- Sean Coughlan
- Correspondente real da BBC
Este deve ser o livro mais estranho já escrito por um membro da realeza.
O livro Spare, de memórias do príncipe Harry, é uma mistura de confissão, desabafo e carta de amor. Em alguns trechos, o texto parece um grande desabafo raivoso e embriagado.
É uma visão de dentro daquilo que Harry chama de “aquário surreal” e “show de Truman sem fim”.
O relato é perturbadoramente franco e íntimo — mostrando como é estranha sua vida, que muitas vezes também é solitária. E são os pequenos detalhes, e não os grandes momentos, que dão uma pista de quão pouco sabemos sobre tudo.
Há trechos que o retratam como um “maconheiro nobre”, fumando um baseado depois do jantar e temendo que a fumaça chegue a seu vizinho, o duque de Kent.
Qual outro livro de memórias de alguém da família real relataria a perda da virgindade atrás de um pub, ou entraria em detalhes tão prolongados sobre um pênis congelado? Esta parte “nobre” recebe mais linhas no livro do que muitos de seus parentes.
Ele também descreve as mulheres que têm “síndrome do trono” — que se mostram “claramente colocando uma coroa [imaginária] nas suas cabeças no momento em que apertavam minha mão”.
Ou o relato de ver o concerto do Jubileu de Ouro com Brian May tocando guitarra no topo do Palácio de Buckingham — e perceber que sua avó, a rainha Elizabeth, estava usando protetores de ouvido.
Sua vida pré-Meghan em Londres era cheia de luxos — mas também parecia que ele fazia um esforço para se esconder.
Harry sofria de terríveis ataques de pânico, que eram especialmente ruins para alguém que precisa falar e aparecer em público.
Ele descreve sua vida solitária em casa, automedicando-se com drogas psicodélicas, secando suas roupas no aquecedor e planejando ida a lojas como se fossem incursões militares, a serem realizadas disfarçadas e em alta velocidade.
‘Friends’ e drogas
Ele não tem uma conta na Amazon, mas compra roupas na TK Maxx e faz compras semanais em um supermercado — ensaiando de antemão como encontrar seu salmão e iogurtes favoritos. Um dia, quando ele está no supermercado, ele ouve algumas pessoas discutindo se ele seria gay ou não.
É uma vida muito estranha, onde ele de repente sai dessa rotina sem glamour e cai em um ambiente de ricos e famosos internacionais.
Harry diz que assiste à série Friends em loop, e se identifica com o personagem cômico Chandler. E de repente ele se vê em uma viagem aos Estados Unidos em uma festa com Courteney Cox, a atriz que interpreta a companheira de Chandler na série.
E é de fato uma viagem — porque ele descreve sua experiência com drogas alucinógenas na festa, onde vê uma lixeira ganhando vida.
O livro, que foi escrito por um ghostwriter (um escritor contratado para escrever um texto que é creditado oficialmente a outra pessoa), é um relato rápido e direto com um olhar de dentro da estrutura da monarquia — mas que sempre está atento às câmeras que estão colocadas do lado de fora, tentando flagrá-lo.
No centro da história, permeando quase todas as páginas, está o grande trauma que parece ter afetado o resto de sua vida — a morte de sua mãe, a princesa Diana.
Ele a amava incondicionalmente e uma dor arrasadora e não resolvida está no centro de todas as suas outras ansiedades.
Ele realmente odeia a imprensa, culpando-a por perseguir sua mãe implacavelmente, inclusive na sequência de acontecimentos que levaram à morte dela em Paris, com Harry voltando de forma obsessiva ao local do acidente de carro.
Sua raiva da imprensa é geral, mas ele nutre um sentimento especial em relação ao magnata Rupert Murdoch. Um dos executivos das empresas do magnata é descrito apenas em forma de anagrama, tamanha é sua repulsa a Murdoch.
As brigas com seu irmão, o príncipe William, são relatadas dentro do contexto de proximidade que ambos tinham com a mãe.
Sua ansiedade paralisante e sentido de autodestruição parecem ser consequências da perda de sua mãe, que tirou dele uma âncora emocional, algo que só veio a ser amenizado quando ele conheceu Meghan.
Há também uma espécie de obsessão com a morte. A caminho da Abadia de Westminster para o casamento de seu irmão, ele pensa alegremente nas 3 mil pessoas enterradas na igreja ao longo dos séculos.
O que falta no livro de Harry é qualquer consciência sobre o contexto mais amplo do resto do mundo lá fora. É como se ele tivesse sido cegado pelas lanternas dos paparazzi.
Ninguém se preocupa em pagar contas neste livro. Ele vai e volta para a África como se estivesse subindo e descendo de paradas no metrô de Londres.
Aliás, andar de metrô teria sido algo mais exótico para ele, já que Harry afirma que a única vez que entrou em um vagão público foi em uma viagem escolar.
Embora o livro seja repleto de indiscrições sobre a vida real — há relatos de seu pai fazendo exercícios físicos apenas de cueca — Harry se omite a dar qualquer opinião sobre o mundo exterior.
Mas é possível perceber algumas coisas. Harry diz que o príncipe William fez o que ele chama de “discurso vagamente anti-Brexit”, algo que parece irritar os tabloides.
“O Brexit era o ganha-pão dos tabloides. Como ele ousa sugerir que era tudo besteira?”
O príncipe Harry afirma que os membros da realeza são obcecados em contar quantos eventos oficiais cada um participou.
Mas o livro mostra como Harry também é um típico britânico da aristocracia. Em uma passagem, ele descreve como caçou um cervo — algo que parece distante da imagem de jovem californiano new-age que ele tem hoje.
Mas quem ficará mais aborrecido com todas essas revelações do livro?
Provavelmente a Netflix. A empresa pagou uma fortuna para ter o documentário de Harry e Meghan, com um conteúdo que mais parece um feed de Instagram, cheio de momentos inócuos, como o casal fazendo waffles e vendo TV. Já o livro de Harry é repleto de conteúdo explosivo em quase todas as páginas.
Muitos ficarão extremamente irritados com o livro, principalmente com o egocentrismo e falta de noção de Harry. Ele narra uma briga sobre carros estacionando perto de seu quarto em um palácio real como se fosse algo mais importante que uma guerra. Ele compara a “cruzada contra o machismo” das Spice Girls com a “luta de Mandela contra o apartheid”.
Antes do lançamento, os vazamentos do livro à imprensa se concentraram nos conflitos familiares e no ressentimento de Harry pela falta de apoio a ele e a Meghan.
Sua madrasta Camilla é introduzida na trama com um misto de desconfiança e polidez. Harry se mostra muito desconfiado em relação a ela.
Mas no geral a imagem que Harry faz de seu pai, o rei Charles, é mais afetuosa, mesmo nos momentos em que o pai parece estar dando uma dura no filho.
Harry conta histórias de Charles andando de pantufas, ouvindo seus audiolivros, obcecado por Shakespeare, usando perfume Dior e pegando no sono em sua mesa.
Seu pai tenta dar apoio emocional a Harry após a morte de Diana, sentando-se com o príncipe até que ele adormeça à noite. Mas parece que suas boas intenções tiveram que superar algumas barreiras complicadas.
Charles deixa recados a Harry com mensagens positivas — mas Harry questiona por que ele não podia dizer essas coisas pessoalmente. Ele vai a uma peça de teatro infantil em que Harry é ator e dá gargalhadas — sendo criticado por seu filho por rir nas horas erradas.
Quando os irmãos começam a brigar, já adultos, Charles começa a soar como um personagem de Shakespeare, uma espécie de Rei Lear, implorando a seus filhos que não estraguem sua velhice. O rei é apresentado como antiquado e mundano.
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