditador. Em 1939, os fascistas italianos e os nazistas alemães assinam um pacto militar, e a Alemanha invade a Polônia, dando início à Segunda Guerra Mundial.
Mas o que define o fascismo?
A ascensão de Mussolini e Hitler fez com que analistas no mundo todo passassem a tentar entender melhor a ideologia responsável pelo genocídio de milhões de pessoas e por uma guerra que abalaria as estruturas do mundo todo.
Ao longo de décadas, estudiosos conseguiram identificar alguns ingredientes típicos do caldeirão fascista: o líder forte, o contexto de crise socioeconômica, a participação das elites capitalistas, o militarismo, o racismo, o pragmatismo, o antiintelectualismo, o controle da sociedade, as paixões mobilizadoras, a propaganda, a mentira, o medo generalizado, a violência, a religião, o anticomunismo, o nacionalismo, a composição social, o imperialismo e a sociedade de massa.
Há dezenas de milhares de livros e artigos em torno do tema, mas “no final das contas, nenhuma interpretação do fascismo parece ter conseguido satisfazer a todos de forma conclusiva”, resume o cientista político e historiador americano Robert Paxton no livro Anatomia do Fascismo.
Ele próprio, inclusive, oferece sua definição. Mas antes ele faz a ressalva de que uma definição descreve tão bem (ou tão mal) um objeto de estudo quanto uma fotografia descreve uma pessoa.
Para Paxton, o fascismo pode ser definido como um comportamento político marcado por uma preocupação obsessiva com a decadência e a humilhação de um grupo social, tido como vítima; um partido de base popular formada por militantes nacionalistas; uma cooperação ambígua com elites tradicionais; um repúdio às liberdades democráticas; limpeza étnica (havia perseguição a judeus e a membros da etnia roma — conhecidos popularmente como ciganos— tanto no nazismo quanto no fascismo, por exemplo); expansão internacional violenta; e desrespeito às leis e à ética.
Mas mesmo assim há uma série de elementos que dificultam a definição do fascismo, como as diferenças entre as experiências consideradas fascistas, o pragmatismo do movimento — que o levou a se adaptar enquanto se consolidava no poder (ou seja, a facilidade com que o fascismo adotava e abandonava ideias a depender das circunstâncias) — e as semelhanças com outras formas de poder totalitárias, ditatoriais, populistas, autoritárias e tirânicas.
Assim como Paxton, diversos estudiosos buscaram identificar semelhanças em maior ou menor grau entre esses movimentos e regimes para chegar a uma definição de fascismo. O número de características varia bastante, e chega a passar de 20 em algumas listas.
Um verbete assinado pela socióloga italiana Edda Saccomani no Dicionário de Política, organizado pelo filósofo Norberto Bobbio, aponta diversas características presentes em todos esses movimentos fascistas.
Entre eles, a monopolização da representação política por parte de um partido único de massa e hierarquicamente organizado, ideologia fundada no culto ao chefe, na exaltação da coletividade nacional, no desprezo pelos valores do individualismo liberal e também pelo ideal da colaboração entre diversas classes sociais, em oposição frontal ao socialismo e ao comunismo (que pregam a luta de classes), aniquilamento das oposições mediante o uso da violência e do terror e propaganda baseada no controle das informações e dos meios de comunicação de massa.
Fascismo é de direita ou de esquerda?
No mundo acadêmico e político — inclusive na Itália e na Alemanha —, há praticamente um consenso de que o fascismo e o nazismo estão no campo da extrema direita do espectro das doutrinas políticas. Ou seja, no lado completamente oposto do comunismo nessa espécie de escala ideológica.
Além disso, o próprio Museu do Holocausto em Israel, fundado em homenagem aos mais de 6 milhões de judeus mortos pelo regime liderado por Hitler, classifica o nazismo como de direita. Segundo a instituição, havia um clima de frustração após a Primeira Guerra Mundial que, “junto à intransigente resistência e alertas sobre a crescente ameaça do comunismo, criou solo fértil para o crescimento de grupos radicais de direita na Alemanha, gerando entidades como o Partido Nazista”.
O Dicionário Conciso de Política de Oxford, por sua vez, classifica o fascismo como “movimento ou ideologia nacionalista de direita com estrutura hierárquica e totalitária que se opõe fundamentalmente à democracia e ao liberalismo”.
Já para Kevin Passmore, autor de Fascismo: Uma Breve Introdução, o fascismo é um movimento de extrema direita justamente porque se opõe com hostilidade extrema ao socialismo e ao feminismo, afirmando que, entre outros motivos, eles priorizam “classes ou gêneros em vez da nação”.
Essa oposição aproximaria os fascistas de parte dos conservadores no campo da direita, por serem contrários a mudanças econômicas, sociais, políticas, morais ou culturais. No entanto, os fascistas estão dispostos a ir bem além e atropelar os interesses conservadores (família, propriedade, religião…) se isso for necessário para garantir o que veem como os interesses da nação.
Segundo Passmore, o fascismo é considerado também um movimento radical porque a derrota do socialismo e do feminismo e a construção da nação dependem da chegada ao poder de uma “nova elite agindo em nome do povo, comandada por um líder carismático, e personificada em um partido de massas militarizado”.
Só que, por outro lado, um grupo bem pequeno de especialistas elenca semelhanças entre o fascismo e o comunismo. E parte desses especialistas (e alguns políticos) se baseia nisso para situar ambos no campo da esquerda.
Eles apontam semelhanças como a forte contestação ao capitalismo liberal e o totalitarismo, termo usado para descrever uma forma de governo ditatorial que controla praticamente todos os aspectos da atuação do Estado e da vida privada.
Esse tema (“nazismo é de esquerda?”) ganhou força no Brasil em 2017 no acirramento da polarização política no país e costuma reverberar entre membros do alto escalão do governo de Jair Bolsonaro.
O “socialista” no nome do partido liderado por Hitler, Partido Nacional-Socialista, é um dos principais argumentos usados nos debates de internet que falam no nazismo como um movimento de esquerda.
Para especialistas entrevistados pela BBC News Brasil à época, a confusão de conceitos alimenta um debate repleto de equívocos e ignorância.
“O que é fundamental aí é o termo ‘nacional’, não o termo ‘socialista’. Essa é a linha de força fundamental do nazismo — a defesa daquilo que é nacional e ‘próprio dos alemães’. Aí entra a chamada teoria do arianismo”, afirmou o linguista brasileiro Izidoro Blikstein, professor de Linguística e Semiótica da USP e especialista em análise do discurso nazista e totalitário.
“Dizer apenas que Hitler era um político de direita é apequenar o nazismo. Foi mais do que direita ou esquerda. Foi uma doutrina arquitetada para defender uma raça, embora esse conceito seja discutível e pouco científico.”
Já Denise Rollemberg, historiadora brasileira e professora de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF), diz que é bastante complicado classificar o nazi-fascismo no espectro político atual.
“O nazismo nasce no meio de uma crise de referências muito grande após a Primeira Guerra. Muitos passaram de um lado para outro. Os valores muitas vezes vão se embaralhar, e esses conceitos de direita e esquerda atuais não resolvem bem o problema. (…) Eles rejeitavam o que era a direita tradicional da época e também a esquerda que estava se estabelecendo. Eles procuravam se mostrar como um terceiro caminho.”
Fascismo deve ou não ser usado para descrever extremistas de hoje?
Outra grande questão que divide os especialistas é se é possível classificar um movimento extremista atual como fascista ou se o termo deve ser usado apenas para se referir às experiências históricas do início do século 20.
Para o historiador Emilio Gentile, considerado o maior especialista vivo em fascismo na Itália, os termos fascismo ou fascista só devem ser adotados para descrever os movimentos de massa organizados militarmente que tomaram o poder entre as Primeira e a Segunda Guerra, negaram a soberania popular e transformaram completamente a sociedade com objetivos imperialistas (ou seja, dominação política, econômica e cultural de outros países e territórios).
Seria um equívoco, na visão de Gentile, usar essas palavras para falar de movimentos violentos de extrema direita de hoje.
“É um grande erro porque não nos permite compreender a verdadeira novidade destes fenômenos e o perigo que eles representam. E o perigo é que a democracia possa se tornar uma forma de repressão com o consentimento popular. A democracia em si não é necessariamente boa. Só é boa se realiza seu ideal democrático, isto é, a criação de uma sociedade onde não há discriminação e na qual todos podem desenvolver sua personalidade livremente, algo que o fascismo nega completamente”, disse Gentile à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) em março de 2019, quando se completou 100 anos da origem formal do fascismo italiano.
“Então, o problema hoje não é o retorno do fascismo, mas quais são os perigos que a democracia pode gerar por si só, quando a maioria da população — ao menos, a maioria dos que votam — elege democraticamente líderes nacionalistas, racistas ou antissemitas.”
Mas, por outro lado, o especialista em radicalismo e populismo e historiador argentino Federico Finchelstein (New School) aponta em suas obras diversos paralelos entre o fascismo histórico do início do século 20 e líderes que ele classifica como populistas no século 21.
Em geral, o populismo é descrito como uma tradição política de massa do século 20 em que líderes carismáticos (tanto de esquerda quanto de direita) mobilizam setores mais pobres e marginalizados da sociedade contra instituições e grupos no poder. Esses líderes, classificados como populistas de forma pejorativa por especialistas ou adversários, costumam adotar uma fórmula de se apresentar como solução messiânica dos problemas nacionais e como representante autêntico da vontade do povo.
Nos livros Do Fascismo ao Populismo na História e Uma Breve História das Mentiras Fascistas, Finchelstein argumenta que o populismo é uma forma autoritária de democracia que reformulou o fascismo depois do fim da Segunda Guerra, em 1945, ao rejeitar o racismo, a ordem totalitária e a violência física e institucional contra adversários políticos.
“No populismo, os inimigos do povo podem existir e perder eleições, mas não têm qualquer legitimidade. Eles são apenas tolerados, mas não totalmente perseguidos ou banidos.” O principal exemplo desse “populismo clássico” é o peronismo na Argentina.
Mas nas últimas décadas, afirma Finchelstein, o populismo entrou em uma nova era marcada por intolerância, xenofobia, autoritarismo, uso político da mentira e desmonte de instituições democráticas. Ou seja, retomando elementos fascistas que havia rejeitado no pós-guerra, principalmente o racismo. “O povo é definido em termos étnicos e o antipovo geralmente em termos antirreligiosos ou racistas.”
Ele cita como exemplos desse “novo populismo” o trumpismo e o bolsonarismo.
Nessa mesma linha de encontrar elos entre movimentos antigos e atuais, alguns pesquisadores buscam no integralismo, movimento fascista do Brasil nos anos 1930, as raízes de movimentos de extrema direita no país hoje.
Fascismo, neofascismo e pós-fascismo no Brasil
O Brasil também teve uma experiência com o chamado fascismo histórico: o integralismo.
Inspirado em Mussolini, o primeiro surgiu em 1932 com o nome de Ação Integralista Brasileira (AIB) e um discurso marcado por anticomunismo, nacionalismo, antiliberalismo, cristianismo, conservadorismo, corporativismo, antissemitismo e culto ao seu líder e fundador, o escritor Plínio Salgado. Para ele, o liberalismo político-econômico e o comunismo eram faces da mesma moeda.
Todas as sedes do movimento integralista, que chegou a reunir quase 200 mil filiados (conhecidos como camisas-verdes, inspirados nos camisas-negras do fascismo italiano), eram decoradas com fotos de Salgado, relógios de parede com a frase “Nossa hora chegará!” e cartazes com os dizeres: “O integralista é o soldado de Deus e da pátria, homem novo do Brasil que vai construir uma grande nação”.
Para Robert Paxton, a AIB “foi a coisa mais próxima a um partido de massas fascista nativo da América Latina”. O grupo e outros partidos acabariam extintos por Getúlio Vargas no início da ditadura do Estado Novo (1937-45). Salgado, que tentou derrubar Vargas e depois se exilou em Portugal, voltaria ao cenário político brasileiro na década seguinte, mas ficaria em último lugar na eleição presidencial. O integralismo, no entanto, não acabou ali nem com sua morte, em 1975.
Com mais de 20 anos de estudos sobre integralismo, o historiador brasileiro Leandro Pereira Gonçalves, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora e autor de livros e artigos sobre o integralismo, incluindo a biografia de Plínio Salgado, explica que o movimento se pulverizou desde meados dos anos 1970.
“Com a morte de Plínio surge o que conhecemos como neointegralismo, uma fragmentação em diversos pequenos grupos neofascistas, que trazem novas características ao integralismo tradicional dos anos 1930, mas se mantêm ligados pela simbologia original”, disse à BBC News Brasil em dezembro de 2019, quando um grupo identificado com o integralismo reivindicou autoria de um ataque a bomba contra a sede do grupo Porta dos Fundos, no Rio de Janeiro.
Além disso, o lema do integralismo, “Deus, Pátria, Família”, voltou à tona como mote do lançamento da Aliança Pelo Brasil, partido que o presidente Jair Bolsonaro tentou criar sem sucesso.
O bolsonarismo, por sua vez, é caracterizado por alguns pesquisadores como um movimento neofascista ou pós-fascista.
“No Brasil, uma ideologia com propagandas golpistas, muito próxima do fascismo, tem se intercalado com o nacionalismo e o messianismo (crença em um líder que chegará para salvar a todos e tornar a vida melhor) mais extremo a fim de ignorar a pandemia e o bem-estar da população”, escreve o historiador argentino Federico Finchelstein.
Para ele, durante a pandemia Bolsonaro fabricou realidades alternativas e associou posições contra quarentenas à necessidade de fechar o Congresso.
A associação do bolsonarismo com o fascismo, no entanto, é veementemente negada pelos apoiadores do presidente.
“Qualquer um que se oponha ao PT será chamado de nazista, fascista. Não se trata de um conceito, mas sim uma tentativa de caluniar o oponente. Tática do vale-tudo!”, escreveu o filho do presidente e deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) em seu perfil no Twitter. “Os rótulos (fascista, negacionista etc) não fazem qualquer sentido, não têm conexão com a realidade, apenas servem para controlar a narrativa.”
Segundo Wilson Gomes, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e autor do livro Crônica de uma Tragédia Anunciada: Como a Extrema Direita Chegou ao Poder, a estratégia política de chamar adversários de fascistas, genocidas ou comunistas busca o pânico moral.
“A função política é a satanização do outro. Você transforma o adversário, em termos discursivos, em uma posição inaceitável de um ponto de vista moral. A disputa aqui é basicamente moral. (…) Você vai no extremo da posição que você quer satanizar, não importa se corresponde ou não à realidade, mas é aquilo que produz o pânico moral. Supremacista, racista, fascista, genocida… O importante é produzir um pânico moral e produzir uma união das pessoas como reação a isso.”
Fascista e nazista ‘banalizados’?
O historiador americano Stanley Payne, um dos maiores estudiosos do movimento fascista, diz que o fascismo “continua sendo o mais indefinido dos termos políticos mais importantes”. Isso nunca impediu, no entanto, que o termo fosse usado de forma ampla e até exacerbada no debate público.
Aliás, essa indefinição é ideal para impulsionar seu uso indiscriminado, algo comum a outros termos políticos de difícil definição, como liberal, conservador e comunista.
Payne explica que o termo passou a ser adotado de forma pejorativa e genérica a partir de 1921 pela Internacional Comunista, organização que agregava partidos comunistas ao redor do mundo. Assim surgiram pechas como “liberais fascistas” e “conservadores fascistas”.
Dali em diante, o termo fascista ganhou força como insulto também contra grupos radicais de direita e movimentos autoritários de cunho nacionalista que carregavam traços do fascismo italiano ou alemão. O passo seguinte, segundo Payne, foi o uso do termo fascista contra grupos de direita, conservadores e “qualquer coisa que se refira, ainda que vagamente, ao nacionalismo ou a uma autoridade mais tradicional”.
Em ensaio sobre o uso indiscriminado do termo, o escritor britânico George Orwell afirmou em 1944 que de todas as questões não respondidas de nosso tempo, talvez a mais importante seja “o que é fascismo”? Ao longo da análise, Orwell lista exemplos da aplicação do termo fascista contra as mais diversas parcelas e práticas da sociedade, como conservadores, comunistas, nacionalistas, católicos, agricultores, defensores da guerra, escoteiros, opositores da guerra, comerciantes, tourada, astrologia e caça de raposas.
Para Orwell, em geral, quem chama algo de fascista está se referindo, grosso modo, a algo troglodita, “cruel, inescrupuloso, arrogante, obscurantista, antiliberal e anticlasse trabalhadora”.
O autor cita uma série de exemplos de uso indiscriminado do termo. “Toda a esquerda tende a equiparar militarismo com fascismo”; “a Igreja Católica é quase universalmente considerada pró-fascista, tanto em termos objetivos como subjetivos” e “alguns nacionalistas indianos consideram os sindicatos britânicos como organizações fascistas”.
Por fim, Orwell recomenda uma certa moderação com o uso do termo. “Tudo que se pode fazer no momento é usar a palavra com certa medida de circunspecção e não, como usualmente se faz, degradá-la ao nível de um palavrão.”
Em seu livro Antifascismo, o jornalista e escritor conservador americano Paul Gottfried argumenta que termos como fascista e nazista são usados atualmente pela esquerda como instrumento de propagação do medo para manutenção de interesses dos poderosos, como políticos, jornalistas e acadêmicos que pretendem intimidar e isolar adversários políticos.
“Essa tática acaba com conversas indesejadas, quando ‘A’ chama ‘B’, que discorda de ‘A’, de racista, sexista ou homofóbico, ‘A’ não está só desaprovando ou censurando ‘B’. Está assumindo um papel de vítima que pertence a vítimas do passado, e isso permite a ele ou ela, como disse o teórico marxista alemão Peter Furth, ‘exercer poder sobre nós’.”
Mas como é complexo definir o que realmente é fascismo, afirma Gottfried, a mídia dos EUA e de potências europeias acaba enquadrando como expressão do fascismo tudo que ela própria considera racismo, antissemitismo, islamofobia, sexismo ou homofobia.
Mas a acusação de fascista não se restringe a políticos ou personalidades de direita. Até mesmo Lula já foi chamado de fascista por adversários da direita ou mesmo da esquerda. A exemplo de Ciro Gomes, candidato à Presidência pelo PDT. “O que o Lula está fazendo com a senadora Simone Tebet [MDB] é puro fascismo. Aliciar uma banda de ladrões do MDB, corruptos, velhos sócios dele, Lula, na roubalheira. (…) Prática fascista de invadir o partido dos outros e tirar o direito dos outros participarem das eleições”, disse ele a jornalistas em julho de 2022.
O que muitos enxergam como banalização da palavra fascista e das comparações com o nazismo levou à criação de dois princípios famosos: Reductio ad Hitlerum e Lei de Godwin.
O primeiro, cunhado pelo filósofo alemão Leo Strauss em 1951, parte de uma expressão lógica em latim (reductio ad absurdum ou redução ao absurdo, em português) para contestar a falácia de apontar semelhanças entre um argumento e algo que Hitler ou nazistas fizeram ou pensavam, numa espécie de culpabilização por semelhança.
O segundo surgiu nos anos 1990, quando a internet estava começando a se tornar popular. O advogado americano Mike Godwin percebeu que os debates em fóruns online sempre recorriam ao recurso de chamar o outro lado de nazista.
“Eu fiz um experimento: construir um ‘meme ao avesso’ voltado para fazer os participantes de uma discussão perceberem como eles estavam agindo como vetores de um meme particularmente bobo e ofensivo. E talvez com isso diminuir as comparações vazias com nazismo”, escreveu Godwin na revista Wired.
“Então disseminei essa ideia em qualquer lugar onde eu visse uma referência gratuita ao nazismo. Em pouco tempo, para minha surpresa, as pessoas começaram a citá-lo, e o ‘meme ao avesso’ começou a se reproduzir sozinho.”
Foi então que nasceu a “Lei de Godwin”, ou a “Regra das Analogias Nazistas de Godwin”, que se tornou uma das “regras da internet” e afirma que, se uma discussão online for longe demais, em algum momento alguém vai recorrer à comparação com Hitler.
Mas se as referências ao fascismo ou ao nazismo são amplamente reconhecidas como exageradas, academicamente imprecisas, falaciosas e ridicularizadas na internet, elas ainda devem ter alguma força no debate para se manter em uso por tanto tempo, certo?
Não muito, segundo a English Speak Union, ONG britânica que promove a comunicação e o pensamento criativo.
“Adotar acusações de fascismo como insulto não ajuda a se aproximar do público nem favorece seu argumento. Em vez disso, você aumenta o nível de agressividade do debate, forçando uma polarização entre ‘bom’ e ‘mau’ numa discussão que, por outro lado, poderia ter posições mais razoáveis dos dois lados”, conclui Amanda Moorghen, pesquisadora britânica da entidade.
Para ela, “é melhor guardar palavras mais fortes para o argumento em si, em vez de atacar as pessoas com quem você está debatendo”.
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