- Mariana Sanches – @mariana_sanches
- Da BBC News Brasil em Washington
Depois de demonstrar publicamente insatisfação com a viagem do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro (PL), à Rússia em fevereiro e de avaliar que o Brasil poderia estar do “lado errado” da história em relação à guerra na Ucrânia, o governo do presidente americano, Joe Biden, parece tentar uma “recalibragem” na relação entre Washington e Brasília.
Na última semana, uma delegação de alto nível do Departamento de Estado visitou seus pares brasileiros para uma rodada longa de conversas descritas à BBC News Brasil como “amistosas” e “construtivas” pelos dois lados.
Os americanos evitaram críticas à falta de apoio do Brasil às sanções econômicas impostas pelos americanos e seus aliados à Rússia após a invasão militar ordenada por Vladimir Putin e, na prática, tentaram oferecer aos diplomatas brasileiros um plano de ação para que o Brasil reduza seu comércio com os russos e se aproxime mais dos EUA.
O plano americano
A Rússia é a maior exportadora de fertilizantes para o Brasil, que consome cerca de 40 milhões de toneladas por ano do material, considerado fundamental para mover o agronegócio — e, portanto, a economia — do país.
O produto já foi mencionado por Bolsonaro como motivo de sua visita de fevereiro a Vladimir Putin, em Moscou. Mesmo após o início da guerra, navios de bandeira russa ancoraram no Brasil carregados de fósforo e potássio, dois dos elementos centrais para a plantação de soja, por exemplo.
Embora fertilizantes não estejam na lista de produtos sancionados diretamente por americanos e europeus, o fato de que o Brasil tenha tentado manter um comércio regular com os russos no contexto de guerra causou mal-estar entre os americanos.
Há duas semanas, em visita a Washington D.C., o ministro da Economia, Paulo Guedes, foi questionado em um evento no think tank Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais sobre se o Brasil estaria facilitando para que a Rússia burlasse sanções. “Eu não colocaria nesses termos, facilitando… o Brasil é governado por um presidente que recebeu 60 milhões de votos e está pensando em fertilizantes, importados da Rússia”, justificou Guedes.
Mas a percepção de que a segurança alimentar do mundo poderia estar ameaçada e de que seria preciso ajudar a América Latina a construir soluções, em vez de criticá-la publicamente e empurrá-la para uma relação mais estreita com China e Rússia, levou os americanos a um outro caminho.
“O tema do fertilizante esteve bem presente na nossa conversa, eles sabem que é importante pra gente e estão engajados a nos ajudar a encontrar saídas, com outros parceiros, a partir de premissas positivas”, afirmou à BBC News Brasil o embaixador Pedro Miguel da Costa e Silva, secretário das Américas do Itamaraty.
Embora todas as opções e propostas ainda não estejam claras, o Departamento de Estado americano confirmou à BBC News Brasil algumas delas. Em 28 de março, o secretário de Agricultura dos EUA, Tom Vilsack, conversou com a então ministra brasileira da Agricultura, Tereza Cristina, sobre o problema. Antes, em 16 de março, Cristina e Vilsack estiveram em uma reunião com outros países das Américas para tratar do assunto.
A partir daí, a agência internacional do Departamento de Agricultura dos EUA fez um levantamento de todos os produtores americanos de fertilizantes que poderiam servir como fontes adicionais ao Brasil.
Atualmente, os EUA já são o quinto maior vendedor de fertilizantes ao Brasil. O governo Biden tenta aumentar sua própria produção: em meados de março, anunciou investimento de US$ 250 milhões para empresas americanas que consigam expandir a produção de fertilizantes no país.
Além disso, os americanos passaram a apoiar os esforços brasileiros de encontrar o produto em outros países, como o Canadá. Em meados de março, Cristina foi ao Canadá e conseguiu negociar um incremento de 10% no montante de fertilizantes que os canadenses, nosso 4º maior vendedor, envia anualmente ao Brasil.
“Ainda é muito pouco, são 400 mil toneladas de potássio a mais, mas o Brasil, em 2021, usou 13 milhões de toneladas de potássio”, afirma Marcelo Mello, diretor de fertilizantes da consultoria StoneX.
O Departamento de Estado afirmou ainda que os americanos estudam fazer um intercâmbio técnico com os brasileiros em busca de maior eficiência de fertilizantes.
“Os EUA financiarão a colaboração prática entre especialistas agrícolas dos EUA e do Brasil que compartilharão as melhores práticas para melhorar a eficiência do uso de fertilizantes para os produtores agrícolas brasileiros”, afirmou um porta-voz do órgão.
Para os americanos, encontrar alternativas para a compra de fertilizantes extrapola a satisfação de necessidades de outros países, atingidos pelos efeitos colaterais da guerra. Trata-se de parte da política dos EUA de punir economicamente os russos pelo conflito na Europa.
“Está claro que os preços dos combustíveis e o fornecimento de fertilizantes e outros insumos para a produção de alimentos estão sendo impactados pela decisão da Rússia de invadir a Ucrânia”, afirmou o Departamento de Estado à BBC News Brasil.
“Reconhecemos a importância disso para os brasileiros. Estamos fazendo todo o possível com nossos aliados e parceiros para mitigar os impactos econômicos das ações russas em outras economias, como o Brasil. Por exemplo, os Estados Unidos estão coordenando com os principais países produtores de petróleo para ajudar a garantir o fornecimento global de energia”, diz o Departamento de Estado, comparando o esforço em relação aos fertilizantes à busca por fortes alternativas de combustíveis para suprir a dependência dos europeus do gás russo.
Vai dar certo ou vai faltar fertilizante?
Embora demonstrem positiva surpresa com a disposição dos americanos, concorrentes do Brasil na produção de commodities, de apoiarem o país em busca de soluções no tema dos fertilizantes, tanto fontes do mercado quanto aquelas ligadas ao agronegócio dentro do governo reagiram com ceticismo às chances de funcionamento do plano.
A BBC News Brasil apurou que os produtores brasileiros já conheciam todos os potenciais exportadores de fertilizante indicados pelo governo americano. Além disso, países como o Canadá ou Marrocos, grandes exportadores do produto, têm contratos já firmados com seus clientes e baixa capacidade de expandir sua produção.
“Não tem de onde tirar. Ninguém está deixando de produzir uma única tonelada de fertilizante no mundo, já que o preço está tão alto, mas toda essa produção já estava comprometida e ninguém vai deixar seus clientes na mão para satisfazer o Brasil”, afirma Mello.
Dentro do próprio governo brasileiro, a urgência sobre encontrar novas fontes de fertilizante parece ter diminuído. Se em meados de março, três semanas após o início da guerra, o número de navios com fertilizantes da Rússia a caminho do Brasil reduziu-se a zero, agora parece estar havendo uma retomada parcial do fluxo.
Para Mello, no entanto, não será o suficiente para suprir a demanda nacional. “Os produtores terão que reduzir o uso entre 25% e 30% de fertilizantes na lavoura. Vai faltar. Mas não será o fim do mundo”, afirma o consultor, que hoje presta serviços para cerca de 40% dos produtores de soja do país.
Segundo Mello, como historicamente os fertilizantes são considerados produtos baratos, os fazendeiros brasileiros aplicavam mais do que o necessário ao solo, considerado pobre. Por isso mesmo, uma redução do montante usado agora não deve representar uma queda na produção da próxima safra. E também por isso, é na cooperação técnica com os americanos que Mello vê um caminho mais promissor no plano americano para driblar a falta de fertilizantes no Brasil.
“Mas esse tipo de troca técnica não é algo que deva funcionar já para a próxima safra, é uma questão de médio prazo, para dar resultados em alguns anos”, aponta.
Biden e Bolsonaro se encontrarão finalmente?
A despeito das aparentes baixas chances de sucesso do plano americano para o campo brasileiro, em termos políticos, a proposta parece ter agradado. Um diplomata brasileiro com conhecimento das negociações entre os dois países afirmou que “ninguém tem ilusão que os americanos agem assim só porque se preocupam com o Brasil, sabemos que eles querem se fortalecer na região pra mostrar ao Putin o poder de Biden, mas o atual termo das cooperações nos agradam”.
Em junho, o governo americano sediará a 9ª Cúpula das Américas, em Los Angeles. Em Brasília, as autoridades americanas fizeram questão de convidar nominalmente o presidente Jair Bolsonaro para viajar para o encontro.
“Temos a expectativa que os dois presidentes possam finalmente se encontrar pessoalmente e se falar sobre os temas da Cúpula”, afirmou o embaixador Costa e Silva à BBC News Brasil. A viagem de Bolsonaro ainda não está oficialmente confirmada.
Desde que tomou posse, em janeiro de 2021, o presidente Biden tem evitado contato direto com Bolsonaro, que demonstrou apoio público ao republicano Donald Trump nas eleições de 2020. Sob a condição de anonimato, ministros do governo Bolsonaro reconhecem que a visita do brasileiro a Putin em fevereiro, contrariando os interesses americanos, foi também uma forma de expressar descontentamento com o tratamento dado a ele pelo líder dos EUA.
Entre diplomatas americanos ouvidos pela BBC News Brasil cresce a percepção de que, especialmente diante da guerra da Ucrânia, é preciso aproximar-se dos aliados e países amigos.
Na conversa em Brasília na semana passada, os diplomatas do Departamento de Estado foram cautelosos em não criticar diretamente a alta do desmatamento na Amazônia — elogiaram compromissos ambientais firmados ainda no ano passado pelo Brasil e recomendaram aumentar os esforços contra o crime em campo — nem mencionaram temas espinhosos, como a relação do governo com os povos indígenas ou tensões quanto ao processo eleitoral.
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