- Howard Johnson e Virma Simonette
- Da BBC News em Manila
Um crânio rola em direção aos meus pés.
Ele teria atingido meus tênis se não tivesse parado no zíper da bolsa para cadáveres no qual estava guardado.
Ao meu lado, Gemma Baran, de 44 anos, observava horrorizada aos ossos de seu marido sendo colocados na bolsa.
Gemma havia enterrado Patricio Baran há cinco anos, mas ela não tinha mais como pagar as taxas do cemitério — na superlotada Manila, os pobres geralmente jazem em sepulturas alugadas.
Mas recentemente ela recebeu a oferta de uma sepultura diferente para Patricio — gratuita — como parte de um programa da igreja local.
O programa apoia as famílias daqueles que foram mortos na guerra feroz contra as drogas que colocou as Filipinas nas manchetes globais nos últimos anos.
Patricio, um segurança de 47 anos, foi morto a tiros em 9 de julho de 2017.
Ele havia desaparecido no dia anterior. Um vizinho ouviu três tiros, mas não viu os assassinos. A polícia diz que o corpo de Patricio foi encontrado ao lado de uma arma e um bilhete que dizia: “traficante e estuprador”.
Mas a família de Patricio nega que isso seja verdade e afirma que ele nunca vendeu ou usou drogas. Gemma diz que ele se envolveu em uma disputa de terras nas semanas anteriores à sua morte.
Gemma diz que, desde que Patricio foi morto, ela sofre para conseguir pagar o aluguel e sustentar seus três filhos. Ela trabalha como faxineira e também conta com as doações de comida de sua igreja: “Estou realmente sofrendo. Não sei o que fazer pelos meus filhos”.
Naquela manhã ensolarada de junho, o padre Flavie Villanueva rezava pelos restos mortais de Patricio enquanto a bolsa de cadáver era fechada e levada para outro local de descanso.
“Nós decidimos iniciar este programa para ajudar as famílias enlutadas das vítimas a reconstruir suas vidas novamente”, disse o padre Villanueva, um padre católico que há muito faz campanha contra o governo do presidente Rodrigo Duterte.
“A ordem de ‘matar, matar, matar’ de Duterte é um comando deliberado patrocinado pelo Estado que gerou milhares de viúvas e órfãos. Este é o legado mais trágico do presidente.”
A guerra de Duterte contra as drogas
A brutal repressão de Duterte às drogas tem apoiadores.
A política fez cair o número de “maus elementos”, diz Ofelia, mãe de quatro filhos que vive em Pinyahan, norte de Manila, uma comunidade que já sofreu com altos índices de crimes relacionados às drogas.
Em 2020, no auge da pandemia, dois homens armados e mascarados atravessaram postos de quarentena da polícia para matar um suposto usuário de drogas conhecido como Bulldog, a apenas 30 metros da casa de Ofelia.
Ofélia, que votou em Duterte, ficou triste com a morte de Bulldog porque o conhecia e gostava dele.
“É doloroso. Uma segunda chance deveria ter sido dada a ele para mudar, não algo tão repentino.”
Mas ela também endossa a campanha do presidente, acrescentando que o uso de drogas não é mais visível em seu bairro — embora ela diga que sua vida não melhorou nem piorou desde que Duterte assumiu o cargo.
Rodrigo “Digong” Duterte, de 77 anos, foi eleito em junho de 2016 com uma campanha dura defendendo repressão ao crime.
A política que virou a marca de seu governo — a “guerra às drogas” — levou às mortes de milhares de suspeitos de utilizara ou traficar drogas, em polêmicas operações policiais.
Milhares de outros foram mortos a tiros por homens armados e mascarados não identificados, apelidados de “vigilantes” pela imprensa local.
Muitos também dizem que há indícios da crescente impunidade policial como consequência da guerra às drogas — em 2020, um policial de folga foi flagrado atirando em seu vizinho após uma discussão, provocando uma enorme comoção pública. Ele foi condenado à prisão perpétua.
Pouco depois de minha chegada a Manila em 2017, 32 supostos traficantes de drogas foram mortos em uma única noite em uma operação policial rotulada “Guerra às drogas, arma de cano duplo recarregada”.
Muitas das famílias das vítimas insistiram que seus entes queridos eram inocentes. Grupos de direitos humanos e a comunidade internacional denunciaram a violência.
Mas Duterte não se abalou. Ele chegou a dizer que ficaria “feliz em matar” três milhões de usuários de drogas nas Filipinas, fazendo falsas comparações entre sua campanha antidrogas e o Holocausto — despertando críticas da Alemanha e de grupos judaicos.
O governo de Duterte tem consistentemente desumanizado usuários e traficantes de drogas. Os apoiadores do presidente muitas vezes se referem a eles nas redes sociais como “estupradores e assassinos” que merecem ser mortos.
O ministro das Relações Exteriores das Filipinas, Teodoro Locsin Junior, provocou indignação global com uma série de tuítes invocando o Holocausto, incluindo um que dizia que “a ameaça das drogas é tão grande que precisa de uma solução final, como os nazistas adotaram”.
Recentemente, perguntei a Locsin se ele via semelhanças entre o Holocausto e o assassinato de supostos usuários ou traficantes de drogas nas Filipinas.
“Não”, foi a sua resposta. Mas ele admitiu que há problemas no policiamento: “Estamos tentando consertar isso. Mas não vamos permitir que o tráfico de drogas tome tal controle sobre nossa vida política que não possamos reverter isso, para que acabemos como a América Central”.
O verdadeiro preço da guerra às drogas nunca poderá ser calculado.
No início, a contagem oficial — que somou as mortes confirmadas durante as operações policiais e os assassinatos por homens mascarados (o governo os chamou de mortes sob investigação) — chegou a dezenas de milhares. Mas depois o governo abandonou essa métrica e o número caiu.
O número oficial mais recente — sobre supostos traficantes e usuários de drogas mortos entre julho de 2016 e abril de 2022 — é 6.248. Mas grupos de direitos humanos acreditam que o número pode chegar a 30.000.
A polícia sempre alegou que só mata em legítima defesa. Mas imagens de câmeras de segurança, fotos de vítimas aparentemente incapacitadas e relatos de delatores pintam um quadro mais sinistro. Um capitão da polícia de Manila foi registrado secretamente em um documentário de 2019 — On the President’s Orders — dizendo que os assassinos mascarados são policiais.
Duterte declarou em um evento com agentes da lei: “Pode ser que você leve um tiro. Atire nele primeiro, porque ele realmente apontará sua arma para você e você morrerá. Para mim, eu não me importo com direitos humanos (…) Eu que vou assumir total responsabilidade legal. Vou enfrentar esses [advogados de] direitos humanos, não vocês.”
Forte e popular
Tudo isso afetou pouco a sua popularidade. Sua aprovação segue em alta apesar das críticas internacionais e de uma investigação em andamento sobre supostos crimes contra a humanidade pelo Tribunal Penal Internacional.
Alguns atribuem isso ao seu populismo agressivo em um país pobre onde a confiança pública no sistema judicial sempre foi baixa. Outros dizem que Duterte, apesar de sua longa carreira política, se projetou como uma espécie de outsider — em oposição às famílias Aquino e Marcos que governam as Filipinas há décadas.
Ao longo dos anos, ele forjou uma imagem de “repressor” que “quebrou as regras”. Sua escolha de palavras contundente e muitas vezes grosseira ressoou com os filipinos comuns, com alguns até se referindo a ele como “tatay Digong” ou “Pai Duterte”. Seus comentários misóginos sobre mulheres e estupro são tratados por seus apoiadores como “apenas piadas”.
Mas nem sua personalidade explosiva nem seu apoio aberto à violência são novos.
Duterte chegou ao poder na década de 1980, quando as Filipinas ainda estavam mergulhadas na política da Guerra Fria.
Davao, uma importante cidade do sul onde ele se elegeu prefeito em 1988, foi o centro da resistência contra rebeldes comunistas armados que tinham como alvo policiais, oficiais e outros que viam como seus inimigos.
Grande parte dessa resistência — chamada Alsa Masa (As Massas Se Levantam) — foi feita dando armas a civis e, segundo alguns relatos, até os obrigando a lutar contra os comunistas.
Alguns especialistas acreditam que os EUA também tiveram um papel na resistência, já que, recém-saídos de uma derrota na Guerra do Vietnã, os americanos estavam ajudando a armar grupos de combatentes anticomunistas em todo o mundo.
Quando perguntado se os EUA já estiveram envolvidos no apoio a Alsa Masa, Locsin disse: “Se eles estivessem, eu basicamente teria que me matar se eu dissesse a você. Era um mundo difícil. Era um mundo em que as coisas eram feitas de verdade. Isso é inimaginável agora. Não somos as mesmas pessoas agora”.
Muitos acreditam que a Alsa Masa é a origem dos grupos de vigilantes e dos chamados “esquadrões da morte” que surgiram em Davao sob Duterte. As vítimas eram muitas vezes esquerdistas, opositores e supostos criminosos, incluindo usuários de drogas e traficantes.
Uma investigação sobre mais de mil desses assassinatos e desaparecimentos em Davao pela ONU concluiu que houve envolvimento de Duterte. Em uma audiência no Senado em 2016 sobre os assassinatos, delatores da polícia descreveram como um “esquadrão da morte de Davao” plantou armas e drogas nas vítimas para incriminá-los.
Duterte sempre insistiu que nunca deu ordens diretas para matar. Mas em 2018 ele disse: “Meu único pecado são as execuções extrajudiciais”.
Espaço democrático reduzido
Na economia, Duterte prometeu grandes gastos com infraestrutura e flexibilização das restrições ao investimento estrangeiro direto, mas a pandemia e a recessão prejudicaram seu plano econômico.
Ele fez um “bom trabalho” em lidar com a economia, de acordo com April Tan, estrategista-chefe de ações da COL Financial em Manila.
“Ele permitiu que seus tecnocratas pudessem trabalhar. O sistema tributário foi reformado com sucesso. Muitas medidas foram aprovadas para melhorar o incentivo para se fazer negócios aqui.”
Os ministros do governo também elogiaram a maneira como ele lidou com um acordo de paz que ofereceu maior autonomia política para milhões de filipinos muçulmanos na ilha de Mindanao, no sul do país, em troca da entrega de armas.
Ele também proibiu o fumo em público e prometeu educação universitária gratuita e melhorias na saúde, Mas ainda é cedo para se medir o sucesso dessas iniciativas.
Uma de suas maiores promessas — reduzir a corrupção — incluiu o lançamento de um disque denúncia onde as pessoas podem denunciar corrupção. Mas em 2021, seu próprio governo enfrentou alegações de corrupção em contratos bilionários concedidos a um fornecedor de serviços de saúde.
Duterte reagiu proibindo seu gabinete de comparecer às audiências do Senado que investigavam o assunto. A investigação não levou a nenhum processo. Críticos disseram que a impunidade para os ricos e poderosos continua nas Filipinas.
Outra vítima da presidência de Duterte foi a liberdade de expressão. Líderes da oposição foram presos. Muitos críticos foram alvos de processos, incluindo o padre Villanueva, o padre católico que orou pelo marido de Gemma, Patricio. Ele foi indiciado por sedição.
A imprensa foi censurada. Maria Ressa, ganhadora do Prêmio Nobel da Paz e cofundadora do site de notícias Rappler, foi condenada por difamação cibernética. Ela negou as acusações e recorreu contra o veredicto. Muitos acreditam que as acusações contra ela são politicamente motivadas pela cobertura contundente do Rappler sobre as políticas de Duterte.
Ressa também enfrenta uma enxurrada diária de ataques na internet, feitos, segundo ela, para “silenciá-la”. Na véspera de Duterte deixar o cargo, o site Rappler foi fechado pelas autoridades.
Duterte pode não pertencer a uma dinastia política, mas pode se afirmar com certeza que ele deu início a uma. Ele deixou o cargo e sua filha Sara Duterte-Carpio está assumindo como vice-presidente. Ela venceu com ampla margem o pleito e pode estar se preparando para liderar uma chapa presidencial em 2028.
Os apoiadores de Duterte insistem que seu histórico é positivo: “O senhor Duterte deixou tantos legados, você levará vários dias para enumerá-los”, disse seu ex-porta-voz Salvador Panelo.
Ele minimizou a investigação do Tribunal Penal Internacional sobre os assassinatos dos vigilantes, dizendo que “são os grupos organizados de drogas que estão se matando”.
Mas os críticos de Duterte dizem que seu legado é marcado pela violência. “Quando você está no governo, você pode fazer o bem [como presidente], apenas sentado lá, porque as coisas acontecem”, disse Karen Gomez-Dumpit, a diretora da comissão de direitos humanos do país.
“Você tem todo o aparato do governo à sua disposição. Ele poderia ter se saído muito bem, se não tivesse esse tipo de política. É um legado de mortes. Segurança à custa dos direitos humanos? Isso é segurança de verdade?”
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