- Author, André Bernardo
- Role, Do Rio de Janeiro para a BBC News Brasil
“Por que você não escreve um conto infantil?”. A ideia partiu de Eugène Reynal, um dos sócios da Reynal & Hitchcock, a editora de Antoine de Saint-Exupéry nos EUA.
Até então, o escritor francês só tinha publicado livros para adultos e todos sobre aviação: O Aviador (1926), Correio Sul (1929) e Voo Noturno (1931).
Exupéry estava em Nova York para receber o National Book Award por Terra dos Homens (1939) quando ouviu a proposta. Em um restaurante, fazia esboços de um bonequinho no guardanapo.
O dom do desenho era algo que herdara da mãe, Marie. A toda hora, e em qualquer lugar, gostava de desenhar em cartas, cadernos, envelopes…
Ideia aceita, Exupéry alugou uma mansão em Long Island, nos arredores de Nova Iorque, para dar início ao projeto.
Foi lá, no verão de 1942, que escreveu e ilustrou boa parte de O Pequeno Príncipe (1943). Costumava varar a madrugada escrevendo – por vezes, foi flagrado pela mulher, Consuelo, cochilando sobre a escrivaninha.
Baseado em acidentes reais
Uma de suas inspirações para O Pequeno Príncipe foi o acidente que sofreu no dia 30 de dezembro de 1935. Exupéry e seu mecânico, André Prévot, participavam de um raide aéreo entre Paris e Saigon, atual Ho Chi Minh, no Vietnã.
Quem conseguisse terminar o percurso em menos de 98 horas e 52 minutos, recorde alcançado pelo piloto André Japy em janeiro daquele ano, levava para casa um prêmio de 150 mil francos – uma bela soma em valores da época na moeda francesa que já não existe mais.
Por volta das 2h45 do dia 30, o Caudron Simoun modelo C630 que Exupéry pilotava sofreu uma pane a 270 km/h e despencou no deserto da Líbia.
Apesar de não terem sofrido ferimentos graves, piloto e mecânico tiveram de vagar por três dias pelo Saara. Só não morreram de sede porque foram resgatados por beduínos.
Apenas três anos depois, em 16 de fevereiro de 1938, Exupéry sofreu outro acidente – o mais grave de sua carreira como piloto. E, mais uma vez, em companhia de André Prévot, seu fiel escudeiro.
Ao participar do raide Nova York-Terra do Fogo, seu novo avião, um Caudron Simoun modelo C635, que ele comprou com o dinheiro do seguro, caiu na cabeceira da pista tão logo decolou da Guatemala. Motivo: o tanque estava cheio demais.
Por sorte, a aeronave não explodiu. Mesmo assim, Prévot quebrou uma perna e Exupéry, além de sofrer oito fraturas, permaneceu em coma por oito dias e, por pouco, não precisou amputar o braço esquerdo.
As peripécias de Exupéry como aviador não pararam por aí. Entre outras façanhas, salvou a vida de um amigo, o piloto Marcel Reine, que tinha sido sequestrado por mouros no Marrocos, e resgatou outro, o também aviador Henri Guillaumet, que se perdera nos Andes, durante uma tempestade de neve, no dia 13 de junho de 1930.
“Cara, vou te dizer: o que eu fiz, bicho nenhum teria feito!”, confidenciou Guillaumet ao ser reencontrado depois de cinco dias. A frase foi incluída em Terra dos Homens.
Perrengue em Florianópolis
No Brasil, o piloto francês também passou por apuros. O pior deles foi em Florianópolis, em 16 de abril de 1930.
O então piloto da Aéropostale, correio aéreo francês, fazia um voo inaugural entre Buenos Aires e Rio de Janeiro – em vez de cartas, transportava passageiros. Da capital argentina, o Laté-28 trouxe oito jornalistas.
Depois de fazer escala em Porto Alegre, a aeronave pousou em Florianópolis e, de lá, seguiria para a capital federal de então.
“Tentou decolar, mas não conseguiu. O temporal não deixou e ele teve que voltar. Pernoitaram em Florianópolis”, relata Mônica Cristina Corrêa, doutora em Língua e Literatura Francesa pela Universidade de São Paulo (USP), que assina a tradução e o posfácio de O Pequeno Príncipe (Companhia das Letrinhas, 2015).
“Exupéry escapou ileso de acidentes inacreditáveis. Viu a face da morte diversas vezes. Era um piloto muito habilidoso e responsável.”
Ao todo, a viagem durou 12 horas e incluiu, entre outras cidades, Montevidéu, no Uruguai, e Pelotas e Santos, no Brasil. Quando finalmente chegaram ao Rio, os oito passageiros tiveram direito a um voo panorâmico.
Zé Perri, para os íntimos
Exupéry não sofreu nenhum acidente grave no Brasil. Sempre que ouviam o ronco dos motores, pescadores de vilarejos como Praia Grande, em Santos, ou Campeche, em Florianópolis, a qualquer hora do dia ou da noite, acendiam lampiões e iluminavam a pista de aterrissagem.
“Ele só sabia escrever sobre o que tinha vivido. Por isso, há tantos elementos biográficos em O Pequeno Príncipe. O acendedor de lampiões é um deles”, explica a pesquisadora.
Com um desses acendedores de lampiões, inclusive, Exupéry chegou a fazer amizade. Trata-se do pescador Rafael Manoel Inácio, o Seu Deca. A amizade entre o piloto e o pescador está contada no livro Deca e Zé Perri (2000), escrito por Getúlio Manoel Inácio.
Entre outras curiosidades, o filho de Seu Deca explica que, por causa do sobrenome de difícil pronúncia, os pescadores da região apelidaram Exupéry de “Zé Perri”. E mais: que seu pai ensinou o visitante a pescar, a preparar os peixes e a comê-los com beiju, uma iguaria feita à base de tapioca. Seu Deca morreu em 1993, aos 83 anos.
Onze escalas no Brasil: de Natal a Pelotas
Catarinense de Criciúma, Zé Dassilva cresceu ouvindo muitas dessas histórias. Adulto, escreveu e dirigiu Dás Um Banho, Zé Perri!, curta-metragem de ficção baseado na passagem do autor de O Pequeno Príncipe por aquelas bandas. Nele, um desenhista de Floripa, interpretado por Marcos Veras, convence o piloto francês, vivido por Rodrigo Fagundes, a realizar o sonho da garota por quem é apaixonado: dar uma volta de avião.
Construir uma réplica em tamanho natural de um Breguet 14 foi a parte mais difícil da produção.
“O filme teve vários desafios, como ir até uma ilha deserta e torcer para não chover, já que a maior parte das cenas eram externas. Mas, o principal mesmo foi construir o avião”, avalia o cineasta que, para criar o primeiro modelo cenográfico do cinema nacional, contou com a ajuda da diretora de arte Loli Menezes e do cenógrafo Michel Martins.
“Quase 100 anos depois, o Breguet 14 que costumava pousar nas areias do Campeche estava lá de novo! As pessoas paravam para tirar fotos e contar histórias de parentes que conheceram Exupéry e outros aviadores”.
Santos e Florianópolis eram apenas duas das 11 escalas da Aéropostale no Brasil. As demais eram: Natal, Recife, Maceió, Salvador, Caravelas, Vitória, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Pelotas. As cartas vinham de Toulouse, no sul da França, onde ficava a sede da companhia, e seguiam, em pesados malotes, até São Luís, no Senegal. Do norte da África, cruzavam o Atlântico em navios até Natal. Da capital potiguar, os pilotos viajavam até Pelotas. E, então, prosseguiam viagem até Santiago, no Chile, a última escala na América do Sul.
Em cada uma das escalas, havia a casa de pilotos, conhecida como “popote” (“rancho”, em francês), local de refeição e pernoite; a casa de rádio, o hangar e as pistas de pouso e decolagem. As agências de correio, onde as pessoas deixavam cartas e encomendas, ficavam no centro das cidades.
O Pequeno Príncipe sobe a serra
Como chefe da Aéropostale na Argentina, Exupéry veio incontáveis vezes ao Brasil entre 12 de outubro de 1929, quando desembarcou em Buenos Aires, e fevereiro de 1931, quando retornou definitivamente à Paris.
No Brasil, o “poeta da aviação” gostava de passar alguns dias na casa que Marcel Reine comprou em Itaipava, distrito de Petrópolis, na região serrana do Rio.
“Quando tiravam folga, os pilotos da Aéropostale não voltavam para a França. Traziam quem eles quisessem para o sítio. Ouviam discos, bebiam vinhos, andavam a cavalo… Era a Disneylândia deles”, revela José Augusto Wanderley, o atual dono da casa, batizada pelo próprio Marcel de La Grand Vallée (“O Grande Vale”). Desde 2016, está aberta à visitação, mediante agendamento telefônico.
Por mês, La Grand Vallée recebe uma média de 100 visitantes. Para adultos, Wanderley relata histórias da aviação francesa. “Os primeiros modelos, feitos de madeira, eram bem frágeis. De metal, só mesmo o motor de automóvel. A cada seis decolagens, uma não chegava ao seu destino. Era a pré-história da aviação”, define.
Para crianças, recorda “causos” engraçados de Antoine de Saint-Exupéry e seu livro mais famoso. “Certa vez, um repórter do jornal argentino Clarín perguntou à viúva Consuelo do que seu marido gostava mais. Ela respondeu: ‘90% de aviões, 10% do resto – eu, inclusive’”, cai na risada.
Entre outras atrações, o anfitrião exibe, orgulhoso, seu acervo particular com mais de 40 edições de O Pequeno Príncipe, de esperanto a braile. Parece muito, e é, mas um colecionador suíço, Jean-Marc Probst, tem mais de 3,2 mil exemplares do best-seller.
Já houve quem parasse o carro na frente da casa de José Augusto Wanderley e quisesse se hospedar lá. “Expliquei que não era pousada ou hotel. Mas, não adiantou. O sujeito chegou a tirar a bagagem do porta-malas”, diverte-se.
Uma curiosidade: se Florianópolis tem o Morro do Lampião no Campeche, o Rio de Janeiro tem a Pedra do Elefante em Petrópolis. Reza a lenda que a montanha de 1.870 metros de altitude teria inspirado o escritor francês a criar a alegoria da jiboia que engoliu o elefante.
Não faltam, aliás, supostas inspirações para O Pequeno Príncipe espalhadas pelo país.
Em Natal, a primeira das 11 escalas da Aéropostale no Brasil, um baobá de 19 metros de altura por seis de diâmetro teria inspirado o escritor a incluir a árvore de origem africana em seu livro mais famoso. O Baobá do Poeta, como é conhecido na capital potiguar, fica na rua São José, no bairro da Lagoa Nova.
No dia 7 de maio de 2009, por ocasião de sua visita ao Brasil, François d’Agay, o sobrinho e afilhado de Exupéry, visitou o famoso baobá. “Não há evidências da passagem de Exupéry por Natal. Só rumores”, afirma Mônica.
Dos cinco irmãos da família Exupéry, a única que deixou herdeiros foi Gabrielle: François, Marie-Madeleine, Mireille e Jean. São eles que cuidam dos direitos autorais da obra do tio famoso.
No Rio, o escritor costumava se hospedar no Itajubá, na rua Álvaro Alvim, na Cinelândia. Numa de suas estadias, anotou trechos de Voo Noturno em um papel timbrado do hotel.
Em Santos, levou o pequeno Carlos Cirilo, então com quatro anos, para passear, no colo da mãe, pelos céus da Baixada Santista. Foi a avó do garoto, aliás, que vendeu o terreno para a Aéropostale construir o antigo aeródromo. Quando cresceu, não deu outra: Cirilo realizou o sonho de ser piloto. Morreu em 2019, aos 96 anos.
31 de julho de 1944: a última decolagem
Exupéry não viveu para ver o lançamento de O Pequeno Príncipe em sua terra natal.
Nos EUA, The Little Prince foi lançado em 6 de abril de 1943. O cineasta Orson Welles chegou a fazer o esboço de um roteiro para o cinema, mas desistiu do projeto depois que Walt Disney se recusou a participar dele.
Na França, Le Petit Prince só chegou às livrarias, pela Editora Gallimard, em 1946.
No dia 31 de julho de 1944, durante a Segunda Guerra, Exupéry fez a última decolagem de sua vida. Partiu de uma base aérea na Córsega, por volta das 8h30, para uma missão de reconhecimento. Nunca mais voltou.
À época, a França estava ocupada pelos nazistas.
O que teria acontecido a Exupéry?
Por cinquenta e quatro anos, um mistério pairou no ar: o que teria acontecido ao piloto-escritor? Teria sofrido um acidente? Sido vítima de um ataque aéreo? Ou tirado a própria vida?
O enigma começou a ser decifrado em 1998, quando Jean Claude Bianco, um pescador da Marselha, no sul da França, encontrou, em sua rede, um bracelete prateado com o nome do piloto gravado no verso.
Mais seis anos se passaram até que, em 2004, o mergulhador francês Luc Vanrell, seguindo as indicações do pescador, localizou os destroços do caça Lockheed Lightning P-38 que Exupéry pilotava no dia do acidente.
O corpo do escritor nunca foi encontrado. Ele e Consuelo não tiveram filhos.
‘Se soubesse que era ele, não teria atirado’
Em março de 2008, Horst Rippert, encaixou a última peça do quebra-cabeça. O ex-piloto alemão de 88 anos admitiu que, a bordo de um Masserschmidt ME-109, foi ele que, na tarde de 31 de julho de 1944, por volta de 13h, efetuou os disparos que derrubaram o caça de Antoine de Saint-Exupéry no Mar do Mediterrâneo.
O piloto-escritor voava a 2 mil metros quando, por medida de segurança, o ideal seria 10 mil. “Estava voando baixo e irregular. Provavelmente, teve algum problema. Falta de oxigênio, por exemplo”, especula a pesquisadora.
Quando teve a certeza de que fora ele o responsável pela morte do escritor francês, Rippert ficou mal. E pediu para conhecer François d’Agay. Queria pedir desculpas à família. O encontro aconteceu em Wiesbaden, na Alemanha, em 20 de fevereiro de 2010. “Se soubesse que era ele, não teria atirado”, pediu perdão, com lágrimas nos olhos.
O mais curioso é que Rippert só se tornou piloto por influência de Exupéry. Quando adolescente, devorou todos os seus livros. Rippert morreu em 19 de abril de 2013, aos 91 anos.
Livro já foi traduzido por Quintana e Gullar
O Pequeno Príncipe chegou ao Brasil em 1952. O primeiro a traduzi-lo foi Dom Marcos Barbosa. De lá para cá, houve outras traduções: de Mário Quintana a Ferreira Gullar. A mais recente delas, para a Editora Rocco, é de Frei Betto. O frade dominicano leu O Pequeno Príncipe pela primeira vez aos 13 anos quando ingressou na Juventude Estudantil Católica (JEC), em Belo Horizonte.
“Fiquei impactado pela leitura e, a partir dela, li toda a obra de Saint-Exupéry. Soou-me como um misto de Voltaire, pelos valores humanos, e Júlio Verne, graças às viagens interplanetárias”, explica o religioso. “Traduzir é sempre um desafio. A maior dificuldade é resistir à tentação de ‘falar’ o que o autor não disse”.
Quando o protagonista morre no final
O Pequeno Príncipe já foi traduzido para mais de 250 idiomas, como persa, árabe e chinês. Estima-se que seja o segundo livro mais lido do mundo – atrás somente da Bíblia.
Em domínio público desde 2015, ganhou incontáveis edições: de bolso e capa dura, versão para colorir, literatura de cordel… E deu origem a inúmeros títulos, como A Volta do Pequeno Príncipe (1999), de Jean-Pierre Davidts; O Retorno do Jovem Príncipe (2008), de A. G. Roemmers; O Pequeno Príncipe Preto (2020), de Rodrigo França…
Um dos mais curiosos é A Namorada do Pequeno Príncipe (2018), de Mário de Lima. O livro é inspirado no suposto affair entre Exupéry e Onília Ventura, uma jovem filha de pescadores, em 1930. O namoro, com direito a pedido de casamento recusado e tudo, teria ocorrido na Península de Maraú, na Bahia. Onília morreu em 2013.
“Acredito, sinceramente, que o romance tenha acontecido: Onília nunca mais teve outro relacionamento e dizia que ‘Zuperri’ era o grande amor de sua vida”, observa o autor. “Além disso, nem as irmãs Ventura – Onília e sua irmã mais jovem, Aurora –, nem qualquer outro membro da família buscou algum benefício com essa história”.
Maior especialista do Brasil na vida e na obra de Antoine de Saint-Exupéry, Mônica Cristina Corrêa lembra que, a princípio, os editores do livro torceram o nariz quando descobriram que o personagem-título morria no final. “Uma história para crianças nunca deve acabar mal”, alegaram. Mas, Exupéry insistiu. E explicou que as crianças aceitam tudo o que é natural. “E a morte é natural”, argumentou.
Ele próprio perdeu o pai, Jean, quando tinha quatro anos. E um de seus quatro irmãos, François, quando tinha 17. “Atribuo o sucesso e a longevidade do livro ao seu tema principal. O que é universal a todos os homens? A morte. Ninguém escapa dela. Embora seja inexorável, Exupéry ensina que podemos dar sentido à vida”, filosofa.
Mônica Cristina Corrêa é a curadora da exposição Pegadas do Pequeno Príncipe. Depois do Shopping Paulista, onde fica até julho, a exposição comemorativa segue para o Shopping Rio Sul, no Rio de Janeiro, em outubro.
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