- Author, Rafael Tonon
- Role, Do Porto (Portugal) para a BBC News Brasil
Uma picanha recém-saída da churrasqueira pode causar em muita gente uma reação parecida. A boca começa a salivar, e vem um desejo enorme de comer a carne grelhada na brasa.
Mas há pessoas que, ao pensar sobre tudo o que aconteceu antes da picanha chegar ao prato, podem sentir um certo desconforto.
É o chamado “paradoxo da carne”, conflito moral que ocorre quando nosso reconhecimento dos direitos dos animais e os efeitos da produção de carne para o planeta se chocam com nossa vontade de comê-la.
Há cada vez mais informações e evidências científicas a esse respeito disponíveis, e isso coloca em questão o prazer que muitos sentem ao se alimentar.
A produção e o consumo de carne representam hoje um grande problema ético e ambiental no mundo: quase 15% das emissões globais de gases que provocam o efeito estufa podem ser relacionados à produção pecuária.
Cerca de 1 trilhão de animais são criados e mortos antes de chegar à mesa a cada ano – e são criados de forma que nos chocariam se o mesmo tratamento fosse dado a animais de estimação.
Essas e outras informações foram reunidas a partir de artigos científicos e pesquisas feitas por Rob Percival, autor de Meat Paradox: Eating, Empathy and the Future of Meat (O paradoxo da carne: comer, empatia e o futuro da carne, em tradução livre).
Percival é diretor de políticas alimentares da Soil Association, organização britânica dedicada a transformar a forma que as pessoas comem e valorizam a alimentação.
Por mais de dois anos, ele compilou tudo o que podia sobre o assunto para ilustrar a dicotomia de que trata em seu livro.
‘Ignorância deliberada’
Percival aponta ser muito comum que alguém tenha um distanciamento cognitivo com o alimento que come.
“Raramente encontramos os animais que consumimos. Não os conhecemos. Não testemunhamos seus momentos finais e normalmente não participamos da desmontagem de seus corpos”, afirma à BBC News Brasil.
Isso gera o que ele e outros especialistas chamam de ignorância deliberada, já que muitas pessoas buscam intencionalmente não se informar sobre os processos industriais nos quais os animais criados para abate estão envolvidos.
O psicólogo Hank Rothgerber, autor de inúmeros estudos que abordam a psicologia do ato de comer carne animal, aponta que, em várias investigações, entrevistados disseram que não sabiam sobre práticas agrícolas e de bem-estar animal porque desejavam permanecer ignorantes a respeito.
“Em muitos casos, porque sabiam que tais informações dificultariam emocionalmente a compra e o consumo de carne”, afirma Rothgerber.
Já Percival aponta que, embora muita gente diga que se preocupa com o bem-estar animal, 67% admitem que não gostam de pensar nisso quando estão fazendo compras.
Entre quem considera o bem-estar animal “altamente importante”, cerca de metade diz pensar nisso quando vai a um supermercado ou restaurante.
“Mesmo os mais conscientes entre nós somos propensos à ignorância deliberada”, afirma Percival.
Ao mesmo tempo, diz o pesquisador, o cuidado e valorização dos animais são um comportamento cada vez mais comum na sociedade hoje.
Muitas pessoas se dedicam intensamente a cuidar e oferecer a melhor vida a seus animais de estimação, criam instituições de ajuda a animais, estão à frente de projetos de resgate de bichos que vivem na rua.
“Somos empáticos por natureza, e o apego aos animais de estimação pode refletir uma ‘canalização’ dessa empatia”, explica Percival.
A questão é que aprendemos a separar, até certo ponto, essa empatia que focamos em “animais não comestíveis” (ou de estimação) dos “animais comestíveis”.
Percival acredita que os dois fenômenos – o apego aos animais de estimação e o distanciamento cognitivo do modo produção de carne – estão ligados.
“Podemos ver nossa devoção aos animais de estimação como um mecanismo de enfrentamento, mitigando os sentimentos dissonantes às vezes despertados por nossa cumplicidade no mal causado a vacas, porcos e galinhas”, aponta.
“Encontrar um equilíbrio é desafiador. No momento, nossos valores e nosso comportamento estão em desacordo.”
Discurso x prática
Muitas vezes, as pessoas defendem uma coisa, mas fazem outra. Isso é evidente no Reino Unido, por exemplo, segundo dados reunidos pelo autor.
Uma em cada três pessoas diz estar comendo menos carne, muitas vezes citando o bem-estar animal ou preocupações ambientais como a principal razão para isso. Mas isso não provoca uma redução significativa no consumo de carne.
“A maioria das pessoas no Reino Unido diz que o bem-estar animal é muito importante para elas, mas são os porcos e galinhas de criação industrial que fornecem a maior parte da carne de suas dietas”, afirma Percival.
A tendência é semelhante em outros lugares do mundo. Na Alemanha, por exemplo, o consumo per capita aumentou na última década.
Em uma pesquisa de 2020, 42% dos alemães disseram que estavam comendo menos carne, mas os dados sobre o consumo real não apontaram um declínio relevante.
Vários estudos recentes reunidos por Percival em seu livro ilustram essa dissonância comum entre o que as pessoas afirmam e fazem em relação ao consumo de animais.
Uma pesquisa com 10 mil americanos apontou que 60% dos que se diziam vegetarianos haviam comido carne ou frutos do mar no dia anterior.
Em outras pesquisas nos Estados Unidos, aproximadamente 7% das pessoas se identificaram como vegetarianas, mas, quando perguntadas sobre seus hábitos alimentares, apenas entre 1 e 2,5% haviam seguido uma dieta vegetariana de fato nas semanas anteriores.
“Essas descobertas não são preocupantes por si só, mas ilustram o grau em que nossos comportamentos podem se divorciar de nossa autoimagem, nossa suscetibilidade a formas sutis de autoengano”, explica.
As pesquisas demonstram, segundo ele, que a suposta “mudança de comportamento” é uma estratégia comum adotada em resposta ao paradoxo da carne.
O poder da indústria da carne
Ao mesmo tempo, o autor aponta que a indústria da carne tem uma influência importante sobre esse padrão de comportamento.
“A indústria da carne é altamente consolidada, com alguns atores poderosos puxando os cordões nos bastidores”, diz.
“As dez maiores empresas do setor no mundo são responsáveis pela vida e morte de mais de 10 bilhões de animais, mas nós [consumidores regulares] não sabemos nem quem são essas empresas.”
Além de criar rótulos e marcas que podem muitas vezes ser desonestos, Percival aponta que a indústria da carne pressiona agressivamente governos e comercializa vorazmente seus produtos.
“A consolidação do poder [dessas empresas no mercado] também contribui para uma sensação de distanciamento entre consumidor e o alimento que é consumido”, afirma Percival.
O autor afirma, no entanto, que o fato de esse autoengano ser tão comum pode ser motivo de um certo otimismo, porque, em última análise, isso se deve ao poder de nossa empatia pelos animais. “Paradoxalmente, só agimos assim porque nos importamos.”
Percival destaca que têm ocorrido avanços no desenvolvimento de proteínas alternativas, feitas à base de vegetais ou com as células dos animais, sem precisar matá-los, que facilitam a vida de quem deseja consumir menos carne de criação industrial ou parar com isso por completo.
Uma vez que estes produtos se tornem competitivos em preço com as versões tradicionais, o autor acredita que poderá ocorrer uma redução significativa no consumo de carne.
“A agenda ambiental também está avançando – simplesmente não há como resolver as crises do clima e da natureza sem mudanças na dieta humana”’, conclui.
Você precisa fazer login para comentar.