• André Biernath – @andre_biernath
  • Da BBC News Brasil em Londres

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Os restos mortais foram encontrados durante uma escavação onde foi construído um shopping

A construção de um shopping na cidade de Norwich, no leste da Inglaterra, permitiu encontrar respostas surpreendentes para um crime misterioso que ocorreu há mais de oito séculos.

Em 2004, durante as escavações do terreno, um grupo de operários encontrou os restos mortais de 17 pessoas, que pareciam ter sido jogadas num poço medieval.

Análises feitas à época, que levavam em conta a faixa etária, a posição dos corpos e o local onde estavam, indicaram que provavelmente se tratava de um evento extremo, relacionado à fome, a doenças ou a um massacre.

Mais recentemente, um grupo de pesquisadores ingleses conseguiu coletar o material de seis das vítimas para fazer pesquisas mais aprofundadas que envolveram sequenciamento genético e outras tecnologias avançadas.

A partir disso, eles conseguiram determinar, com um alto grau de certeza, que aquelas pessoas são antepassados dos judeus asquenazes (que vieram do Leste Europeu ou da Europa Central) e que muito provavelmente elas foram assassinadas durante um movimento antissemita que brotou em Norwich no final do século 12.

O estudo, publicado no final de agosto no periódico científico Current Biology, também conseguiu entender mais a fundo a origem de algumas doenças genéticas que afetam descendentes desse grupo até os dias de hoje.

Migração e morte

O geneticista Mark G. Thomas, professor do Departamento de Genética, Evolução e Ambiente da Universidade College London, no Reino Unido, explica que, por volta do ano 70 d.C., muitos judeus começaram a migrar do Oriente Médio para o oeste, especialmente para os territórios que hoje compreendem a Itália (à época, Império Romano).

Mais pra frente, esses povos se instalaram no noroeste do continente, em regiões que hoje pertencem à França e à Alemanha.

“Por volta do século 11, o rei Guilherme 1º convidou os judeus que viviam em partes da Europa continental a criar assentamentos na Inglaterra”, explica o cientista, que é um dos autores do estudo recém-publicado.

O biólogo molecular Ian Barnes, que também fez parte da investigação, conta que há evidências de ondas antissemitas que tomaram o país a partir do século seguinte.

“Temos vários registros históricos de violência contra os judeus por volta de 1190 em Londres e nas outras cidades do reino”, resume o pesquisador, que integra o Departamento de Ciências da Terra do Museu de História Natural, localizado na capital britânica.

Um dos locais onde esses episódios aconteceram foi justamente Norwich. As primeiras informações sobre as ondas de violência contra o povo judeu por lá vêm do ano de 1144, desencadeadas pelo assassinato de um menino chamado William.

À época, a família dele acusou alguns membros da comunidade judaica local como os responsáveis pelo crime. Essa, aliás, foi a primeira vez na história em que há registros sobre o mito do libelo de sangue, uma alegação absolutamente falsa de que os judeus matam crianças cristãs para usar o sangue delas em rituais.

Essa teoria da conspiração antissemita, aliás, persiste até os dias de hoje.

Mas o que isso tem a ver com os corpos encontrados nas escavações do shopping? Os estudos de datação de carbono-14 indicam que esses indivíduos foram assassinados nessa mesma época, provavelmente entre os anos 1161 e 1216 — o que sugere que eles podem ter sido vítimas dessa onda de ataques.

“A possibilidade de que os restos humanos encontrados no poço próximo ao shopping estão relacionados à violência antissemita é ainda sustentada pelo fato de o local estar ao sul de onde ficava o bairro judeu medieval da cidade”, aponta o artigo.

Um registro feito pelo cronista e decano Ralph de Diceto naquelas décadas aponta que “em 6 de fevereiro [de 1190] todos os judeus encontrados em suas casas em Norwich foram massacrados; alguns se refugiaram no castelo”.

Crédito, Getty Images

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O rei Guilherme I convidou os judeus da Europa continental a criar assentamentos na Inglaterra

A análise publicada recentemente pelos especialistas foi capaz de descobrir que três das vítimas eram irmãs — uma jovem adulta, outra com idade entre 10 e 15 anos e a terceira com 5 a 10 anos. Elas tinham olhos castanhos e cabelo escuro.

O quarto esqueleto era de um menino ruivo de olhos azuis com menos de três anos. O achado é significativo, uma vez que essas características físicas eram muito associadas aos judeus nesse período da história.

Para completar o grupo, o quinto indivíduo era adolescente e o sexto, um homem adulto. Não se sabe exatamente como todos foram assassinados, mas não há dúvidas entre os especialistas de que houve alguma violência envolvida.

O segredo escondido nos genes

E como os cientistas conseguiram determinar que os esqueletos eram mesmo de judeus asquenazes? É aí que entra mais uma vez o sequenciamento genético e a comparação das informações do DNA das vítimas com o genoma de pessoas dessa comunidade que vivem até hoje.

“Que fique claro: não existem testes genéticos que determinam se alguém é judeu ou de qualquer outra etnia”, esclarece Thomas.

“O que podemos afirmar com uma relativa certeza é que esses indivíduos encontrados na escavação se assemelham geneticamente ao que observamos no DNA dos judeus asquenazes vivos hoje”, complementa.

E essa pesquisa ajudou, inclusive, a entender a origem de algumas doenças que são mais comuns nessa população. “Conseguimos encontrar variantes genéticas associadas a enfermidades que aparecem com maior frequência em judeus asquenazes”, conta o acadêmico.

Entre as mutações, destacam-se algumas que aumentam a propensão a alguns tipos de tumores e atrasam o início da puberdade.

Vale dizer que encontrar uma presença mais frequente de certos problemas de saúde em algumas etnias é comum — alguns povos da África Central são mais acometidos pela anemia falciforme (doença hereditária que altera os glóbulos vermelhos), enquanto as populações do Oriente Médio sofrem mais com a beta talassemia (anemia causada por uma mutação genética), por exemplo.

Conhecer a fundo as origens e o que elas podem significar para a saúde, inclusive, é um ponto-chave para melhorar o diagnóstico e descobrir novos tratamentos para essas doenças.

Crédito, PA Media/Prof Caroline Wilkinson

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Baseado nas informações disponíveis, os cientistas reconstruíram o rosto de duas das vítimas: um adulto e uma criança

Thomas explica que, muitas vezes, essa maior frequência de um problema ou outro tem a ver com um fenômeno conhecido na genética como “efeito de gargalo”. Ele acontece quando o tamanho de uma população é severamente diminuído. Daí, os indivíduos sobreviventes carregam genes que acabam se perpetuando e passando para as próximas gerações.

Com isso, quando aquele grupo volta a crescer nas gerações seguintes, uma maior taxa deles pode possuir certas alterações no DNA. As ondas de violência que acometeram os judeus asquenazes desde 70 d.C. até o século 12 podem ter diminuído significativamente essa população em vários períodos da história.

As pessoas que sobraram desses massacres formaram novas famílias e perpetuaram características genéticas que foram mantidas mais frequentemente nas gerações seguintes, até chegar aos descendentes vivos hoje em dia.

“Antes, acreditava-se que esse efeito de gargalo entre os judeus asquenazes teria se passado nos últimos 800 anos. Nosso trabalho testou esses limites e aponta que isso ocorreu em períodos anteriores”, diz Thomas.

Esse efeito de gargalo, porém, teria acontecido após a separação entre os judeus asquenazes e os sefarditas, advindos do norte da África e da Península Ibérica. Isso porque essas mutações genéticas observadas nas vítimas de Norwich não são encontradas na mesma frequência entre os sefarditas.

A possibilidade de estudar os restos mortais desses indivíduos surgiu quando os esqueletos precisaram ser transferidos de local no cemitério onde estavam — as leis judaicas proíbem a exumação dos corpos por vários motivos.

“O rabino-chefe de Norwich nos avisou que os esqueletos precisavam ser movidos para uma nova área do cemitério, o que nos permitiu coletar mais algumas amostras para realizar os estudos com as tecnologias avançadas que dispomos hoje”, relata Barnes.

Terminada a pesquisa, o biólogo molecular avalia que o trabalho ajudou a resolver “um crime misterioso” que perdurava há séculos. “E isso é particularmente importante para que a comunidade conheça, entenda e reflita sobre as suas origens”, conclui.

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